1 - OS PRECONCEITOS DOS FILÓSOFOS

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  O amor pela verdade que nos conduzirá a muitas perigosasaventuras, essa famosíssima veracidade de que todos osfilósofos sempre falaram respeitosamente — quantosproblemas já nos colocou! E problemas singulares, malignos,ambíguos! Apesar da velhice da estória, parece que acaba deacontecer. Se acabássemos, por esgotamento, sendodesconfiados e impacientes, que haveria de estranho? Éestranhável que essa esfinge nos tenha levado a nos formulartoda uma série de perguntas? Quem afinal vem aqui interrogarnos?Que parte de nós tende "para a verdade?" Detivemo-nosante o problema da origem dessa vontade, para ficar emsuspenso diante de outro problema ainda mais importante?Interrogamo-nos sobre o valor dessa vontade. Pode ser quedesejamos a verdade, mas por que afastar o não verdadeiro ou aincerteza e até a ignorância? Foi a problema da validade doverdadeiro que se colocou frente a nós ou fomos nós que oprocuramos? Quem é Édipo aqui? e quem é a Esfinge?Encontramo-nos frente a uma encruzilhada de questões eproblemas. E parece, afinal de contas, que não foram colocadosaté agora, que fomos os primeiros a percebê-los, que nosatrevemos a confrontá-los, já que implicam um risco, talvez amaior dos riscos.2Nossas mentes rechaçam a idéia do nascimento de uma coisaque pode nascer de. uma contrária, por exemplo: a verdade doerro; a vontade do verdadeiro da vontade do erro; o atodesinteressado do egoísmo ou a contemplação pura do sábio, dacobiça. Tal origem parece impossível: pensar nisso parecepróprio de loucos. As realidades mais sublimes devem ter outra  origem, que lhes seja peculiar. Não pode ser sua mãe essemundo efêmero, falaz, ilusório e miserável, esta emaranhada,cadeia de ilusões, desejos e frustrações. No seio do ser, no qualnão morrerá nunca, num deus oculto, na "coisa em si" é ondedeve se lobrigar seu princípio, ali e em nenhuma outra parte.Este é o preconceito característico dos metafísicos de todos ostempos, este gênero de apreciação se encontra na base de todosseus procedimentos lógicos. A partir desta "crença" esforçamseem alcançar um "saber", criam a coisa que, afinal, serápomposamente batizada com o nome de "verdade". A crençamedular dos metafísicos é a crença na antinomia dos valo. res.Nem aos mais avisados dentre eles ocorreram dúvidas desde oinício, quando teria sido mais necessário: ainda que tivessemfeito vota "de onnibus dubitandum". Entretanto, deve-seduvidar, imediatamente, da existência de antinomias; depoisdever-se-ia perguntar se as valorações e as oposições de valoresusuais às quais os metafísicos apuseram seu sinete, não sãoapenas valorações superficiais, perspectivas momentâneas,tomadas a partir de um ângulo determinado, perspectivas depeixe, no faizão dos pintores. Qualquer que seja o valor queconcedamos ao verdadeiro, à veracidade, ao desinteresse,poderia acontecer que nos víssemos obrigados a atribuir àaparência, à vontade da ilusão, ao egoísmo e à cobiça, um valorsuperior e mais essencial à vida; poder-se-ia chegar a suporinclusive que as coisas boas têm um valor pela forma insidiosaem que estão emaranhadas e talvez até cheguem a ser idênticasem essência às coisas más que parecem suas contrárias. Talvez!... mas há quem se preocupe com esses perigosos 'talvez'? Esse,terá que esperar a chegada de uma nova espécie de filósofos,diferentes em gostos e inclinações a seus predecessores:filósofos do perigoso 'talvez', em todos os sentidos da palavra.Falo com toda sinceridade, pois vejo a vinda desses novosfilósofos...Terminei por acreditar que a maior parte do pensamentoconsciente deve incluir-se entre as atividades instintivas sem seexcetuar a pensamento filosófico. Cheguei a essa idéia depoisde examinar detidamente o pensamento dos filósofos e de ler assuas entrelinhas. Ante esta perspectiva será necessário revisarnossos juízos a esse respeito, como já o fizemos a respeito dahereditariedade e as chamadas qualidades 'inatas'. Assim comoo ato do nascimento tem pouca importância relativamente aoprocesso hereditário, assim também o "consciente" não se opõenunca de modo decisivo ao instintivo. A maior parte dopensamento consciente de um filósofo está governada por seusinstintos e forçosamente conduzido por vias definidas. Atrás detoda lógica e da aparente liberdade de seus movimentos, hávalorações, ou melhor, exigências fisiológicas impostas pelanecessidade de manter um determinado gênero de vida. Daí aidéia, por exemplo, de que tem mais valor o determinado que oindeterminado, a aparência menos valor que a "verdade".Apesar da importância normativa que tem para nós, tais juizespoderiam ser apenas superficiais, uma espécie de tolice,necessária para a conservação de seres como nós.Naturalmente, aceitando que o homem não seja, precisamente,a "medida das coisas"...4A falsidade de um juízo não pode constituir, em nossaopinião, uma objeção contra esse juízo. Esta poderia ser umadas afirmativas mais surpreendentes de nossa linguagem. Aquestão é saber em que medida este juízo serve para conservara espécie, para acelerar, enriquecer e manter a vida. Porprincípio estamos dispostos a sustentar que os juízos maisfalsos (e entre estes os "juízos sintéticos a priori") são para nósmais indispensáveis, que o homem não poderia viver sem as ficções da lógica, sem