DIÁRIO: Sexta, 02 de Agosto de 2013

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2:59.

Acordei de um sonho estranho. Sonhei com Jonny, um peixinho que tinha quando era pequena. Morávamos num apartamento onde não se podiam ter gatos nem cachorros. Minha mãe sempre acreditou que ter animais de estimação fazia bem para as crianças. Ela dizia que ajudava a me ensinar o que é ter responsabilidade sobre outra vida. Eu dava ração para ele todos os dias... Mas um dia ele morreu. Tá aí uma lição da qual nunca vou esquecer: "tudo que é vivo morre".

Eu cheguei em casa da escola e Jonny estava parado, virado de barriga pra cima. Minha mãe se aproximou e disse que a gente tinha que conversar.

"Tudo que é vivo, morre", ela disse. Ela falou que aquilo ia acontecer comigo um dia, e que também ia acontecer com ela. Eu tive medo. Tinha apenas seis anos.

Nunca mais tivemos animais em casa. No lugar do pequeno aquário do Jonny minha mãe colocou um jarro com flores.

No meu sonho Jonny estava num aquário gigante no meio da minha sala, com muitos outros peixes. Ele parecia feliz. Mas o cheiro daquela água de peixe me deixava enjoada.

Preciso pedir pro síndico ver de onde está vendo esse cheiro. Amanhã vou ver isso.

Esse tipo de lembrança me faz pensar num dos motivos de eu ter virado psicóloga. Meu pai tinha uma esquizofrenia leve; ele era capaz de amar e trabalhar como qualquer pessoa, mas precisava tomar alguns remédios e fazer terapia pro resto da vida. Mas o caso que me fascinou e assustou foi o do meu tio, irmão dele. O cara tinha família, sempre vinha aqui em casa com minhas primas, a gente brincava e era legal. Fora os presentes que ele sempre trazia. Mas quando a empresa dele faliu, ele simplesmente surtou de uma hora pra outra.

Dizem que a mente é como um cristal, uma vez que quebrada nunca mais volta ao seu estado original. Mas não foi belo e solene como uma taça de cristal se partindo, o surto do meu tio foi mais como um acidente de carro.... Meu Deus, eu já tinha me esquecido de tudo isso - e preferia continuar sem lembrar.

Na pior fase ele tentou até mesmo matar minha tia, e jogar uma de minhas primas da janela... Não quero pensar nisso. Dá medo saber que as pessoas podem perder sua mente de uma hora pra outra. Só de saber que isso é possível me sento mal.

9:34.

Eu achava que meu artigo estava perfeito, mas o meu orientador fez muitos apontamentos. Até erro de português tinha. Além disso ele falou que a ideia é fraca, e o canalha deixa pra dizer isso depois de quase um mês de pesquisa de campo. Acho que ele não gostou da publicidade que consegui, ou está com inveja. Me senti mal, afinal esse artigo pode definir minha carreira. Ela é muito importante, ainda mais agora com a publicidade que ganhou.

Hoje passei em frente a uma loja de animais no caminho pro trabalho. O semáforo estava vermelho. Paro lá todos os dias e nunca tinha reparado na loja que é especializada em, veja só: aquários. Fiquei com vontade de comprar um peixe pra minha sala igual ao Jonny. Mas estava atrasada para o trabalho, e aqui no centro da cidade é praticamente impossível encontrar uma vaga pra estacionar depois das 8h.

Fiquei pensando se o Jonny não tinha morrido por minha causa, afinal de contas o que pode ter me feito sonhar com ele foi o cheiro ruim que entra pela janela. Se esse odor me fez lembrar dele, é porque talvez o aquário estivesse sujo. Não me lembro de trocar a água com frequência.

Nosso cérebro é mesmo engraçado. Certamente ele justificou o cheiro ruim no sonho pra eu não ter que acordar. É igual quando você sonha que está urinando e acorda com vontade de ir no banheiro. Isso é porque a mente segurou o máximo que pode e pra não te acordar até coloca dentro do sonho a sensação de que você já satisfez aquela necessidade, mas quando não dá mais pra segurar você tem que acordar pra ir até o vaso.

11:05

Tenho que tomar menos café, ou meus dentes vão ficar amarelados. Essa mania pode me fazer gastar uma boa grana com dentista, além de me dar vontade de fumar. O que eu posso fazer se a dona Tainá faz um café tão delicioso? Ele é encorpado, e ela exagera um pouco no açúcar do jeito que eu gosto.

Interessante como ela vem sempre me perguntar alguma coisa relacionada a saúde. A pobre senhora pensa que eu sou médica e por mais que eu tente explicar ela não entende. Além disso só me chama de "dotôra" o dia todo.

16:08

Hoje fiz cerca de cinco entrevistas. Quase nenhuma história interessante: um adolescente disse que viu um fantasma numa casa abandonada quando era pequeno; uma senhora me fez um relato envolvendo uma "mula sem cabeça" na cidade de onde ela veio; e houveram dois relatos de avistamento de OVNIs. Mas uma senhora disse que sonhou que sua irmã lhe contava que havia morrido e quando despertou recebeu a notícia de que ela realmente havia vindo a falecer.

Não dou credibilidade a parapsicologia, mas ela diz que, se preservado intacto, após a morte do sujeito o cérebro ainda emite ondas por cerca de vinte minutos. Mas daí você precisa considerar que existem coisas como "telepatia".

Até a Thalyta, que tem uma queda pelo sobrenatural, achou a teoria ridícula.

Minhas mãos doem de tanto escrever.

18:13

Hoje dei carona para Thalyta porque acabei fazendo ela perder o ônibus. Mas na verdade eu criei mais uma armadilha e ela caiu direitinho. Eu preciso fazer terapia, ando muito tensa. E quando estou assim acabo encurralando amigos e desabafando de uma forma vergonhosa.

— Sabe, eu estou saindo com esse cara. Mas não estou pronta pra um relacionamento sério. Ele é bem culto apesar de não ser formado em nada, mas tem um lado religioso que às vezes me incomoda. Ele é um desses músicos sustentados pelos pais — comecei e sem dar tempo dela responder emendei em outro assunto: — Meu apartamento está com um cheiro esquisito e o síndico não faz nada pra resolver. Tô acordando a noite assustada, esses dias fiquei até sem fôlego. Não sei mais o que fazer.

— Você precisa tirar umas férias, quem sabe resolva. Você está sob muita pressão com essa história toda de pesquisa... Mas a psicóloga aqui é você, enfim... — disse ela. Segurava a alça da porta como se fosse arrancá-la. Ela não estava esperando por aquilo afinal nunca tínhamos tido uma conversa tão íntima. O resto da viagem foi tomada por um silêncio constrangedor.

21:21

Assisti o documentário sobre avida do Jung de novo. Nunca me canso, pois me inspira. Mas hoje estou cansadade mais pra escrever. Me receitei uma boa noite de sono, afinal de contas apsicóloga aqui sou eu.    

A Noiva do Homem PeixeOnde histórias criam vida. Descubra agora