8 - Povos e pátrias

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  Ouvi, de novo pela primeira vez, a ouverture dos "MestresCantores" de Wagner; é uma arte estupenda, pomposa. pesada etardia que para ser compreendida pretende ser necessário doisséculo de música — que honra para os alemães que este cálculotenha se mostrado incorreto. Quantos sucos, quantas forças,quantas estações e quantos climas foram misturados! Comoessa música que parece por vezes antiga, por vezes estranha,acerba e juvenil, ao mesmo tempo arbitrária e pomposamentetradicional, por vezes maliciosa e mais freqüentemente rude egrosseira, tem fogo e coragem e ao mesmo tempo a peleacinzentada e descolorida das frutas amadurecidas depois dotempo! É uma corrente que escorre lenta e majestosa;repentinamente há uma hesitação inexplicável, semelhante àlacuna entre causa e efeito, uma opressão que faz sonhar, quaseum incubo — mas eis que novamente a corrente se alargareproduzindo aquela sensação de bem-estar múltiplo da antigae nova felicidade que o artista experimenta por si mesmo, quenão quer esconder, de uma felicidade consciente e aindasurpresa da maestria dos meios por ela empregados, dos meiosnovamente encontrados e não completamente experimentados,como ele deseja fazer compreender. Numa palavra, nenhumabeleza, nada de meridional, nada da delicada clareza do céu dosul, nenhuma graça, nenhuma dança, apenas um pouco devontade lógica. Diria quase um pesadume, ainda quesublinhada como se o artista quisesse fazer compreender que édesejada, uma roupa pesada, algo de originalmente bárbaro esolene, uma confusão de coisas preciosas, doutas e veneráveis,algo de alemão no melhor e no pior significado da palavra, algode múltiplo, informe, inexaurível à moda alemã, uma certasuperpotência alemã da alma, que não teme ocultar-se sob osrefinamentos da decadência,. sob os quais sente-se melhor queem qualquer outra parte, verdadeira característica da almaalemã, ao mesmo tempo jovem e decrépita, muito débil e169exuberante de porvir. Esta música exprime perfeitamenteaquilo que penso dos alemães, tem um anteontem e um depoisde amanhã não possuem um hoje.  Nós, bons europeus, também nós, temos nossos momentos deabandono ao nosso patriotismo e volta aos velhos amores e aosantigos horizontes restritos — forneci as provas disso há pouco— momentos de efervescência, de opressão patriótica e detantos outros sentimentos envelhecidos.Inteligências mais pesadas que a nossa levariam mais tempopara digerir o mesmo que para nós bastam poucas horas, algunsdispenderiam alguns anos, metade da vida, segundo sua forçadigestiva, de sua capacidade de "troca de matéria". Sim, possoimaginar obtusas raças hesitantes, as quais mesmo em nossaEuropa. rápida nos seus movimentos, requereriam séculos parasuperar certos acessos atávicos de patriomania e de fixação àterra onde nasceram e retomar novamente à razão, isto é, ao"bom europeísmo". E enquanto divago acerca dessapossibilidade, me é dado assistir, testemunho auricular, a umaconversa entre dois velhos patriotas — e que, segundo parece,não possuíam bons ouvidos posto discutirem em voz muitoalta. "Aquele entende tanto de filosofia e tanto se dedica a sabê-la quanto um aldeão ou um estudante que faz parte de umaconspiração", dizia um deles — "é ainda uma inocente, masque importa isto, agora? Estamos no tempo das massas e estasse atiram ao solo diante de qualquer coisa que seja maciça. Eisso também em politicis. Um estadista que levante diante deseus olhos uma nova torre de Babel, qualquer conglomeradomonstruo. so de império e de potência para o povo é umhomem grande; que importa, se nós mais prudentes ereservados, não queremos abdicar por enquanto da antigacrença, que apenas a grandeza da idéia possa conferir grandezaa um fato concreto. Supondo-se que um estadista deva conduzir170seu povo a uma política grande, para a qual pela sua naturezanão tem nenhuma