relacionar a realidade com a medida domundo puramente imaginário do incondicionado e sem falsearconstantemente o mundo através do número; renunciar aosjuízos falsos eqüivaleria a renunciar à vida, a renegar à vida.Admitir que o não-verdadeiro é a condição da vida, é opor-seaudazmente ao sentimento que se tem habitualmente dosvalores. Uma filosofia que se permita tal intrepidez se coloca,apenas por este fato, além do bem e do mal.5O que nos incita a olhar todos os filósofos de uma só vez,com desconfiança e troça, não é porque percebemos quãoinocentes são, nem com que facilidade se enganamrepetidamente. Em outras palavras, não é frívolo nem infantilindicar a falta de sinceridade com que elevam um coro unânimede virtuosos e lastimosos protestos quando se toca, ainda quesuperficialmente, o problema de sua sinceridade. Reagem comuma atitude de conquista de suas opiniões através do exercícioespontâneo de uma dialética pura, fria e impassível, quando arealidade demonstra que a maioria das vezes apenas se trata deuma afirmação arbitrária, de um capricho, de uma intuição oude um desejo intimo e abstrato que defendem com razõesrebuscadas durante muito tempo e, de certo modo, bastanteempíricas. Ainda que o neguem, são advogados efreqüentemente astutos defensores de seus preconceitos, queeles chamam "verdades". E ainda que não o creiam, estão muitolonge de possuir o heroísmo próprio da consciência que seconfessa a si mesma sua mentira, isto é, muito longe do valorque se deseja ouvir, seja para advertir um amigo ou paracolocar em guarda o inimigo ou para burlar a si mesmo. Ahipocrisia rígida e virtuosa com que o velho Kant nos leva portodas as veredas de sua dialética para nos induzir a aceitar seuimperativo categórico, é um espetáculo que nos faz sentir oimenso prazer de descobrir as pequenas e maliciosas sutilezas  dos velhos moralistas e dos pregado. res. Somemos a tudo issoo malabarismo, pretensamente matemático, com que Spinozatermina por escudar e mascarar sua filosofia, tratando deintimidar assim, desde o princípio, a audácia do assaltante quese atreve a pôr os olhos numa virgem invencível: Palas Atenéia.Como se pode ver através de tão pequeno broquei e inútilmáscara, a timidez e a vulnerabilidade de um ente doente esolitário.6Passo a passo, fui descobrindo que até o presente, emtoda grande filosofia se encontram enxertadas não apenas aconfissão espiritual, mas suas sutis "memórias", tanto se assimo desejou seu autor quanto se não se apercebeu disso. Mesmoassim, observei que em toda filosofia as intenções morais (ouimorais) constituem a semente donde nasce a planta completa.Com efeito, se queremos explicar como nasceram realmente asafirmações metafísicas mais transcendentes de certos filósofos,seria conveniente perguntar-nos antes de tudo: A que moralquerem conduzir-nos? A resposta, a meu ver, é que não se podecrer na existência de um "instinto do conhecimento", que seriao pai da filosofia. Pelo contrário, acredito que outro instintotenha se servido do conhecimento (ou do desconhecimento)como instrumento, porém se examinássemos os instintosfundamentais, no homem, no intento de saber até que ponto osfilósofos puderam divertir-se em seu papel de gêniosinspiradores (de daimons ou de duendes), veríamos que todosfizeram filosofia um dia ou outro, e que cada um delesconsidera sua filosofia como fim único da existência, comodona legítima dos demais instintos. Pois não é menos certo quetodo instinto quisesse chegar ao predomínio e, enquanto tal,aspira a filosofar. Pode, entretanto, acontecer doutro modo,inclusive "melhor" se se desejar entre os sábios, entre osespíritos verdadeiramente científicos, porque, penso, talvez  haja neles algo parecido ao instinto do conhecimento, algoparecido a uma pequena peça de relojoaria independente e, bemmontada. cumpra sua tarefa sem que os demais instintos dosábio participem dela de modo essencial. De acordo com o quevemos e pensamos, os verdadeiros "interesses" do sábio seencontram geralmente noutra parte: por exemplo, na política,na sua família, no seu meio de subsistência. Daí torna-seinclusive indiferente que o sábio aplique seu pequenomecanismo a um determinado problema científico, e poucoimporta que o sábio do "porvir" (jovem sábio) se converta numbom filósofo, num bom conhecedor de cogumelos ou num bomquímico. No filósofo, nada há que possa ser consideradoimpessoal. Quanto à sua moral, oferece particular e muitoespecialmente um testemunho claro e decisivo do que é, querdizer, da hierarquia que seque nele os instintos mais íntimos desua natureza.7Até que grau pode chegar a malícia dos filósofos?Repassando a história da pensamento filosófico, talvez não seencontre nada mais venenoso que a glosa que Epicuro sepermitiu contra Platão e seus seguidores: chamava-osdionysiokolakes. Esta palavra significa etimologicamente, e àprimeira vista "aduladores de Dionísio" isto é, literalmenteexpressando: "esbirros do tirano", vis cortesãos, porémsignifica ainda, que não eram mais que simples comediantes,sem a menor sombra de seriedade (uma vez que Dionysokoloxera uma designação popular do comediante). Nesta últimainterpretação, se fazia patente o veneno que Epicuro lançavacontra Platão. Sentia-se humilhado pelo porte majestoso, pelashábeis entradas que tão bem faziam Platão e seus discípulos eque ele não :sabia