Lágrimas de Sangue
Capítulo I
Águas passadas não movem moinhos
Era noite, no céu raios estalavam com brutalidade, avisando que um temporal estava a caminho. A Cidade de Kembry se encontrava totalmente vazia, ninguém se atrevia a enfrentar a tempestade que logo desabaria. Em meio aos assustadores estrondos dos trovões, algo acontecia na Rua Abandonada, as luzes dos postes falhavam, num cenário assustador e deprimente. Num trecho escuro, entre um poste e outro, uma silhueta estranha se misturava com a escuridão e a noite. Jazia ali o oculto, que somente se aproximando podia ver... ver a silhueta ganhando forma e cor.
Não era algo comum. Na verdade era uma cena de cortar o coração: uma garota, e nos seus braços finos o corpo sem vida de um homem. Debruçada sobre ele com o rosto afundado no peito de ombros largos a garota permanecia, os longos cabelos loiros ondulados esparramados sobre a vítima e comportados atrás de seus ombros. O lindo rosto do rapaz já se empalidecera, a cabeça tombada, e os olhos fechados.
Pingos de água caiam, a chuva chegara e ia engrossando. A garota levantou o rosto para o céu, sua pele era branca e tão pálida quanto o cadáver de suas mãos, seus olhos cor-de-mel bem claros estavam vermelhos e refletiam tristeza. Ela apertou os olhos bem devagar e voltou-se para o corpo de suas mãos. Lá estava a causa desse sofrimento. Sobre o peito másculo daquele homem, um ferimento de um enorme corte em diagonal. A chaga de aparência vertiginosa abria-se desde o ombro direito até o lado esquerdo do tórax.
A chuva lavava o sangue da camisa branca sob a jaqueta marrom, as lágrimas da bela moça também iam desaparecendo em meio a água. Talvez ambos levados pela chuva, escorrendo rua abaixo, lembrando que aquele lugar sempre fora de sofrimento.
A cabeça baixa, o cabelo molhado escondendo o rosto frio. Os olhos fixos no corpo envolto em seus braços fitavam muito além de um cadáver. O chiado da chuva ecoava em sua cabeça enquanto pensamentos invadiam a mente...
Lembranças do passado.
†††††††††††††††††Como foi que chegamos a esse ponto? Por que tudo isso tinha que acontecer? Há querido... se eu soubesse nunca teria vindo. Nunca teria me preocupado com ela. Me perdoe... Me perdoe por ter permitido que isso acontecesse! Se eu pudesse voltar naquele dia... mudaria tudo!
†††††††††††††††††-Pricila você está me ouvindo?- Dizia uma garota morena, de olhos castanhos claros e cabelos pretos trançados. Usava um vestido de algodão vermelho típico do século XX.
Caminhavam pelo gramado verde da praça, carrocerias circulavam transportando, senhoras desfilavam em seus suntuosos vestidos acompanhadas, cortejos românticos eram realizados, senhores de respeito descansavam nos bancos, a enorme árvore centrada na praça em foma de circulo despojava suas folhas, e naquela tarde de outono, o vento soprava sob o céu nublado. Os olhos de Pricila pecorria por cada detalhe daquela cena quando a voz de sua amiga a trouxe a realidade:
-Hã?! O que foi Daila? -Disse ela como se tivesse acordado de um sonho.
-Não ouviu nem uma palavra do que acabei de dizer. - Protestou cheia de indignação parando na frente dela. Um vento soprou as folhagens secas para a calçada ladrilhada de pedras retangulares perfeitamente encaixadas.
-E eu lá quero saber da vida dos outros. -Pricila assumiu a ofensiva enrugando as sobrancelhas e olhando-a nos olhos. Desconcertada ela desviou a atenção pressionando os lábios. Recuou e ambas voltaram a caminhar. Uma criança passou correndo entre elas.
-Falando em "vida dos outros". -Daila reiniciou a conversa serenamente. -Sabe quem é o homem que sua irmã está namorando?
-Patrícia está namorando?!- Surpreendeu-se olhando-a de canto de olho. - Me conta essa história direito.
-Pensei que não quisesse saber da vida dos outros. -Ironizou vitoriosa.
-Ela é minha irmã e isso é diferente.
-Com certeza. - Satirizou Daila lembrando-a do clima ruim que sempre houvera entre ela e a irmã.