atitude, nem está preparado, de modo queseria obrigado a sacrificar sua antiga e segura virtude a umanova e ambígua mediocridade — supondo que um estadistacondenasse seu povo em geral a fazer política, enquanto esseaté agora tinha coisas mais interessantes a fazer e não pode nofundo da alma libertar-se de uma certa náusea pela irriquietude,pela completa falta de idéias, pelas discórdias sem sentido quecaracterizam os povos precipuamente politiqueiros, supondoque um tal estadista agite as paixões e os apetites adormecidosde seu povo, fazer como que pareça uma mancha a sua timideze sua inclinação a manter-se à parte, atirar-lhe no rosto comouma culpa a sua propensão pelo estrangeirismo, o seu secretocosmopolismo, supondo que ridicularize tudo aquilo, tudo peloque seu povo é levado, que dome seu espírito impondo umgosto nacional, tornando seu espírito severo — e, um estadistaque fizesse tudo isso empenhando para tanto o futuro de seupovo, supondo que haja um futuro, tal estadista seria "grande"?"Com certeza", responde o outro com veemência, "doutromodo como teria podido fazer tanto! Talvez tenha sido loucuraquerer tal coisa, mas talvez, nas origens, grandeza não tenhasido mais que loucura!" Abuso de palavras! — exclamou o seuinterlocutor forte, forte, forte e louco, mas não grande! Os doisvelhos tinham se exaltado, lançando-se à face tais verdades,mas, eu na minha beatitude, enquanto isso, calculava o tempoque seria necessário para outro homem mais forte triunfar sobreesse homem forte e pensava que por uma lei de compensação asuperficialidade de um povo serve para o aprofundamento deum outro. Deseja-se chamar "civilização" ou ainda "humanização" oumelhor ainda "progresso" àquilo em que hoje se vê um título dedistinção para os europeus; chamemo-lo simplesmente, sem  loas e sem grita, como uma forma política, o movimentodemocrático europeu, atrás dos proscênios morais e políticos, aque se referem tais fórmulas, é cumprido um progresso"fisiológico" imenso. que cresce cada vez mais — um processode assimilação de todos os europeus, seu destaque cada vezmaior das condições que devem a sua origem a raçasvinculadas ao clima e às classes, uma crescente independênciade cada milieu determinado que gostaria de imprimir-se nocorpo e na alma com postulados seculares — pois o adventograduado de uma espécie de homem supernacional e nômade, aqual, falando fisiologicamente, possui um máximo de arte e deforça de adaptação como característica típica. Este processo doeuropeu em formação, o qual pode ser retardado, no seu tempode grandes recaídas, mas que precisamente por isso ganhará emforça e profundidade — mencione-se aqui, entre os sentimentoshostis, o furacão da sentimento que ainda faz furor e também oanarquismo que está para chegar, este processo terá provável.mente resultados, que seus admiradores e mantenedores, osapóstolos das idéias modernas, são os últimos a prever. Asmesmas novas condições que serviram para mediocrizar ohomem, a criar um homem de rebanho, útil, laborioso, capaz demuitas coisas — são capazes no mais alto grau a geraremhomens excepcionais, da qualidade mais perigosa e atraente.Esta força de adaptação, que atravessa condiçõesincessantemente em mudança, e que começa um novo trabalhoa cada geração, a cada quase dez anos, torna impossível apotência do tipo, enquanto o conjunto de impressões queconstituirão o europeu do futuro será a dos trabalhadoresmúltiplos, loquazes, parcos de vontade e muito maleáveis, quetêm necessidade de um patrão, como o pão cotidiano, e assim,enquanto a democratização da Europa tende à formação de umtipo especialmente preparado para a servidão, em casossingulares e excepcionais, o homem forte surgira mais forte emais completo do que conseguiu ser até agora — em razão desua educação despreconceituosa, da sua imensa diversidade de  atividades, de talentos e simulação. Ousarei afirmar que ademocratização da Europa é ao mesmo tempo uma preparaçãoinvoluntária à formação de tiranos tomando essa palavra emtodos os sentidos e até no mais espiritual.  