executar, apesar de ter sido autor de 300volumes de grande valor encerrado no jardim de sua escola deSamos. Por que esta manifestação de maldade? Por despeito e  in. veja a Platão? O que se pode afirmar, sem dar lugar adúvidas, é que foram necessários cem anos para que a Gréciadescobrisse quem era, na verdade, Epicuro, aquele Deus dosjardins. Supondo-se que tenha chegado a se dar conta.8Portanto, é oportuno repetir afirmativamente que em todafilosofia a "convicção" do filósofo, num preciso momentomostra-se de uma maneira que poderia ser bem expressadaatravés da linguagem de um antigo mistério medieval;"Adventavit asinuspulcher et fortissimus".9Como se enganam aqueles que querem viver "de acordo coma natureza"! Nobres estóicos, que falsas palavras! Com efeito,imaginai um ser moldado pela Natureza, prodigioso à suaimagem, infinitamente indiferente, carente de intenções, evislumbres de piedade e justiça, fecundo, estéril e incerto, aomesmo tempo; porém imagina! também o que significa aprópria indiferença convertida em poder: poderíeis viver deacordo com essa diferença? Viver é querer ser diferente daNatureza, formar juízos de valor, preferir, ser injusto, limitado,querer ser diferente! Admitindo que o lema "de acordo com aNatureza" signifique no fundo "de acordo com a vida" seriapossível que atuásseis de outra forma? Por que então fazer umprincipio do que já sois, daquilo que podeis deixar de ser?Vede, pois, que em verdade, sucede exatamente o contrário:quando pretendeis desentranhar fervorosamente em a Naturezaos preceitos de nossas leis, o que buscais, na realidade, é algomuito distinto do que gostaríeis de encontrar. Os atores deimpostura, querendo enganar aos demais, promoveis a vingança  de vós mesmos! Vosso orgulho sempre demolida pretendeimpor à Natureza vossa moral e vosso ideal. Sim, porquedesejais que tudo quanto existe se reduza à vossa própriaimagem, fazendo uma prodigiosa e eterna apoteose e umageneralização do estoicismo. Porém, apesar de todo nosso amorpela verdade, vos empenhas em ver a Natureza como ela não é,em vê-la estóica, e finalmente, não podeis vê-la de outro modo.Não sei que orgulho limitado me inspira esta Insensataesperança, posto que, ainda que estando conscientes de que soisvosso próprio tirano, insistis em vosso erro, acreditando, que aNatureza se prestará à tirania, como se o estoicismo não fossetambém parte da natureza. Tudo isso, entretanto, é uma velha eeterna história, a filosofia, no fundo da Natureza, e seu contextovisível, é apenas esse instinto tirânico: a vontade de potênciaem seu aspecto mais intelectual, a vontade de "criar o mundo" eimplantar nele a causa primeira.  A sutileza, e quase poderia ser dito, a malícia, com a qualem toda Europa é atacado o problema do "mundo real" e do"mundo aparente", dá muito o que pensar e escutar; os que tãosomenteouvem a repetida canção da "vontade do verdadeiro"não têm o sentido da audição muito desenvolvido. Pode serque, em certos casos, essa "vontade do verdadeiro" chegue aformar parte do jogo; o que não deixaria de ser umaextravagante toleima, e aventureira, um orgulho metafísicoempenhado em manter uma posição perdida e que semprepreferiria uma mancheia de "certeza" a uma carrada de insossaspossibilidades. Também pode acontecer que existam fanáticosda consciência, puritanos que preferem morrer sobre uma vãilusão e não .sobre uma incerta realidade. Mas isto não só énihilismo, mas também sintoma de uma alma que se sentedesesperada e fatigada até a morte, por muito valorosa quepossam parecer as atitudes de semelhante virtude. Parece, sem dúvida, que nos pensadores mais vigorosos e vivazes, que aindasentem o desejo de viver, as coisas sucedem de outra forma:esses filósofos não mais concedem crédito à aparência, do quea seu corpo físico, segundo a qual a terra está imóvel,renunciando assim, com fingido bom humor, a seu própriocorpo. a seu bem mais seguro (pois há por acaso algo maisseguro do que o próprio corpo?). Quem tema certeza de que opropósito seja algo mais do que tratar de reconquistar umapossessão de outrora, mais segura que o corpo, um vestígio daantiga crença na "alma imortal" ou no "Deus de antanho", ouquiçá algumas dessas idéias com as quais se vivia melhor, maisseguro, mais alegre, do que com as "idéias modernas"? Estaatitude de desconfiança com respeito às "idéias modernas"consiste em negar-se a acreditar em tudo o que foi construídoontem e hoje. A isto se une, talvez, um ligeiro mal-estar. umsarcasmo para com esse "bric-à-brac" de conceitos heteróclitosque o chamado positivismo oferece hoje em dia aosconsumidores; pois quem possui um gosto refinado senterepugnância frente a essa mescla de feira e esse montão deretalhos que apresentam os filosofastros do real, para quemnada é novo, tampouco verdadeiro. Parece-me que, neste ponto,deve-se dar a razão aos céticos inimigos do real, a essesminuciosos analistas do conhecimento: o instinto que osdistancia da realidade presente não foi refutado. Que oferecemos escabrosos caminhos que nos conduzem para trás? Oessencial neles não é o retrocesso, mas o fato de que desejemcaminhar sozinhos. Com pouco mais de vigor, valentia, desentido artístico, poderiam ir além, e não para trás. Segundo me parece, todo mundo se esforça hoje paraminimizar a influência real que Kant exerceu na filosofia alemãe por dar