O que você faz no instante em que toda a chuva do mundo parece querer escorrer dos seus olhos? Quando o grito entalado na garganta é suprimido pelos seus soluços intermináveis. O corpo falece em gemidos silenciosos e os passos são incertos. As mãos tremem. A tristeza parece evaporar pelos poros da pele. A agonia do desespero sufoca. Aperta. Dilacera. A visão turva e fraca mal consegue enxergar o que quer que seja além daquilo que não queríamos sentir ou ver. Hoje, viam as letras no mármore frio, que gravadas há tantos anos, traziam consigo uma história repleta de significados. Aquilo simplesmente não poderia ser verdade. De joelhos, Alana segurou como pode as lagrimas que escorriam de seus olhos. Hora transparentes como cristais, hora rubras de ódio, que escorriam pelo seu rosto, acumulando-se em seu queixo de menina inocente e pingando, maculando a neve sob seus joelhos e deixando o rosto jovial da bela ruiva, manchado. Mãos tremulas limparam a poeira acumulada sobre a lapide. A sujeira como uma cortina, se abriu, mostrando o mármore gasto e opaco que já não refletia mais o brilho das estrelas. Os séculos pesaram sobre suas costas. Esmagador. Avassalador. Sem freios. Rompendo os limites do suportável. Sendo extravasado da pior maneira possível. O choro. Soluços fracos seguidos de gritos de ódio e tristeza. Por quê? Que vida desgraçada. Que destino cruel. A morte, parecia agora, uma bela criança inocente comparada à vilã imortalidade. Alana desejou mais do que tudo se tornar um grão de areia e se perder no vento entre outros milhões de grãos, que não sentiam. Não choravam. Não queriam mais sentir absolutamente nada. Não ter mais memorias. Não ter sentimentos. Sentimentos esses, que havia a muito escondido de si mesma. Sentimentos que acreditava não mais existir em sua alma nem em seu coração que há muito, não batia mais, apesar de hoje demonstrar querer voltar à vida. Sentia-o bater em fracos rompantes de vontade. Como isso é possível? Acreditava ser a dama da noite. Rainha dominadora das sombras e da crueldade, que agora estava ali, ajoelhada sentindo toda a tristeza que alguém poderia carregar. O murmúrio das arvores farfalhando ao vento lhe faziam companhia. O vento, a fustigar suas roupas, lhe fazia companhia. Seus pensamentos e fantasmas, lhe faziam companhia. Mas estava inteiramente só. De corpo e alma. Só. Completamente sozinha naquele mundo asqueroso e insuportável. Seus olhos correram do começo do nome ao último sobrenome. Tão familiar. Tão saudoso. Tão simples. Tão cruel. Seus braços foram de encontro a seus ombros na vã tentativa de receber um abraço amigo que sabia que jamais iria receber. Nunca mais. Amigos? O que são amigos nessa vida maldita? Quando a sede aperta, mãe já não é mais mãe. Pessoas que amamos se tornam alimento fácil. Um irmão já não é mais um irmão. Irmão. Alana fechou os olhos. Uma lágrima escorreu de cada olho. Vermelho e cristal. Encontraram-se em sua boca que tremia de vontade de gritar. Uma memória lampejou em sua mente. Flash. Duas crianças felizes em sua inocência. Correndo de um canto a outro na casa. Com as roupas sujas de poeira e terra batida. Brinquedos espalhados. A doce infância estampada no rosto daquelas duas crianças. A alegria preenchendo cada canto da casa. Um tropeço, um ralado e cinco minutos depois a brincadeira estava de volta a toda. Mais lagrimas dos olhos de Alana escorreram. Com mais intensidade. Frio. Alana sentiu frio. O frio do ódio começou a se intensificar tanto, que começou a queimar. Por que de todos os sentimentos o ódio era o mais predominante naquela não vida? Por que de todos, esse era o sentimento mais palpável? Podia sentir ondas de raiva explodindo de seu interior cristalizando-se em lagrimas que eram expurgadas em grandes volumes de seus olhos. Seu irmão correndo pela sala. A