Negativamente, Rita balançou a cabeça.
— Ah, nós não somos celebridades — disse, sentando numa poltrona. — Só você pode nos ouvir. E sabemos tudo sobre você.
— Besteira.
— Águas de Março, de Tom Jobim, era a música que sua mãe cantava para você quando o seu mundo desabava. É uma bela música. Mas você ainda não superou, não foi? Nomdae é um idiota. Um dos princípios básicos de harmonia do receptáculo com a gente é que corpo e mente precisam se recuperar juntos. Seu corpo ainda carrega alguma cicatriz, não é? A última vez que ela cantou Águas de Março foi na rodovia interestadual. Você estava muito triste com a mudança de cidade, o novo trabalho dela, e ela tentou te acalmar. A viagem era só mais um dos muitos sacrifícios para levar conforto à filha adolescente, afinal, ser mãe solteira é uma situação complexa. E ela fez muito por você. O único problema foi aquele motorista bêbado vindo na contramão.
Silêncio. Os olhos de Rita ficaram marejados.
— Como pode saber disso?
— Eu estou em você. O Nomdae também.
Rita ficou confusa, mas não tirou os olhos da garota de cabelo ruivo.
Com o dedo indicador, Daemon deu batidinhas na própria cabeça.
— Sou sua consciência, Rita. Ele é o seu subconsciente.
Os olhos de Rita reviraram. Teve um forte enjoo.
— Parece loucura, eu sei. Tenha calma.
Rita foi até a janela.
— Preciso de ar.
— Você vai pular? — indagou Daemon num sobressalto.
— E morrer? — ela devolveu. — Não sou louca, Dae-sei-lá-quem-ou-o-quê. Pensar em suicídio foi só um surto. Um lapso, como os professores da faculdade dizem ao esquecerem algo importante.
— Viver é importante, Rita.
— Eu sei.
— Você deixou que as desventuras desta noite abominável nutrissem o subconsciente, e ele tomou o controle.
— Os estudantes de Psicologia dariam a vida para estarem aqui.
— Na verdade, não nos manifestamos de tal modo com frequência.
Daemon suspirou. Uma forte rajada de ar penetrou o recinto.
— Há um Daemon e um Nomdae em todo receptáculo pelo mundo. Somos retratados pelo senso comum como o lado bom e o mau, situados em cada ombro, ou, cientificamente, como uma doença mental, devido a relatos de escutar vozes ou visualizar vultos. Bem, é impossível o receptáculo matar seu Daemon ou seu Nomdae. Uma experiência frustrante, não é? Como você, por algum motivo inexplicável, figuras ilustres também tiveram atritos com o consciente e o subconsciente: Moisés, Samuel, Joana D'Arc, D. Maria I, entre outras personagens históricas. Eles viveram em lugares de energia poderosa e, sem dúvida, foram influenciados por ela.
— Isso quer dizer que a energia do hotel pode ter possibilitado...
— Provavelmente.
Rita arrepiou-se, mas continuou olhando pela janela.
— Como vou voltar para a faculdade? Carlos... o vídeo...
— Volte de cabeça erguida, Rita. Você encontrará outros amores.
— Voltar? — ironizou ela. — Isso não é fácil, sabia?
— Lembre-se da sua mãe. Ela fez muitos sacrifícios. A vida dela não foi fácil, mas ela viveu o que tinha que viver ao seu lado. Sua felicidade era a felicidade dela. Você, Rita, ainda tem muito que enfrentar nesta vida. Dê tempo ao tempo. Logo, outro vídeo aparece e todo mundo esquece o seu. É sempre assim.
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DELÍRIOS SOMBRIOS
ParanormalDELÍRIOS SOMBRIOS foi publicado originalmente em uma antologia da Andross Editora. KING EDGAR HOTEL (Onde medos e horrores se revelam), organizada por Alfer Medeiros e Lara Luft, em 2015. + informações sobre a obra completa: http://www.bibliotecadot...