-Quer parar com isso e falar logo? -Irritou-se Pricila. Daila atravessou sua frente e sentou-se no banco de costas pra rua. Esperou a amiga fazer o mesmo antes de continuar a falar.
-Existem boatos que ele é contrabandista, outros que ele é foragido da lei. Algumas pessoas dizem que ele é só mais um homem comum, mas ninguém confirma nada.
-Boatos? -Pricila ergueu-se ameaçando sair. -Por favor Daila, boatos sempre consistem em mentiras e fofocas. E além disso Patrícia sabe se cuidar.
-Você nem ouviu minha opinião! -Disse arqueando as sobrancelhas no intuito de prender a atenção dela.
-E eu preciso? -Rebateu Pricila
-Acho que você deve conhecê-lo. -Despejou Daila se erguendo para nivelar a altura. Ouvindo isso Pricila enrijeceu-se mantendo o corpo ereto, olhou para ela séria. Lembranças da rixa com sua irmã emergiram. Franziu as sombrancelhas, bufou balançando a cabeça e voltou a caminhar apressadamente cerrando os punhos. Daila esticou os passos para alcançá-la. - Eu sei que você e sua irmã não se dão bem a um tempo, mas... Olha pra mim! - Ela puxou o ombro da amiga obrigando-a a parar e virar o corpo. - Ele chegou na cidade a pouco tempo, tem um jeito muito sinistro e... Ele age como se escondesse algo. Ei me escuta! -Daila protestou contra a careta de tédio de Pricila.
-Está bem! -Ela respirou fundo. - Como você o conhece?
-Ele está na casa de frente a minha.
-Não tem alguns anos que ninguém mora lá? - Pricila falou com voz aguda voltando a seguir o caminho.
-É, por que ninguém em sã consciência se mudaria para este lugar. -Esperaram a carruagem passar para atravessarem a rua.
-Como você sabe que esse cara novo namora minha irmã? -Ela demonstrava uma pitada de preocupação.
-Quase todo mundo sabe. E eu a vejo passeando com ele de braço dado. -Terminavam de atravessar a rua.
-Isso não é do meu interesse. -Pricila espantou qualquer pensamento ruim em relação a irmã. -Também não vejo mal nisso.
-Pricila, esse cara não é alguém comum. Ele chega em casa pela manhã e sai a noite. Que tipo de pessoa sai tarde da noite? -Daila falava mais séria do que nunca. -Ele parece agente funerário, até pálido ele é. E por que quase ninguém conhece ele?
-Deixa de loucuras Daila. -Pricila deu um sorriso nervoso. Caminhavam por uma rua com vários sobrados. - Volta pra casa de manhã, sai de noite, sempre pálido... Você só pode estar de brincadeira.
-É sério Pricila! Ele me olha de forma ameaçadora. Tenho certeza que ele esconde alguma coisa.
-Não exagere Daila. Vai me dizer que ele é o Drácula ou o Gasparzinho?-Debochou Pricila.
-É, eu amei o livro do Bran Stoker, mas isso não tem nada haver. Estou dizendo que ele pode ser perigoso.
-Perigoso?! O que mais você sabe sobre ele?-Pricila tentava disfarçar a preocupação que crescia dentro dela com bom humor.
-Isso é tudo.
-É tudo que você tem a dizer Daila?-Pricila desconfiada a fuzilou com os olhos deixando-a desconcertada.- Fala!
-O quê? -Daila sorriu de forma suspeita. Ela conhecia muito bem aquele riso.
-Fala logo! -Exclamou Pricila.
-Admito! Ele é tremendamente lindo.
-Está explicado. Você andou observando-o demais e ele acha que você está bisbilhotando a vida dele.
-Não acho que seja bem assim. -Ela falava com seu jeito descontraído. -Se ele esconde alguma coisa, quem melhor que a sua irmã pra saber?
-Cansei desse assunto Daila, vamos esquecer isso, viu?
-Como quiser. -Ela ergueu as mãos em sinal de rendição. -Mas isso não muda minha opinião.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Lágrimas de Sangue
Vampire"Cada vez que Pricila ouvia os estrondos esforçava-se para correr mais rápido, como se estivesse fugindo de algo. E de fato fugia, era a fome, sim a fome a perseguia e ela tentava lutar contra. Ela sabia que jamais venceria, mesmo assim tentava. Só...