Ouvi prazerosamente que nosso sol se desloca velozmentepara a constelação de Hércules e quero esperar que também ohomem desta Terra imite o Sol, e nós, nós bons europeus, antesde ninguém!  Houve um tempo em que se estava habituado a chamarprofundo aos alemães a título de distinção. Agora são muitasoutras as pretensões do espírito alemão. É quase atual epatriótico perguntar-se se este antigo elogio não foi mais queum erro, numa palavra, se a profundidade alemã não é naverdade outra coisa e mais ainda, uma qualidade de quem,felizmente, estarmos a ponto de nos livrar. De todos osdisfarces que hoje é capaz o alemão talvez seja o mais perigosoe o melhor conseguido essa honradez alemã, servil,comunicativa, que coloca sempre as cartas sobre a mesa, este éseu, talento mefistofélico e que pode "levá-los adiante". Oalemão é desenvolto, olha com seus olhos alemães, impolutos,azuis e vazios e o estrangeiro o confunde com sua bata. O quequero dizer é que seja lá o que for a profundidade alemã (aquientre nós podemos nos rir dela) faremos bem em salvaguardar ahonorabilidade de sua aparência e de seu bom nome sem mudardemasiadamente nossa velha reputação de nação profunda pelamordaz energia prussiana1 pela mentira berlinense, e o sabre deBerlim. É prudente para uma nação fazer-se passar por 1 NT — Schneidigneit. profundo torpe, bonachona, honrada, inábil, talvez seja até maisprofundo. Um alemão que tivesse a audácia de firmar: "duasalmas, ai de mim!, se albergam em meu peito" se enganariagrandemente no número, erraria por muitas almas. Sendo,como povo, uma miscelânea, uma mistura monstruosa de raças,talvez com uni excesso preponderante de elementos pré-arianos, um povo do meio, em todos os sentidos, os alemãessão os seres mais escorregadios, mais vastos, maiscontraditórios, mais incógnitos, mais imponderáveis, maisestupefacientes ainda para si mesmos, mais que qualquer outropovo possa sê-lo: subtraem-se a qualquer definição e são,precisamente por isso, a causa de desespero dos franceses. Écaracterística dos alemães a atualidade da questão sobre o que é"alemão". Kotzebetie conhecia, é preciso admiti-lo, muito bemos seus alemães, descobriu-nos, rejubilaram-se aclamando-o,mas também Sand1 sustentava conhecê-los. Jean Paul Richtersabia o que fazia quando se declarou contrário às adulações eexageros mendazes, mas patrióticos de Fichte — mas épresumível que Goethe pensasse diferentemente de Jean Paulmuito embora pudesse ter-lhe dado razão quanto a Fichte.O que terá pensado Goethe dos alemães? Ademais, ele nuncase expressou claramente sobre muitas coisas que estavam a seuredor e soube fazer um tesouro do provérbio — o silêncio é deouro; talvez tivesse boas razões para agir assim. O que é certo éque não ocorreram guerras de libertação a atrapalhar-lhe avisão, nem a revolução francesa — a ocorrência que fez comque mudasse de plano toda a concepção de seu Fausto, e acimade tudo pelo problema do homem, foi a aparição de Napoleão.Foram conservadas palavras de Goethe com as quais seexpressa, com dura impaciência contra aquilo que entãoconstituía o orgulho de todo bom alemão; o célebre "Gemüt"alemão, ele o definia como indulgência pelas fraquezas alheiase pelas próprias. Teria errado? É característico dos alemães que 1 NT — O assassino de Kotzebene.  