chuva caia forte lá fora, mas a casa estava quente e aconchegante. Então, num trovão, a porta da sala se escancarou e bateu na parede oposta. Um vento enregelante varreu a sala, destruindo todo e qualquer calor que ali comportava. A figura paterna materializou-se no vão que dividia aquele mundo minúsculo e tão gigante aos olhos de uma criança com o mundo vazio e podre da sociedade. O cheiro de bebida destilada, como um véu negro, deslizou pelo chão e foi subindo pelo corpo pequeno de Alana, queimando seu nariz. Seu irmão parou de correr e ficou mudo. O pedido para ela se esconder foram as últimas palavras que ouviu da boca do seu irmão. Do seu querido irmão. Correu. Soube que algo havia dado errado naquela brincadeira. Um brinquedo havia sido quebrado e a pequena Alana não sabia como iria consertar aquilo. Antes de adentrar ao quarto, arriscou uma última olhadela para trás. O cinto de couro de seu pai rasgou o ar e acertou em cheio o rosto do seu irmão que foi ao chão chorando. Gritou o mais alto que pode. O rosto demoníaco de seu pai virou em sua direção. Um trovão ribombou no céu, tornando a figura de seu pai negra. Viu naquele dia a personificação de um demônio. As palavras proferidas em sua direção queimaram seus ouvidos. Não grita por que você é a próxima! E mais uma vez o cinto rasgou o ar. Um estalo e um grito logo em seguida. Dor. Sentiu a dor do teu irmão em suas próprias costas. Machuca-lo, era como machuca-la igualmente. Tomada de fúria e fora de si correu. Correu e jogou-se para cima de seu pai. Com a força da corrida e a ajuda da bebida, o corpo mole de seu pai vacilou e foi ao chão. Vidro quebrando. Outro grito. Clamou por seu irmão. Vai embora Alana. Fuja. Papai não sabe o que faz e ele vai machucar você. Por favor. Seu pai agora, se recobrando do empurrão, começava a se levantar. Sua garota maldita. Você vai apanhar até sair sangue. Eu quero ver sangue saindo de você hoje. Quem você pensa que é para me afrontar dessa maneira? As palavras moles eram pronunciadas conforme ele se levantava. Alana não arredou o pé. Seu irmão gemia no chão chorando. Cerrou os punhos e a face. Iria enfrentar. A hora de acabar com aqueles abusos, havia chegado. Hoje seria a última vez em anos que seu pai iria tocar-lhe o corpo com más intensões. Hoje ele iria pagar pelo que vinha fazendo há anos sob efeito do álcool. Seu corpo não seria mais abusado. Sua inocência infantil permaneceria intacta. O que acha que vai fazer fedelha? Me enfrentar? E um riso totalmente diferente do riso infantil irrompeu daquela garganta. Quebrando todo e qualquer resquício de alegria que naquela casa havia sido construído por Alana e seu irmão. Alana não conteve o impulso. Correu para a cozinha. Sabia que seu pai estava apenas alguns passos de distância, cambaleando, mas decidido a surra-la até a morte. Alana, tão pequena e dócil, sabia que a morte estava com o ombro encostada na parede da cozinha, apenas esperando o momento certo de deitar a foice no cangote do primeiro que ela iria levar com ela naquela noite, para uma viagem apenas de ida, e Alana sabia que seria ela. Um novo trovão iluminou a cozinha. A faca sobre a pia reluziu sob a luz do céu que gritava em fúria. Era um convite e Alana não recusou. Quando a pequena mão segurou o frio cabo branco da faca, Alana sentiu como se conhecesse aquilo. Como se fizesse parte de seu corpo. Era leve. Seu pai riu novamente. Fedelha ridícula. Farei o mesmo que fiz com sua mãe. Ela não me servia para nada. Apenas serviu para me dar dois filhos idiotas. Hoje você vai se juntar a ela, seu pequeno pedaço de bosta. Alana cega de ódio e ao ouvir sua mãe ser ofendida daquela forma, correu em direção a seu pai. A mão de seu pai subiu levando o cinto de couro ao alto. A mão de Alana adiantou-se e foi mais rápida. A lamina perfurou sua barriga