importância ao problema do valor que ele mesmo seatribuía; Kant estava extremamente orgulhoso de sua tábua de20categorias. Com esta tábua na mão dizia: "Isto é o mais difícilque jamais se empreendeu nas aras da metafísica". Entendamosbem estas palavras: que jamais se empreendeu. Kantorgulhava-se de ter descoberto no homem uma nova faculdade,a de formular juizos sintéticos "a priori". Reconheçamos que seequivocava neste ponto, mas nem por isso o desenvolvimento eo rápido floresci, mento da filosofia alemã deixam de ser frutosdesse orgulho que incitou a todos os jovens pensadores adescobrir algum outro motivo de orgulho ou pelo menos,algumas "novas faculdades". Bem, reflitamos um pouco, postoque ainda temos tempo. De que modo são possíveis os juizossintéticos a priori? Perguntava-se Kant. Em poucas palavras,sua resposta foi esta: por meio de uma faculdade. infelizmente,não se expressou com tanta concisão mas de um modo prolixo,pomposo, com ostensivo luxo de pensamentos obscuros e delinguagem confusa até fazer incompreensível a jocosa tolicealemã que se absconde no fundo desta resposta. Todos sesentiram embriagados da alegria ante a idéia dessa novafaculdade, e o entusiasmo chegou às culminâncias quando Kantdescobriu mais uma faculdade moral do homem. Nesta épocaos alemães eram, todavia, morais, e ignoravam o "realismopolítico". Esta foi a lua-de-mel da filosofia alemã. Todos osjovens teólogos do seminário de Tübingen se dedicaram àbusca de "faculdades" novas. E o que foi não descobriram,nessa inocente época de juvenil riqueza, na qual a fada malignado romantismo embargava o espírito dos alemães com suasfanfarronices e canções! Não se distinguia ainda entre"descobrir" e "inventar". A principal descoberta foi a dafaculdade "supra-sensível". Schelling denominou-a intuiçãointelectual. satisfazendo assim aos mais fervorosos desejos deseus queridos alemães, cujos corações apenas aspiram àpiedade. A pior injustiça que se pode cometer contra essedescontrolado e novelesco movimento que era só juventude —ainda que tenha disfarçado com um véu de idéias cinzentas esenis — seria a de torná-lo a sério e aplicar-lhe, por exemplo,  as sanções da indignação moral. Finalmente, envelheceram e osonho desvaneceu-se. Chegou o mo. mento em que abriram osolhos, haviam sonhado e Kant foi o primeiro. "Por meio de umafaculdade", ou pelo menos, havia querido dizer, mas isto é umaresposta, uma explicação? Ou é simplesmente uma repetição dapergunta? Por que faz dormir o ópio? "Por meio de umafaculdade", pela virtus dormitiva, disse o médico de Molière:"Quia est in eo virtus dórmitivacuyus est natura sensus assoupire".Creio que é chegado o momento de substituir a pergunta deKant: "Como são possíveis os juízos sintéticos a priori?" poresta outra pergunta: "Por que é necessário acreditar nesta classede juízos?" Devemos lembrar que a conservação de seres denossa espécie necessita desses juízos que devem ser tidos!como verdadeiros, o que não impede por suposição, quepossam ser falsos, ou, para sermos mais claros, mais chãos eradicais: os juízos sintéticos a priori não deveriam ser"prováveis". Nós não temos nenhum direito sobre eles, sãocomo tantos outros juízos falsos que pronunciamos. Entretanto,necessitamos considerá-los verdadeiros: isto nada mais é queuma suposição imprescindível para viver. E se todavia deve-sereferir à prodigiosa ação que a "filosofia alemã" — espero quetodos compreendam o direito às aspas exerceu em toda aEuropa, temos de confessar que contribuiu para isso certa virtusdormitiva. Os ociosos de classe alta, os moralistas, os místicos,os artistas, as três quartas partes dos cristãos e osobscurantistas, políticos de qualquer nacionalidade se sentiamditosos por possuir na filosofia alemã um antídoto contra osensualismo ainda florescente que transmitia o século anterior aeste; em resumo, sensus assoupire ... A teoria atômica da matéria é uma das coisas melhorrebatidas que existem, e quiçá não exista em toda Europa um só22sábio que seja tão ignorante a ponto de conferir-lhe ainda certaimportância além daquela de uso doméstico (como meio deabreviação das fórmulas). Em primeiro lugar temos deagradecê-lo ao dálmata Boscovich. Para ele, o átomo é umcentro de força que explica todas as propriedades da matéria. EBoscovich foi, com o polonês Capérnico, o maior e mais.vigoroso adversário da aparência. Com efeito, se Copérnicologrou fazer-nos crer, contra o testemunho de nossos sentidos,que a Terra não está imóvel, Boscovich nos ensinou a renegar oúltimo artigo de fé que ainda subsistia no terreno da crença nos"corpos", na "matéria". E antes que Boscovich, já o haviaensinado Berkeley, o que havia de certo neste último resíduo,nesta parcela ínfima da terra que é o átomo. Foi o maior triunfojamais alcançado sobre os sentidos. Entretanto, é necessário irmais além e declarar uma guerra sem quartel contra a tão traídaclandestina "necessidade atômica" que continua rondandoperigosamente por terrenos insuspeitados, como o faz tambéma "necessidade metafísica", mais famosa ainda. Dever-se-ásacrificar a esse outro atomismo mais funesto ainda que ocristianismo, e por mais tempo: o atomismo psíquico. Tomo aliberdade de designar assim a crença que converte a alma emcoisa indestrutível, invisível, eterna, uma mônada, um atomon.