se enganem completamente quando julgam a si mesmos. Aalma alemã tem corredores e galerias, cavernas, esconderijos,recessos secretos, sua desordem tem algo de misterioso queatrai, o alemão conhece bem as vias tortuosas que levam aocaos. E como cada coisa ama aquela que se lhe assemelha, oalemão gosta da névoa e tudo que é pouco claro, que está emvias de formação, que é crepuscular, úmido, coberto. Achaprofundo o incerto, aquilo que ainda está no estágio deformação, que se esconde, que está crescendo. O alemãopropriamente dito não existe ainda, está se tornando, está "sedesenvolvendo". A "evolução" é portanto o verdadeiro achadoalemão no reino das fórmulas filosóficas — um conceitodominante que, graças à aliança entre cerveja e música alemã,está em vias de germanizar a Europa. Os estrangeiros ficammaravilhados e encantados diante dos problemas que coloca àescolha a natureza contraditória que forma o fundo da almaalemã (problemas sistematizados por Hegel, musicados porWagner). "Bons e pérfidos". — Este contra-senso relativamentea todo outro povo é por demais justificado na Alemanha, tenteseviver algum tempo entre os suecos. O pesadume da doutoalemão, a sua torpeza em sociedade, combinam-seadmiravelmente bem com acrobacias interiores, com umaaudácia leve que os deuses já aprenderam a temer. Parademonstrar ad oculos a alma alemã, basta observar o gosto, aarte, os costumes alemães: que indiferença campesina pelo bomgosto! De que modo são mescladas as coisas nobres e ásvulgares! Quão desordenada e portanto rica é a economiadoméstica daquela alma! O alemão arrasta a própria alma,como faz com todas as ocorrências da vida. Digere mal, nãotermina nunca sua digestão: a profundidade alemã é apenasuma digestão lenta. E do mesmo modo que os doentes crônicos,todos os dispépticos, amam a comodidade, o alemão ama a"sinceridade" e a "retidão"; como é cômodo ser sincero e reto.Ponhamo-nos portanto a modificar nosso pensamento acercada profundidade alemã, e para tanto esta análise, esta vivissecção da alma alemã. A alma alemã é complexa, deorigem múltipla, um agregado, uma sobreposição de almasantes que um verdadeiro edifício, isto depende de sua extração!Enfim, é preciso honrar o próprio nome, não é por acaso que sechama o povo "tiusche"1.  O bom. tempo antigo acabou, com Mozart extinguiu-se oúltimo canto — quão felizes somos nós que ouvimos falarainda de seu rococó, sua "boa sociedade", seu ternosentimentalismo, seu amor infantil pelo gosto chinês, pelasfiligranas, a cortesia de seu coração, sua raiva do terno, doenamorado, do bailarino, do lacrimoso, de sua fé no céumeridional, fazendo um apelo aos traços disto em nós! Ah! viráum t . empo em que tudo estará acabado! — mas é indubitávelque ainda antes teremos deixado de compreender e de gostar deBeethoven — que não foi mais que o último eco de umapassagem. de uma. interrupção de estilo e não como Mozart oeco de um gosto europeu que durou séculos. Beethoven é umincidente entre uma alma velha, gasta, que se esfarrapacontinuamente e uma alma ébria de juventude e de futuro quechega continuamente; sobre sua música se estende a luzcrepuscular de perenes renúncias e imensas e renascentesesperanças — a mesma luz que inundava a Europa quandosonhou com Rousseau, quando dançou ao redor da árvore daliberdade da revolução e quando se prostemou quase emadoração a Napoleão. Mas agora, quão rapidamente empalideceesse sentimento, quão difícil é conhecer por si mesmo um talsentimento — quão estranha soa hoje a nossos ouvidos alinguagem dos Rousseau, dos Schiller, dos Shelley, dos Byronque foram os arautos deste destino da Europa que Beethovensoube cantar! 1 NT — Alemão antigo, o povo que engana.  A música alemã de depois pertence ao romantismo, isto é, aum movimento historicamente ainda mais curto, mais fugaz,mais superficial do que aquele grande intermezzo, que assinalaa transição da Europa de Rousseau à de Napoleão e ao adventoda democracia. Weber? Mas o que significam para nós oFreyschütz e Oberon? Ou ainda Hans Heiling e o Vampyr, deMarschner? Ou ainda o Tannhauser de Wagner! É uma músicaremota, admitindo-se que não tenha sido esquecida. E, alémdisso, toda a música do romantismo não era uma músicasuficientemente aristocrática para poder impor-se em qualquerparte que não fosse o teatro e diante da multidão; era por simesma música do segundo grau, que entre os verdadeirosmusicistas gozava de pouca