3:33
Acordei assustada novamente, mas desta vez eu também estava com falta de ar e vontade de vomitar. E novamente debaixo da cama.
Preciso procurar um psiquiatra, isso não pode ser normal.
10:45
Estive observando como as pessoas usam o meu título a seu favor. A dona Tainá gosta de se colocar no papel de pessoa humilde e me chamar de "doutora" a auxilia a fazer isso. Já a Thalyta só me chama de doutora quando quer usar o título pra influenciar alguém. Hoje solicitaram a ajuda dela em outro setor da universidade, e ela alegou no telefone que "a doutora tinha muitos atendimentos à tarde" e que ia precisar da ajuda dela.
Outro dia ela queria se livrar de uma senhora que queria atendimento para o filho fora da hora e ela disse que "a doutora só entendia com hora marcada".
14:56
Hoje almocei com o Márcio. Como alguém pode ir a um restaurante japonês ao meio-dia? Mas ele insistiu e eu decidi ceder. A comida não estava ruim, mas o cheiro do restaurante me incomodou. Ele disse que eu estava cismada.
Contei sobre o relato do senhor com cabeça de polvo.
— Só consigo pensar na deusa suméria Tiamat, que era uma espécie de serpente marinha — ele disse.
— Isso é o que dizem — respondi. — Muita gente a confunde com um leviatã, uma hidra ou coisa do tipo. E ela era mãe dos monstros, mãe dos deuses e quando Marduk a matou os céus e a terra foram feitos.
— Mitologia é tudo igual — ele falou. — Zeus matando Cronos, aqueles caras da mitologia nórdica que matam um gigante e criam o mundo...
— Enfim, não tem nada a ver com o sonho do cara. — Eu disse pegando mais um sushi.
— Eu não sei como você aguenta ouvir essas histórias o dia todo.
— Eu sou a rainha das aberrações... — confessei.
— Thaís, com "T" de Tiamat. A rainha dos fantasmas, E.T's e monstros. — Disse ele rindo.
— Sabe, outro dia ouvi uma história que me deu ideia pra uma teoria louca. — Eu disse.
— Que teoria?
— Você fica todo empolgado com essas coisas. Não vou alimentar seu lado "místico".
— Você sabe que "essas coisas" são reais. São experiências que muitas pessoas vivem. As explicações são idiotas, mas os efeitos são reais.
— Por isso que eu não quero compartilhar isso com você...
— Fala logo.
— Enfim. Depois de uma entrevista em que um cara falou que os pensamentos dele "emanam" de uma criatura que apareceu num sonho eu pensei que o Inconsciente Coletivo fosse uma forma de "rede mental", e que é possível acessar esses conhecimentos.
— Meditação é a chave: se você limpar a mente talvez se consiga acessar esse conhecimento. Você mesma não diz que "pensar" às vezes atrapalha "fazer"? Inclusive isso vai de encontro com a filosofia budista!
— Não sou eu quem diz, é a psicanálise! — Eu disse rindo.
— As palavras saíram da sua boca, mas enfim. Eu sei um jeito de meditar que você vai gostar — Disse ele tomando um gole de saquê e me encarando com um olhar malicioso.
— Lá vem você com aquele papo de sexo tântrico de novo.
— Não é sexo tântrico, já te falei! Você é muito cheia "das teorias", tá na hora de começar a praticar algo — ele sugeriu.
— Não é assim que funciona a ciência.
— Mas os grandes mestres, os grandes gênios são geralmente aqueles que inventam novas regras. E como eles fazem isso? Quebrando as regras que já existem, certo? Imagina o quão rica seria a sua pesquisa se você tivesse acesso a esse conhecimento pleno?
18:53
Hoje no fim do expediente ofereci carona para a Thalyta de novo, mas ela recusou desesperadamente. Senti vergonha de mim mesma e tentei mudar o assunto:
— ... Sabe, outro dia um senhor fez um relato interessante. Ele disse que tinha asas de morcego, mas estava caindo; tinha cabeça de polvo, mas estava se afogando; estava dormindo, mas estava morto.
— Cabeça de polvo? Asas de morcego como as de um dragão?
— Sim.
— Sabe se ele tinha corpo de dragão? Sabe, tipo de um lagarto — Ela perguntou. Eu só conseguia pensar na sorte que tive em conseguir mudar de assunto.
— Não perguntei, mas você entende dessas coisas? Esse cara que eu tô saindo disse que tem algo a ver com os mitos sumérios.
— Já leu Lovecraft?
— Lovecraft?
— Howard Philips Lovecraft. Ele escreveu um conto em que aparece uma criatura com essas características. O nome é "O Chamado De Cthulhu".
— Vou procurar.
19:56
Li o conto do tal Lovecraft. É interessante a ideia de seres que vivem nesse mundo antes de nós existirmos. Senti mesmo uma pegada da mitologia babilônica e suméria na história. É uma coincidência muito grande aquele homem ter sonhado que era o Cthulhu. Aliás, a pronuncia dessa palavra é meio intrigante. Na minha cabeça soa como o som de uma pessoa gritando debaixo d'água. Essa imagem mental me deu arrepios. Me imaginei afogando num oceano de água suja dos restos de peixe morto. Foi uma imagem mental bem vívida. Meu coração disparou... E esse cheiro maldito, vou apresentar uma reclamação formal por escrito ao síndico e falar disso na reunião de condomínio.
Alguém está batendo na porta. Deve ser o Márcio, ele estava vindo pra cá passar a noite e prometeu trazer aquele vinho que adoro. Espero que ele tenha esquecido a história de "sexo místico"...
21:49
Me convenceu, de alguma forma o safado me convenceu a fazer aquilo. Não entendo, mas foi tão bom. Minha mente viajou por lugares que antes eu não poderia conceber nem mesmo na minha imaginação. Eu sei de coisas que não consigo explicar. Eu tenho que relatar essa experiência no meu artigo. Todo esse conhecimento, ele tem que ser compartilhado!
23:59
Tive um sonho estranho, pelo menos pareceu um sonho... Acabei de me levantar da cama.
O Márcio ainda está aqui e acho que na verdade tive uma alucinação. Eu estava aqui no quarto quando escutei um barulho vindo da TV, mas a imagem estava toda preta. De repente símbolos estranhos começaram a surgir na tela, símbolos que eu nunca tinha visto antes. Não se parecia com nada inteligível, mas eu ainda assim consegui ler:
ph'nglui mglw'nafh Cthulhu R'lyeh wgah'nagl fhtagn
Então os dizeres mudaram:
"Em sua casa em R'lye o falecido Cthulhu aguarda sonhando"
Como alguém que já morreu pode sonhar?
E então olhei para as minhas mãos e vi vermes. Minha pele estava esverdeada e pendia dos ossos, então olhei para o espelho e percebi que no lugar dos olhos eu tinha dois buracos sombrios. A TV começou a exibir a imagem de um mar agitado do qual surgia uma ilha com pedras que pareciam ter sido talhadas em formas assustadoramente indescritíveis. Eu agora estava submersa, morta. Sabia que algo sinistro me observava, e eu nunca mais poderia me cobrir, pois a minha mente estava nua.
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A Noiva do Homem Peixe
HorrorUm estranho arquivo policial finalmente vem a público depois de alguns meses. Em Itaguá, interior do estado do Rio de Janeiro, um assassinato cercado de mistério choca a população. Uma das envolvidas neste crime bárbaro é uma jovem psicóloga que rel...