e seu pai urrou de dor deixando o cinto ir ao chão. Alana sentiu prazer naquilo. Ver dor sendo expurgada pelos olhos de seu pai. Podia ver a dor exalando pelos olhos do seu progenitor. Olhos que suplicavam e pareciam não saber o que estavam fazendo. Como se a lucidez tivesse tomado a frente finalmente, mas era tarde demais. Com um sorriso, Alana empurrou e apoiou-se no cabo da faca, enterrando-a mais fundo. Uma mão poderosa acertou-lhe o rosto, mas ela não soltou, por instinto, girou o cabo da lamina e fez força para cima, rasgando o ventre de seu pai. Pode sentir músculos sendo dilacerados. Mais urros de dor. Novamente barulho de vidro quebrando. Sangue. Sangue jorrou e respingou e maculou seu rosto infantil. Pingos grossos de sangue escorreram e terminaram em sua boca. Alana lambeu. Seu corpo inteiro estremeceu. Sabor de ferro. O corpo mole de seu pai caindo lentamente, escorregando pelo armário da cozinha até ficar completamente imóvel. Levantou-se e olhou seu pai de cima. Cuspiu. Sangue e saliva misturados. Um último suspiro e os olhos de seu pai ficaram opacos. Sem fundo. Pareciam duas órbitas mortas. Seu pai estava morto. Assassinado pelo ódio acumulado por anos. Toda a fúria escapou de seus pulmões num suspiro. Mamãe. Queria a mamãe. Toda a sombra assassina de Alana sumiu dando lugar a frágil silhueta de uma criança em apuros e acuada. Seu irmão entrou na cozinha cambaleando e gritou ao ver seu pai morto no chão. Uma enorme poça de sangue formava-se ao redor do corpo de seu pai. Seu irmão chorava ao lado do corpo agora inerte que perdia o calor lentamente. Monstro! E essas foram as últimas palavras que ouviu daquela boca que tanto gostava de ouvir ser chamada pelo nome. As lagrimas de seu irmão brilharam como faróis na noite. E Alana soube naquele instante, que ali não era mais seu lugar. A morte faceira e escondida, passou sua ferramenta pelo aposento, varrendo a alma de seu pai para o inferno. Foi como se uma cortina negra, tivesse sido levantada da casa. Alana correu. Atravessou o portal que encerrava seu mundo interior do mundo estranho e hostil. Correu pela noite como nunca antes havia corrido. No instante seguinte, seu vestido branco estava completamente ensopado. Seus pés descalços ignoravam a dor do asfalto áspero. O escuro do quarto ao dormir já não lhe parecia mais tão ameaçador. A noite era bela. Apaixonou-se pela noite instantaneamente e a noite lhe abraçou. Aprendeu a dançar com a noite. Seu corpo pequeno logo transformou-se. Drogas. Crimes. Brigas. Cicatrizes. O tempo correndo desenfreado. Tudo começou a fazer parte da companhia solitária de Alana. Dormia cada dia em um lugar. Houve uma noite em que ouviu seu irmão gritando seu nome na madrugada. Mas decidiu se esconder mais em meio ao lixo onde estava dormindo. Desejou nunca ser encontrada. Esperou até que os gritos por seu nome sumissem com a noite. E sumiram. Acreditou que ninguém mais saberia entende-la como a noite entendeu e lhe recebeu. Não queria mais ninguém. Os anos passaram e nada disso mudou. Às vezes, ainda sentia o eco repetido do seu nome sendo chamado pelas ruas. Não olhava mais para trás. As formas de criança tinham ido embora dando lugar a um corpo de adolescente criada para a vida. Seios fartos. Cintura fina e quadril na medida. Pernas longas e ligeiras. Mãos rápidas e treinadas. Conseguia o que queria de quem quer que fosse. Não haviam regras e não haviam limites. Usando das armas sexuais que seu corpo lhe proporcionava, descobriu no sexo uma máquina de dinheiro. Prostituição. Os anos sendo abusada por seu pai lhe concederam a frieza necessária para tratar como objeto qualquer ser humano. Fosse quem fosse. Não passava de lixo para ela. Usava. Ganhava. Esquecia. Usava. Ganhava. Esquecia. Meras cascas obsoletas em meio a tantas outras cascas vazias. Cheias de