É desta crença que se deve livrar a verdadeira ciência, e todainvestigação científica que se proclame como tal. Para o mais,fica claro entre nós que não é necessário suprimir "a alma" deum só golpe e renunciar a uma das mais antigas e veneráveishipóteses da alma. isto é, idéias como a da "alma imortal", a"alma múltipla", a alma edifício coletivo de instintos epaixões", idéias que desde já reclamam direito de cidadania naciência. O psicólogo novo, para acabar com a superstição quese multiplicou em torna da noção de alma, lançou-se de certomodo a um novo deserto e a uma nova desconfiança.Provavelmente a tarefa dos antigos psicólogos tenha sido maisalegre e tenha tido mais sorte, porém. apesar disso, o psicólogo23novo sente-se por isso mesmo impulsionado, condenado ainventar e talvez — quem sabe? — também a descobrir.  Antes de afirmar que o instinto de conservação é o instintomotor do ser orgânico, dever-se-ia refletir. O ser vivo necessitae deseja antes de mais nada e acima de todas as coisas darliberdade de ação à sua força, ao seu potencial. A própria vida évontade de potência. O instinto de conservação vem a ser umaconseqüência indireta, e em todo caso, das mais freqüentes.Resumindo, neste ponto como em outros deve-se desconfiar deprincípios teológicos inúteis tais como o instinto deconservação e o esforço de preservar o ser que se deve àinconseqüência de Spinoza. Assim o exige o método, que deveser essencialmente parco de princípios.  Em nossa época talvez existam cinco ou seis cérebros quecomeçam a suspeitar que talvez a física não seja reais que uminstrumento para interpretar e regrar o mundo, uma adaptaçãopara nós mesmos, se nos é permitido dizê-lo, e não umaexplicação do universo. Entretanto, na medida em que a físicase apóia na crença dos dados proporcionados pelos sentidos,esta vale mais e continuará valendo mais — durante muitotempo — que uma verdadeira explicação. Conta com otestemunho dos olhos e dos dedos, isto é, a vista e o tato. Numaépoca de gostos profundamente plebeus oferece uma atraçãosugestiva, embriagadora, convincente, posto que nosso séculoadota com extraordinária facilidade as normas do sensualismoeternamente popular. O que há de claro aqui? O que é queparece "claro"? Antes de mais nada o que se pode ver e tocar.Portanto, é preciso levar até esse ponto os problemas. E daí,precisamente, que a oposição à evidência perceptível tenha sido24o encanto do pensamento platônico, que era um pensamentoaristocrático próprio de homens dotados talvez de sentidosmais vigorosos e exigentes que os de nossos contemporâneos,mas que sabiam saborear um triunfo superior mantendo-sesenhores de si mesmos e lançando sobre a heterogêneavariedade dos sentidos, como dizia Platão, uma rede de pálidosconceitos de aparência triste e fria. Este modo platônico desubmeter ao mundo, de interpretá-lo tinha em si mesmo umgozo de qualidade muito diferente da que nos oferecem os,físicos de hoje ou esses operários da filosofia, darwinistas eantifinalistas, com seu princípio do "mínimo de energia" que éo máximo de estupidez. "Ali onde o homem não pode ver nemtocar nada, não há nada que procurar", o que não deixa de serum imperativo muito distinto daquele de Platão, porémadaptável a uma raça dura e laboriosa de futuros mecânicos efuturos engenheiros que apenas tenham de cuidar de trabalhossuperlativamente grosseiros.  Para estudar seriamente a fisiologia é preciso afastar-se daidéia de que os órgãos são fenômenos, tal como os considera afilosofia idealista e que, portanto, não poderiam ser causas.Conseqüentemente dever-se-ia aceitar o sensualismo, pelomenos a titulo da hipótese reveladora, para não dizer deprincípio heurístico. Como?! Pois não há quem diga que omundo exterior é obra de nossos órgãos? Sendo assim, nossospróprios órgãos seriam obra de nossos órgãos. Eis aqui o que euchamaria uma radical reductio ad absurdum, admitindo que anoção de causa sui seja algo de fundamentalmente absurdo.Pois, não é o mundo exterior que é obra de nossos sentidos.  Ainda há ingênuos acostumados à introspecção queacreditam que existem "certezas imediatas", por exemplo, o "eupenso" ou, como era a crença supersticiosa de Schopenhauer, o"eu quero"; como se nesse caso o conhecimento conseguisseapreender seu objeto pura e simplesmente, enquanto "coisa emsi" sem alteração por parte do objeto e do sujeito. Afirmo que a"certeza imediata", bem como o "conhecimento absoluto" ou a"coisa em si" encerram uma contradictio in adjecto; seria pois,esta a ocasião de livrar-se do engano que encerram as palavras.O Vulgo acredita .que o conhecimento consiste em chegar aofundo das coisas; por outro lado, o filósofo deve dizer-se: "Seanaliso o processo expressado na frase ., eu penso", obtenho umconjunto de afirmações arriscadas, difíceis e talvez impossíveisde serem justificadas; por exemplo, que sou eu quem pensa,que é absolutamente necessário que algo pense, que opensamento é o resultado da atividade de um ser concebidocomo causa, que exista um "eu"; enfim, que se estabeleceu deantemão o que se deve entender por pensar e que eu sei o quesignifica pensar. Pois se eu não tivesse antecipadamenterespondido à questão por minha própria razão, como poderiajulgar que não se trata de uma "vontade" ou de um "sentir"?Resumindo o exposto, este "eu penso" implica que comparomeu estado momentâneo com outros estados observados emmim