VIII

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Arrastou-se até uma parede para se conseguir levantar melhor. Apoiando-se na mesa, ergueu-se dolorosamente e gemeu com a dor.

À sua volta, a sala estava agora num desalinho. As bancadas fora do lugar, as cadeiras tombadas, mais parecia que um enorme furacão aparecera repentinamente e destruíra tudo.

Quase aos seus pés, os dois brutamontes jaziam inconscientes. Embora, se Carlisle tivesse razão, dentro de poucas horas estariam mortos como Jessamine.

O seu batimento cardíaco encontrava-se excessivamente apressado, apesar dos efeitos da adrenalina estarem a passar agora que a luta terminara.


As nódoas negras que a cobriam começavam a fazerem-se sentir.

Limpou o canto dos lábios com a manga do casaco e reparou na diminuta nódoa de sangue que deixara para trás.

Sentia-se como se o peso do mundo estivesse sobre si, tinha a cabeça a andar à roda com toda aquela confusão.

Deixou-se ficar encostada à mesa a recuperar o fôlego e inclinou o pescoço para trás.

Acreditava que o laboratório onde se encontrava era à prova de som, ou já todo o edifício estaria lá em peso. Queria pelo menos acreditar que assim o era.

Afastou-se do seu encosto e rodou o
ombro esquerdo para o relaxar antes de deslocar o seu olhar para o velho deitado no chão a respirar pesadamente.

Utilizou o pé para fazer com que ele rodasse sobre si e ficasse virado para ela. Depois acocorou-se à sua frente.

"Como podes ver", as suas palavras entrecortadas pela respiração agitada dela. "Não levou a lado nenhum.", pousou uma mão sobre o pescoço dele, o seu relógio a brilhar-lhe intacto no pulso. "Agora vais me dizer qual é a password ou vou ter de fazer o mesmo contigo?"

O doutor sorriu, os seus dentes manchados de sangue.

"Se me matares, não saberás a resposta.", disse lentamente e, com a sua falta de paciência, ela bateu-lhe fortemente com a palma da mão no braço.

Deslocara-o quando caíra, embora não admitisse que lhe doía, mas quando Annalise o golpeou ele grunhiu.

"Estou bastante cansada e com muita pouca vontade de te ouvir.", sussurou-lhe ela, puxando-lhe em seguida pelo cabelo de forma a que ambos rostos ficassem ao mesmo nível. "Agora, a password."

Carlisle cuspiu-lhe para o rosto e em troca ela deixou-o cair e deu-lhe com a ponta do sapato nas costelas doridas.

Desta vez ele gritou com a dor.

Afastou-se dele e limpou o rosto ao veludo do casaco e em seguida passou ambas as mãos pelo cabelo. Tirou então a horrorosa veste, atirando-a para o chão, e amarrou o cabelo com o elástico que tinha à volta do pulso.

Arregaçou as mangas da camisa e olhou o homem aos seus pés.

"Diz-me e prometo que nunca mais me tens de ver a frente.", dizia a verdade, quanto mais depressa se visse livre da cara dele mais aliviada ficaria.

"Não acredito em ti.", admitiu ele e ela encostou-se à moldura da porta.

Ele era persistente. Provavelmente a única coisa que respeitava nele. Foi até ao computador e colocou a pen drive, esperando que começasse a transferir automaticamente, mas nada aconteceu.

Soqueou a superfície em fúria. Eram quase três e meia da manhã. Já não deveria estar ali.

Num impulso de raiva abaixou-se para apanhar a arma de um dos guarda-costas e apontou-a ao cientista.

Este nem reagiu com o choque.

"Vais me dizer ou vou ter de chegar a extremos?"

"Mata-me então. Não te direi nada."

Ela sorriu. "Oh mas eu não te vou matar. Há coisas muito piores que a morte."

Fez a pistola deslizar paralela ao corpo dele. Primeiro a cabeça, depois o tronco, as pernas, até ficar a apontar para os pés dele.