consideração. Mas as coisas sãobem diferentes quanto a Félix Mendelssohn, o alciônicomaestro que pela sua alma mais leve, mais fina, maisfelizmente dotada, foi rapidamente velerado e da mesma formaesquecido: ele representa o belo Incidente da música alemã.Quanto a Robert Schumann que tomava as coisas seriamente eque desde o principio foi acolhido gravemente também, foi oúltimo a fundar escola — não parece hoje felicidade, umaliberação, um despertar de pesadelo, ter superado o romantismode um Schumann? Schumann refugiado na "Estação suíça" desua alma dotada de uma índole que tinha elementos de Werthere de Jean Paul, mas certamente não de Beethoven e nemmesmo de Byron, sua música do Manlredo é tão dissonante doassunto que assemelha-se a um delito — Schumann com o seugosto, que no fundo era gosto pequeno (isto é, de umapropensão perigosa e entre os alemães dubiamente perigosa aolirismo silencioso e ao embriagamento sentimental) quetimidamente se lhe opunha, transbordante de nobre ternura,festivas orgias de alegria e dor anônimas, mais infantil queadulta, um não me toques desde o princípio, este Schumann nãorepresentou na música mais que um acontecimento alemão, nãouma ocorrência européia, como Beethoven ou ainda em maiorgrau, Mozart — com ele a música alemã foi ameaçada pelo maior dos perigos, o de, deixar de ser a expressão da almaeuropéia tomando-se uma fantasia nacional. Que martírio são os livros escritos em alemão para quempossui uma terceira orelha. Com que desdém atravessará opântano de palavras sem som, de ritmos sem dança, que entreos alemães chama-se livro! E ainda o alemão que lê um livro!Quão mal lê, nitidamente com repugnância! Quantos são osalemães que sabem, que pretendem saber, que em toda boafrase há arte, arte que requer ser adivinhada quando se quercompreender a frase? Um mal-entendido no tempo, porexemplo, e o sentido da frase é perdido! Que não seja lícito terdúvidas acerca das sílabas que decidem o ritmo, que a rupturade uma simetria por demais rigorosa deva ser coisa desejada,como um atrativo, que a cada "staccato", a cada "rubato" sedeve manter paciente o ouvido atento, que os sentidos devamconcentrar-se na sucessão das vogais e dos ditongos, peladelicadeza e riqueza de tons que assumem enquanto sesucedem? Quem, entre os alemães que lêem, tem suficiente boavontade para reconhecer em quem lê tais deveres e taispostulados e perceber toda a arte e intenção postas na língua?Resumindo, se falta ouvido para tudo isso e assim passaminadvertidos os maiores contrastes do estilo, e então, osartifícios mais sublimes são prodigalizados aos surdos. Estespensamentos me ocorreram quando me deparei com as palavrasque trocaram, canhestra e ingenuamente, dois mestres da prosa:um, com palavras que destilam lenta e frias como de umacaverna úmida — porque frisa seu som surdo e a suaressonância — com um outro, que maneja a língua comoespada flexível e que de seu braço até a extremidade de seu pésente o fascínio perigoso da lâmina rápida e aguda que quermor. der, cortar, silvar.  Quão pouco o estilo alemão tem a haver com o som e com oouvido é demonstrado pelo fato de que os melhores entrenossos músicos escrevem mal. O alemão não lê em voz alta,para o ouvido, mas apenas com os olhos; quando lê, substituisuas orelhas pelos olhos.O antigo quando lia — o que acontecia mui raramente — liapara si mesmo, em voz alta, ficava intrigado quando alguém liaem voz baixa e perguntava-se as razões. Em voz alta: istosignifica com os crescendo as inflexões, as variações de tom, asalterações de "tempo" em que encontrava prazer o público domundo antigo. Então, as leis do estilo dos escritores eramidênticas às dos oradores e aquelas leis dependiam em grandeparte do maravilhoso desenvolvimento. da refinada exigênciado ouvida e da língua, em parte devido à robustez. à duração dofôlego do antigo. Um período, segundo os antigos, é antes demais nada um movimento