para estabelecer o que é. posto que é preciso recorrer a um"saber de origem diferente", pois, "eu penso" não tem para mimnenhum valor de "certeza imediata". Em lugar dessa segurançaem que o vulgo talvez venha a crer, o filósofo por seu lado nãoretira mais que um punhado de problemas metafísicos, deverdadeiros casos de consciência intelectuais que podem sercolocados da seguinte forma: De onde retiro minha noção de"pensar"? Por que devo crer na causa e no efeito? Com quedireito posso falar de um "eu" e de um "eu" como causa e paracúmulo, causa do pensamento? Aquele que se atrever a26responder imediatamente a estas questões metafísicas alegandouma espécie de intuição do conhecimento, como se faz quandose diz:. "eu penso e sei que isto pelo menos é verdade, que éreal", com certeza provocará no filósofo de hoje um sorriso euma dupla interrogação: "Senhor, dirá o filósofo, parece-meincrível que o senhor não se equivoque nunca, mas por queanseia por encontrar a verdade acima de tudo. sem limitação deesforços?"  Quando se fala da superstição dos lógicos não deixonunca de insistir num pequeno fato que as pessoas que padecemdesse mal não confessam senão através de imposição. É o fatode que um pensamento ocorre apenas quando quer e nãoquando "eu" quero, de modo que é falsear os fatos dizer que osujeito "eu" é determinante na conjugação do verbo "pensar"."Algo" pensa, porém não é o mesmo que o antigo e ilustre "eu",para dizê-lo em termos suaves, não é mais que uma hipótese,porém não, com certeza, uma certeza imediata. Já é demasiadodizer que algo pensa, pois esse algo contém uma interpretaçãodo próprio processo. Raciocina-se segundo a rotina gramatical:"Pensar é uma ação, toda ação pressupõe a existência de umsujeito e portanto..." Em virtude de um raciocínio semelhante eaté igual, o atomismo antigo que unia a "força atuante" à partede matéria em que se encontra essa força, atua a partir desta: oátomo. Os espíritos mais rigorosos terminaram por desfazer-sedeste último "resíduo terrestre" e inclusive pode chegar o diaem que os lógicos prescindam desse pequeno "algo" que ficarácomo resíduo ao evaporar-se o antigo e venerável "eu".  Não é o menor dos encantos o fato de que uma teoriapossa ser rebatida, pelo contrário, parece que a teoria mil vezes27rechaçada do "livre arbítrio" deve sua sobrevivência apenas aessa qualidade, posto que sempre vemos surgir alguém dispostoa refutá-la ainda. Os filósofos gostam de falar da vontade como se fossea melhor coisa conhecida do mundo. Schopenhuer deu aentender inclusive que a vontade é algo que realmentedistinguimos, algo perfeitamente reconhecido, sem demasia esem falta, mas parece-me que Schopenhauer, neste como emoutros casos seguiu a mesma rota que todos os filósofos:adotou e exagerou ao máximo um . preconceito popular. Avontade se me apresenta antes de mais nada, como algocomplexo, algo que não possui outra unidade que seu nome enesta unicidade de nome é precisamente onde encontra seufundamento o preconceito que enganou a prudência sempremuito deficiente dos filósofos. Sejamos, pois, mais discretos,menos filósofos e admitamos que em cada vontade existe, antesde mais nada uma infinidade de sentimentos: o do estado doqual se quer sair, o do estado ao qual se tende, a sensaçãodestas duas direções, ou seja "daqui" — "até lá"; enfim, umasensação muscular que, sem chegar a pôr em movimentobraços e pernas, toma parte dele assim que nos dispomos a"querer". Do mesmo modo que o sentir, um sentir multíplice, éevidente que um dos componentes da vontade, contém tambémum "pensar", em todo ato voluntário há um pensamento diretore portanto, deve-se evitar a crença que se pode afastar essepensamento do "querer" para obter um precipitado quecontinuaria sendo vontade. Em terceiro lugar a vontade não éapenas um conjunto de sensações e pensamentos, mas tambéme antes de tudo um estado afetivo, a emoção derivada domando, do poderio. O que se chama "livre arbítrio" éessencialmente o sentimento de superioridade que se sente anteum subalterno. "Eu sou livre, ele deve obedecer", eis o que há28no fundo de toda vontade, a certeza intima que constitui oestado de ânimo de quem manda. Querer significa ordenar aalgo em si mesmo que obedece ou, pelo menos, é consideradocomo obediente. Mas observemos agora a própria essência davontade, essa coisa tão complexa para a qual o vulgo usaapenas uma palavra. Se fôssemos a um só tempo, aquele quemanda e o que obedece, sentiríamos ao obedecer a impressãode que estávamos sendo obrigados, pressionados esimultaneamente impulsionados a resistir ao movimento,impressões que sequem imediatamente ao ato da volição;porém na medida em que, por outro lado, temos o costume denão fazer caso dessa ambivalência, de enganar-nos a seurespeito graças ao conceito sintético do eu", toda uma cadeia deconclusões errôneas e conseqüentemente, de falsas apreciaçõesda vontade também se ligam ao querer. Como quem acredita deboa fé que basta querer para atuar, assim, na maioria dos casos,alguém se contentou em querer e como também se deve esperaro efeito da ordem, isto é, a obediência, o cumprimento do atoprescrito, a aparência se traduz pelo sentimento de que o atodeveria se produzir necessariamente. Em outras palavras,aquele que quer, acredita que querer e fazer se resumem numaúnica coisa. Para ele o êxito e a execução