razão, mas sem nenhum conteúdo. Todos deitavam em suas camas e suplicavam perdão pelos seus erros diários, mas na manhã seguinte esqueciam suas preces e cometiam tudo novamente num ciclo vicioso e continuo. Não entendia a vida já que a vida também não lhe entendia. O problema sempre eram os outros. Nunca ela. Estava sempre certa. Bebia e se drogava. Foda-se a vida. A vida já fodeu comigo. Quero é farra e rock roll na orelha. Tatuagem no pescoço e nas costas. Uma gargantilha de crucifixo de ponta cabeça lhe adornava o colo e eram motivos de perguntas e barbáries a seu respeito. Mas não ligava. Não dava a mínima. Mas o tempo irrefreável fez com que aquela vida começasse a lhe enjoar. Deixando para trás um cafetão degolado e o rosto horrorizado das outras prostitutas, saiu mais uma vez para a noite que tanto amava. Sentia-se bem nas sombras da sociedade. Não entendia nada do que se passava na TV. Impostos. Inflação. Desemprego. O que eram aquelas coisas banais perante a noite? A noite era fria. Como Alana. A noite era implacável. Como Alana. Conseguiu se safar da polícia inúmeras vezes com uma boca desenhada pelo demônio em pessoa. Era o próprio demônio em pessoa. Ela e a noite. Apenas os dois, formando o casal noturno no qual você atravessa a rua ao encontrar na calada da noite. Seu riso seco e frio, fazia qualquer um teme-la. A noite parecia lhe envolver dentro de sua capa, e protege-la. Ninguém ousava ficar em sua frente. Com sua aura vermelha, era temida sem nada fazer. Assim, se tornou a dama das noites.
Foi quando essa paixão pela noite trouxe um amigo em comum um dia virando a esquina. Belo. Terno Negro como a noite. Rosto jovial e eterno. Presença. Seus olhos se encontraram e seu nome foi dito por uma voz calma e serena. Alana. Finalmente nos conhecemos. E uma mão lhe foi estendida. Alana não soube como, mas não conseguiu recusar. Foi abraçada. Como nunca havia sido abraçada. O homem de negro lhe entendia. O homem de negro era a noite personificada. Lorenzo era a noite para Alana. E como nunca antes, Alana se sentiu completa. Lorenzo mostrou a ela coisas na noite que ela nem sonhava existirem. Lhe fascinavam. Lorenzo mostrou que a vida é ridiculamente curta para se aproveitar tudo que a noite proporcionava. Deu-lhe a vida eterna. Eternizou Alana com a forma feminina de uma garota rebelde de dezesseis anos. Ruiva. Olhos azuis. E a eternidade para desfrutar da noite ao lado da sua noite amada. Lorenzo. Italiano, bem-sucedido e com dinheiro fugindo-lhe pelos bolsos, sabia usar as palavras como jamais havia visto alguém usar. Eram belas e muito bem encaixadas em qualquer situação. Conquistava qualquer um. A noite era bela, mas ao lado de Lorenzo a noite se tornou finalmente perfeita. Em uma noite a abraçou sob a luz do luar. A madrugada ia alto. Musica ecoava pela casa e o casal estava abraçado na varanda da casa de verão de Lorenzo. Alana, minha querida Alana. Quero presenteá-la com meu mais puro amor. Jamais vi em alguém o que enxergo em você e não quero perde-la para a vida comum. Receba dentro de si o presente da vida eterna. Alana viu seu amado cortar o pulso com um pequeno punhal. Um sangue rubro, escuro e espesso brotou da ferida. Beba minha criança e seja minha eterna companheira na noite. Alana encostou a boca no machucado e sentiu a língua formigar. O sangue desceu quente por sua garganta e desde então deixou de ser uma mera mortal tornando-se um anjo da noite. Sono. Encostou a cabeça no peito de seu amado e dormiu.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Asas de sangue
VampiroA triste historia de uma alma vazia. Um corpo carregado de magoas e cicatrizes do tempo. Seu destino irá tomar um rumo jamais esperado. Céu, terra e inferno. Qual a relação entre esses planos? Alana irá descobrir cada um deles dentro de si mesma no...