"A minha resposta continua a ser não.", respondeu ele mal conseguindo respirar.

Annalise apertou o gatilho sem pensar duas vezes. Nunca disparara uma arma antes mas Jessamine parecia ser experiente no assunto.

Mas nada a preparara para o estrondo, a força com que a arma se convulcionara na sua mão, o som horrível da bala a penetrar carne e do grito excruciante de Carlisle.

Assustou-se. Deixou a arma cair ao chão.

Parte dela desejava nunca o ter feito mas agora já era tarde para se arrepender. Olhou para o homem. Este estava desmaiado. Ao ver o sangue no pé dele sentiu o estômago a dar voltas mas não cedeu à vontade que tinha de vomitar.

Ajoelhou-se para se certificar que a sua vítima ainda se encontrava vivo. Ainda respirava. O coração ainda batia.

Levantou-se e arrastou os pés lentamente até ao tanque com o líquido laranja. Pousou uma mão sobre ele e acariciou o vidro.

"Tornei-me num monstro.", murmurou ao olhar o rosto sereno da criatura e suspirou.

A sua mão caiu até ao teclado que decorava a estranha cama. Os seus sinais vitais ondulavam no ecrã verde ao lado das teclas.

Pressionou o botão de abrir e o extremo do tubo começou a levantar, a parte superior a deslizar para o lado até se encontrar aberto como uma piscina.

O líquido a mais jorrou pela abertura e quando a atingiu sentiu um cheiro enjoativo a químicos e borracha queimada.

Mas ela ansiava por mais alguma coisa. Só uma reação que fosse.

Ele não se mexeu nem acordou.

Ela não sabia o que esperava. Talvez
que ele abrisse os olhos. Que olhasse para ela. Talvez que não tivesse de sair dali sozinha.

De uma maneira ou outra o desapontamento fez-se sentir rapidamente e ela levantou-se para poder observar o tanque de cima.

Acariciou-lhe a face esverdeada.

Os seus dedos ficaram viscosos do contacto mas limitou-se a sorrir tristemente.

"Espero que nunca sejas como eu.", disse-lhe e depois tirou a mão. "És livre agora. Já não tens nada que te prenda. Mal possas vai."

E depois afastou-se. Olhou o velho a dormir no chão e depois uma última vez para o tanque.

"Já devia ter feito o mesmo há muito tempo."

Aproximou-se de uma das mesas de metal e olhou o seu reflexo. O sangue, as nódoas negras, as olheiras debaixo dos seus olhos.

Fechou os olhos por uns momentos e sentiu aquela sensação de frio já tão familiar a vir de dentro de si. E tão depressa quanto viera, desaparecera.


Quando abriu os olhos já não era ela outra vez.

Lembrou-se do nome, Nora Johnson, e arranjou a roupa rapidamente antes de de preparar para abrir a porta.

O que não notara é que ele se encontrava ali, deitado no chão, magoado, a visão desfocada com a dores, a arma a tremer-lhe nas mãos mas teimosamente apontada na direção dela.

"Eu é que serei o último a rir!", exclamou ao disparar.

Só teve tempo de se desviar um pouco antes que a bala a atingisse na perna direita, mesmo na parte da coxa.


Gritou com a dor e tombou para o lado. As lágrimas a começarem a jorrar.

Mordeu o lábio e bateu com os punhos no chão, furiosa consigo mesma por ter baixado a guarda.

Porquê? Por que é que de cada vez que ela achava que ia ter paz tinha de acontecer algo que arruinasse isso?

As dores eram tão fortes que começou a perder a consciência. E antes de tudo ficar envolto de escuridão ela soube logo que nunca mais conseguiria voltar àquele seu quarto infernal.

E Deus, o quanto ela preferia lá estar naquele momento.

OlharesOnde histórias criam vida. Descubra agora