do querer são efeitosdo próprio querer e esta crença torna mais forte o sentimento depoder, que ele sente, e que o êxito traz como companheiro. O"livre arbítrio": esta é a designação desse complexo estado deprazer do homem que quer, que manda, e que, ao mesmotempo, se confunde com o que executa, gozando assim o prazerde superar obstáculos com a idéia de que é sua própria vontadeque triunfa sobre as resistências.Assim pois, o ato voluntário soma, deste modo, ao prazerde dar uma ordem, o prazer do instrumento que o executa comêxito; à vontade são acrescentadas vontades "subalternas",almas subalternas e dóceis, pois nosso corpo não é mais que ahabitação de muitas almas. L'effet c'est moi: acontece aqui omesmo que em toda coletividade feliz e bem organizada; a29classe dirigente se apropria dos êxitos da coletividade. Em todoquerer se trata simplesmente de mandar e de obedecer dentrode uma estrutura coletiva complexa, constituída, como já disse,por "muitas almas". Portanto o filósofo deveria considerar oquerer a partir do ângulo da moral, a moral como conceito deuma ciência dominante. Donde brota o fenômeno da vida.20Dir-se-ia que os diferentes conceitos filosóficos não sãonada arbitrários, que não se desenvolvem separadamente, masque mantém certo parentesco. Precisamente por isso, ao fazersua aparição na história do pensamento, não deixam depertencer a um mesmo sistema, exatamente o mesmo que osdiversos representantes da fauna do continente. É isso que sepercebe na segurança com que os mais diferentes filósofos vêma ocupar por sua vez seu posto dentro de um determinadoesquema prévio das possíveis filosofias. Uma magia invisívelos obriga a percorrer incessantemente a mesmo circulo, pormais independentes que se creiam, um dos outros, em suavontade de elaborar sistemas, algo os impulsiona a sucederemsenuma determinada ordem, que é, entretanto, a ordemsistemática inata dos conceitos de seu parentesco essencial. Naverdade, seu pensamento consiste menos em investigar que emreconhecer, recordar, voltar atrás, reintegrar uma zona muitoantiga e distante da alma donde saíram esses conceitos que nãoprocuram descobrir. A atividade filosófica nesse aspecto, é umaespécie de atavismo do mais elevado grau. A estranhasimilaridade que guardam entre si todas as filosofias indianas,gregas e alemãs, tem uma explicação simples. Efetivamente,quando há parentesco lingüística é inevitável que em virtude deuma filosofia gramatical, exercendo no inconsciente as mesmasfunções gramaticais em domínio e direção, tudo se encontrapreparado para um desenvolvimento análogo aos sistemasfilosóficos, enquanto que o caminho parece fechado para30quaisquer outras possibilidades de interpretação do universo.As filosofias do grupo lingüística uro-altaico (nas quais a noçãode sujeito está pouco desenvolvida) provavelmente observarame interpretaram o mundo com outros olhos e seguiram porcaminhos diferentes dos indo-europeus ou muçulmanos. Ofascínio que exercem certas funções gramaticais é, no fundo, oexercido por determinadas valorações fisiológicas e certasparticularidades raciais. Isto para refutar as afirmaçõessuperficiais de Locke a respeito da origem das idéias.  A causa sui é a mais bela contradição já cogitada, umaespécie de violação e golpe mortal à lógica. Porém o orgulhoilimitado do homem conduziu-o a um emaranhamento cada vezmaior no intrincado absurdo, o desejo do "livre arbítrio"entendido no sentido superlativo e metafísico que domina ainda(por desgraça, nos cérebros semi-cultivados) que é anecessidade de suportar a completa e absoluta responsabilidadede seus atos e não atribuí-la a Deus, ao mundo, àhereditariedade, à sorte, à sociedade, esta causa sui não é maisque a necessidade de ser alguém, e com esta audácia intrépidaque supera à do barão de Münchhausen tenta tirar a si mesmodo pântano do nada puxando seus próprios cabelos e entrar naluz da existência. Se alguém chegasse a vislumbrar a nésciarusticidade do famoso conceito do "livre arbítrio" até chegar aafastá-lo do seu espírito, eu lhe rogaria que desse, mais umpasso e afastasse de seu cérebro o contrário desse pseudoconceito,isto é, o "determinismo", que conduz ao mesmo abusodas noções de causa e efeito. Não é preciso cometer o erro detornar condicionados causa e efeito, como fazem os naturalistas(e todos que sequem seu método de pensar) segundo ascretinices mecanicistas em voga, que querem que toda causaimpulsione e pressione até produzir um efeito. É convenienteentretanto, não se servir da "causa" e do "efeito" senão em  termos de puros conceitos, ou seja, como ficções convencionaisque servem para designar, para pôr-se de acordo, porém demodo algum para explicar alguma coisa. No "em si" não hánenhum vestígio de "nexo causal", de "necessidade", de"determinismo psicológico", o "efeito" não é conseqüência denenhuma "causa" , nenhuma "lei" impera ali. Ninguém maisque nós foi o inventor de tais ficções como: a causa, a sucessão,a reciprocidade, a relatividade, a necessidade, o número, a lei, aliberdade, a razão, o fim, e quando introduzimos falsamente nas"coisas" este mundo de símbolos inventados, quando oincorporamos às coisas como se lhes, pertencesse "em si" maisuma vez, como sempre fizemos, criamos uma mitologia. Naverdade estamos frente à vontade forte ou fraca. Quando umpensador trata de descobrir de uma