I

84 4 2
                                    

De olhos fechados ela conseguiria descrever aquele quarto facilmente. Não só pela simplicidade do espaço, com as suas paredes sem personalidade e a mobília reduzida, mas por todas as vezes que já o percorrera de um lado a outro, continuamente. Onze passos de um lado, quinze do outro.

A familiaridade que aquela divisão representava era na verdade de certa forma inquietante.

Frente ao espelho, ela olhava o reflexo cuidadosamente, estudava-o como se nunca antes o tivesse visto.

Acariciou os longos cabelos negros.

Observou os olhos azuis acinzentados.

Inclinou-se ligeiramente para ver melhor a face salpicada de sinais.

O rosto empunha respeito, os seus traços simples mas angulosos. Decidiu desde logo que não gostava.

Com um suspiro virou costas e olhou a roupa cuidadosamente colocada sobre a cama. Uma camisa branca cautelosamente engomada e dobrada, umas calças pretas vincadas e um extremamente antiquado casaco de veludo negro.

Vestiu-se sem pronunciar qualquer palavra, fosse de agrado ou desagrado, e depois amarrou o cabelo num puxo no topo da cabeça.

Era apenas mais um dia normal na sua vida, o resto eram apenas negócios.

Calçou uns desconfortáveis sapatos envernizados que lhe apertaram os pés e a fizeram ranger os dentes mas depressa se habituou à constante fisgada enquanto caminhava às voltas pelo quarto.

Lançando finalmente uma última olhada ao espelho não se viu a si própria, como aliás nunca via, mas sim uma desconhecida com umas roupas que nunca gostaria.

Pegando no envelope recheado de páginas rabiscadas que se encontrava sobre a sua secretária, abriu a porta do quarto e saiu.

Do outro lado não se via nada do que era esperado. Não havia uma cozinha, nem uma sala, nem qualquer divisão a que se pudesse chamar lar, mas apenas uma série de ecrãs iluminados e uma mulher de bata branca sentada em frente destes.

Ela estendeu-lhe os ficheiros e a mulher tirou-os da sua mão sem qualquer cerimónia.

"Sabes o que tens de fazer?", perguntou-lhe e ela anuiu.


"Passei a noite toda a estudar, eu sei exatamente o que fazer.", a voz soou estranha aos seus ouvidos, estes ainda a estudarem o som. Repetiu a palavra 'exatamente' saboreando-a nos seus lábios e sorriu.

Não desgostou de todo a maneira como soava.

Rouca, autoritária, aquele tipo de pessoa que podia gritar do outro lado da sala e fazer toda a gente cair em silêncio.

A mulher de bata entregou-lhe um relógio de pulso dourado e colocou-o rapidamente sem deviar o olhar do que fazia.

Ela era assim: cautelosa, precisa, obediente.

Sem dizer mais nada aproximou-se da saída e ia tocar na maçaneta quando se virou para trás e questionou, "Por acaso não tem aí um cigarro e um isqueiro?"

OlharesOnde histórias criam vida. Descubra agora