Capítulo 2 - Azul farpado

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O fosforo riscou a caixa e uma chama azulada iluminou o ambiente. Uma vela de sete dias havia sido acesa por Padre Ezequiel que estava ansioso e não sabia dizer o porquê. A missa havia sido tão calma. O povo parecia tão em paz dentro de sua igreja. Chacoalhou o palito de fosforo apagando-o e foi em direção as portas para tranca-las.

- Boa noite Padre. - Disse um dos meninos que lhe ajudava nas missas saindo pela porta principal. - Durma com Deus e até a próxima missa senhor.

- Vá em paz, Leandro. Que Deus lhe abençoe. - A voz do padre era calma e limpa. Projetava-se na nave e ecoava afinado. Trancou com chave a porta e colocou a trava de madeira. Virou-se e vislumbrou o altar. Neste instante um trovão ribombou no céu. Grave e poderoso. Fez o sinal da cruz e foi caminhando por entre os bancos da igreja. Em um deles, avistou uma bíblia esquecida por um dos fiéis. A pegou em sua mão e a abriu deixando seus olhos caírem exatamente sobre o versículo Efésios 6:12 "pois a nossa luta não é contra seres humanos, mas contra os poderes e autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais"

Arrepiou-se. Diziam que sempre que um livro religioso era aberto a esmo, as palavras escritas eram sempre as palavras que eram necessárias serem ouvidas. E ouvir falar em demônios a essa hora da noite, coisa boa não poderia ser. Ainda mais por estar sonhando com um demônio há alguns dias. Outro sinal da cruz. Guardou a bíblia debaixo dos braços e voltou sua caminhada. Ajoelhou-se próximo ao altar e fixando o olhar nos olhos da imagem de Jesus pregado na cruz sob o altar, rezou. Pediu para o demônio ruivo ser apenas sua imaginação.

Não muito longe dali Alana despertou. Abriu os olhos. A noite já ia alto. Descruzou os braços e deu um passo à frente. Seu quarto fracamente iluminado pela iluminação pública escondia trastes e destroços de uma mobília já não mais utilizada pelo seu corpo. Uma cama com uma camada de anos de pó. Uma cadeira de espaldar reto e alto com o estofamento rasgado. Livros grudados em suas prateleiras pelo tempo. Uma cortina vermelha cor de sangue mal escondia os buracos da parede. Mofo impregnava no quarto. O cheiro era insuportável para qualquer humano. Alana abriu a porta do closet e puxou uma blusinha preta de mangas curtas que mal cobria seus seios bem desenhados. Vestiu uma calça jeans surrada pelos anos e que para sempre serviria em seu corpo. Com uma cinta de couro a prendeu em sua cintura fina. Ajeitou seu cabelo. Cinzas se desprenderam dele e a lembrança da noite anterior veio em sua mente. Por que diabos estavam atrás dela? Era tudo confuso demais. Já havia tido encontros com demônios antes, mas nenhum sequer tinha o mínimo interesse pela sua não vida terrena. Eram apenas vislumbres rápidos em meio a um beco escuro e nenhum deles havia lhe dirigido uma palavra sequer. E agora estavam lá. Caçando-a como se fosse um bicho na floresta. Floresta de concreto. Pior. Eles sempre a encontravam aonde quer que fosse. Sentiam seu cheiro. Por sorte Alana também podia sentir o cheiro deles. Farejou o ar, como um cão perdigueiro. Nada. Apenas o cheiro da noite. Da linda noite. Sua eterna companheira de algumas horas que sempre a abandonava ao raiar do dia e sempre voltava como se nada tivesse acontecido. Foi até a sala da casa. O sofá tombado na porta. Uma escrivaninha velha e carcomida pelos cupins pendia no canto. Seu sobretudo e sua espada no chão. Apanhou-a e a vislumbrou. Seu fio como sempre, afiadíssimo. Sua lamina limpa. Estranhamente limpa. Havia cortado vísceras e músculos na noite anterior. Deveria haver ali no mínimo um sangue seco. Mas nada. A lamina brilhava como sempre. Passou o dedo em seu fio. Um pequeno corte apareceu em seu dedo, mas sangue nenhum brotou de sua ferida. Magia. A magia da morte correndo em suas veias tomando o lugar do sangue. Salgue maldito. Sangue podre. Sorriu. Lambeu o corte e o mesmo cicatrizou instantaneamente como se nunca tivesse sido aberto. Guardou a espada na bainha acoplada ao sobretudo. E o deixou no sofá. Fome. Sentia a fome comendo-lhe as entranhas. Por sorte havia se abastecido de um pobre moribundo que estava vagando pelas ruas. Não o matou, mas não o deixou consciente após o ato. Riu consiga mesmo. Vestiu o sobretudo e saiu pela rua. O chão já estava seco dizendo-lhe que o dia havia sido de sol. Ainda bem. Odiava a chuva. Odiava a água. Para ela, bom era o tempo seco. Assim como estava àquela noite, pois podia ver as estrelas. Era daquilo que gostava. Das estrelas. Ainda se lembrava de quando era criança. Sentava no alpendre da casa e ficava horas a conta-las, sempre se perdendo quando o sono caia em seus olhos e até hoje se maravilhava com elas. Seus olhos refletiam o fraco brilho das estrelas, que muito provavelmente já estão mortas há tempos. Assim como seu corpo. Morto, mas magicamente vivo. Até hoje Alana não havia entendido o sentido daquilo. Lembrava-se da morte lhe rodeando no momento da transformação. Mas por algum motivo ela lhe virou as costas e foi embora. Deixando para trás um corpo sem vida e possuído pelo demônio. Não havia aceitado sua nova condição com facilidade. Gritou. Esperneou. Mas seu corpo havia mudado para sempre. Havia começado a sentir sede. Bebeu muita água no começo. Seu corpo continuava a sentir sede. Não entendia. Então lhe foi explicado que sua sede só seria saciada se fosse feita por sangue. Pela vitae humana. Pelo sangue que escorre quando nos cortamos com a faca no café da manhã. Pelo sangue que sai pelo nariz após um soco bem dado. Pelo sangue que sai em profusão num acidente trágico de carro. E como era gostoso. Em sua vida jamais havia experimentado algo tão bom. Algo tão prazeroso. Era como se ao beber sangue, pudesse sentir cada gota inundar seu corpo e lhe dar uma sensação única. Era a melhor coisa da não vida. O ato em si, era monstruoso. Pois dificilmente havia uma vida que durasse após o ato. No começo matou pessoas demais. A culpa lhe invadia toda noite. Lagrimas acompanhavam cada arrependimento. Soluços escapavam ao lembrar-se dos braços em vão, tentando agarrar-se as vidas dos corpos que se acumulavam. Hoje em dia, podia matar a sangue frio que nada, nem um pingo de remorso lhe invadia. Os antigos diziam isso. Com o tempo você aprende a matar por necessidade e as vezes prazer. Mas o arrependimento morria com o tempo. E era de fato verdade. O prazer tomava o lugar do arrependimento. Caçava. Aprendeu com o tempo a sentir o sabor do medo dos humanos. Descobriu que isso lhe dava forças. Que isso lhe fazia mais forte por alguns instantes. Que era o sangue e o medo que lhe faziam continuar andando em frente naquilo que hoje, chamava de vida.

Asas de sangueOnde histórias criam vida. Descubra agora