só vez em todo"encadeamento causal" algo que se pareça a uma frustração, auma necessidade, a uma concatenação obrigada, a uma pressão,a um servilismo, é quase sempre sintoma de que há algo quefalha no ente em questão e ao sentir deste modo éinquestionável que a personalidade ali se desvele. Deste modogeral. Se minhas observações são exatas o problema dodeterminismo é considerado a partir de dois aspectosabsolutamente diferentes, porém sempre de modoabsolutamente subjetivo, uns, não querendo dividir a"responsabilidade" de sua crença em si mesmos, seu direitopessoal, produto de Seu próprio mérito (caso das castasvaidosas); outros, contrariamente, recusando todaresponsabilidade, impulsionados pelo desprezo de si mesmos eansiosos de livrar-se sem considerar sobre quem ou onde caia apesada carga de seu eu. Quando estes escrevem livros tendem aempreender a defesa dos malfeitores, seu disfarce mais sutil ésimular uma espécie de socialismo da piedade e, natural eefetivamente, o fatalismo dos fracos de vontade émaravilhosamente embelezado quando consegue apresentar-secomo "religion de la souffrance humaine". Este é, sem dúvida,seu modo peculiar de demonstrar seu "bon goút".3222Perdoem a esse velho filólogo que sou, se não renuncia aabdicar do maligno prazer que representa pôr o dedo na chagadas explicações errôneas, de vossas fraquezas filológicas.Porque, em verdade, esse mecanismo das "leis da natureza", deque vós, físicos, falais com tanto orgulho, não é um fato nemum texto, mas uma composição ingenuamente humana dosfatos, uma deturpação do sentido, uma adulação servil àhabilidade dos instintos democráticos da alma moderna. "Emtodas as partes, igualdade diante da lei, a este respeito, anatureza, não foi melhor tratada que nós". Sedutora segundaintenção que encobre mais uma vez o ódio da plebe contra todamarca de privilégio e de tirania, bem como uma segunda formamais sutil de ateísmo. "Ni Dieu, ni maitre". Vós tambémdesejais que assim seja e por isso gritais: "Vivam as leis danatureza!" Porém, repito, isto é interpretação e não texto.Poderia surgir alguém com intenções opostas e com muitosoutros artifícios de interpretação que decifrasse, nesta próprianatureza e partindo dos mesmos fenômenos, o mistério dotriunfo brutal e desapiedado de vontades tirânicas, quando estenovo intérprete nos revelaria a "vontade de potência" em suarealidade e em sua força absoluta até que todas as palavrasseriam inutilizáveis e inclusive a palavra "tirania" pareceria umeufemismo. Este filósofo acabaria, contudo, por afirmar,relativamente a este mundo, o mesmo que vós, isto é, que temum curso "necessário", "previsível" não pelo fato de estarsubmetido a leis, mas pela absoluta inexistência de leis eporque a força a cada instante, vai até a última de suasconseqüências. Mas como isso não é mais que umainterpretação, já sei que objetareis: pois bem, tanto melhor!3323Toda a psicologia manteve-se vinculada, até hoje, apreconceitos e apreensões de ordem moral; não ousou adentrarem suas profundezas. Concebê-la, como eu o faço, sob asespécies de uma morfologia e de uma genética da vontade depotência, é uma idéia que ninguém abordou nem mesmosuperficialmente, suponho que, partindo que se escreveu sejapossível adivinhar o que permaneceu em silêncio. A poderosaforça dos preconceitos morais penetrou profundamente nocírculo da espiritualidade pura, aparentemente a mais fria edesprovida de idéias preconcebidas e, como é natural, influiunela — de modo prejudicial — uma ação paralisadora,deslumbrante e deformante. Uma psicofisiologia autêntica sechoca contra resistências inconscientes no coração doinvestigador. A simples teoria da interdependência dos instintos"bons" e maus" parece um refinamento de imoralidade edesperta o perigo e o desgosto inclusive numa consciênciavalente e vigorosa. E a desgosto é maior ante a doutrina que fazderivar os bons instintos dos maus, Admitindo, todavia, queexiste alguém que chega a considerar como paixões essenciaisda vida ao ódio, inveja, cobiça e comando, como principiasfundamentais da vida, como algo que lia economia de vidadeve existir fundamental e essencialmente e que porconseguinte deve ser ainda intensificado se se desejaintensificar a vida, este homem sofrerá algo como um enjôodevido à orientação de seu próprio juízo. Contudo esta hipótesenão é mais penosa e a mais estranha, neste imenso domínioquase virgem do conhecimento, do qual todos têm mil e umaboas razões para se manterem à distância..., se podem. Nossobarco sofre a tormenta! Serremos os dentes! Vigilantes! Firmesno leme! Naveguemos em linha reta acima da moral! Porém,apesar de tudo decidisses conduzir vossa nau a essas praias,então só vos resta o remédio de manter esse valor, ficar alerta emanter firme o timão. Que importa nosso destino! Nunca até34agora encontraram os navegantes, intrépidos e aventureiros —um mar de conhecimentos mais profundos e o psicólogo quefaz tais "sacrifícios" (este não é o sacrilizio dell'intelletto)reclamará como próprio o direito de que a psicologia seja denovo instaurada como rainha das ciências, aquela à qual asdemais ciências têm a "obrigação" de servir e preparar, pois apsicologia se converteu de novo no caminho que condiz aosproblemas fundamentais.  

Além do bem e do mal - FRIEDRICH WILHELM NIETZSCHEOnde histórias criam vida. Descubra agora