fisiológico, uma vez que abarcaapenas um fôlego. Períodos tais quais os encontrados emDemóstenes, em Cícero, duas vezes ascendentes e duas vezesdescendentes e tudo no limite de um fôlego, eram prazer paraos antigos, que sabiam apreciar a virtude, a raridade, e adificuldade pela própria experiência, nós, modernos, pensandobem, não temos nenhum direito a períodos grandiosos, nós, derespiração curta em todos os sentidos! O, antigos eramdiletantes da arte oratória, todos, sem exceção, econseqüentemente conhecedores e por conseguinte, críticos, ecom isso levavam aos extremos os seus moradores; do mesmomodo que no século passado, quando todos os italianos e asitalianas sabiam cantar, entre eles a arte do canto (e com isso, amelodia) atingiu o ápice. Mas na Alemanha (mesmo nostempos mais recentes, em que uma espécie de eloqüência detribuna tentou, tímida e desajeitadamente, alçar vôo) não houvemais que uma espécie de eloqüência pública eaproximadamente artística, a do púlpito. Somente o pregador  na Alemanha conhecia o valor de uma sílaba, de uma palavra,sabia quando uma frase bate, salta, precipita, corre, se exaure,ele sobretudo tinha consciência nos ouvidos. muifreqüentemente uma má consciência, uma vez que não faltamos motivos se o alemão raramente, ou quase sempre muito tardeatinge a excelência na arte oratória. A maior obra-prima daprosa alemã é, como se convirá, a obra-prima do maiorpregador que existiu, a Bíblia é até agora o melhor livroalemão. Em confronto com a Bíblia de Luthero tudo o maispode ser chamado "literatura" — uma coisa que não cresceu naAlemanha e que portanto não criou, nem criará raízes noscorações alemães como o soube fazer a Bíblia.  Existem duas espécies de gênio; um que gera e quer gerar, eoutro que quer ser fecundado e parir. Entre os povos de gênioalguns receberam a incumbência do problema feminino dagravidez e do trabalho secreto de formar, amadurecer,aperfeiçoar — desta espécie foram os gregos e também osfranceses -; os outros são destinados a fecundar e serem a causade novas ordens de vida — como os judeus, os romanos etalvez também, com toda modéstia, os alemães? povosdilacerados e extasiados por febres ignotas e impulsosirresistíveis fora de seu ser, enamorados e cúpidos por raçasestrangeiras (daquelas que se deixam fecundar) e ao mesmotempo despótico, como tudo aquilo que sente em si aexuberância da força que "fecunda", a "graça de Deus". Estasduas espécies de gênio se procuram, como o macho procura afêmea, mas não sabem entender-se entre si, como aconteceentre macho e fêmea.  Cada povo possui sua própria hipocrisia, que chama a sua"virtude". O que existe de melhor neles não se conhece e nemjamais se poderá conhecer. O que a Europa deve aos judeus? Muitas coisas, boas e más, eantes de mais nada uma coisa que tem do melhor e pior paradar: o estilo grandioso da moral, o terrível e a majestade depostulados imensos, de infinitos significados, todo oromantismo e o sublime dos problemas morais — econseqüentemente a parte, mais interessante, embaraçosa eprocurada pelo caleidoscópio de seduções da vida, que iluminacom seus últimos clarões a céu, o pôr-do-sol, talvez, de nossacivilização européia. Nós artistas entre os espectadores e osfilósofos nos sentimos reconhecidos por isso — aos judeus.  É preciso resignar-se se o espírito de um povo que sofre equer sofrer de febre nacional e de ambição política é ofuscadoalgumas vezes por alguma nuvem ou qualquer outraperturbação, se tem, em resumo, qualquer acesso deimbecilidade; assim, por exemplo, os alemães da atualidadecultivaram a demência anti-francesa, outras, a anti-semita, aanti-polaca, a romântico-cristã, a wagneriana, a teutônica, aprussiana (como aqueles historiadores cabeçudos: Sybel eTreitschke) — são em suma, pequenos obumbramentos doespírito e da consciência alemã. Mas que se me perdoe, setambém eu, depois de uma breve, mas perigosa estada emterritório muito infecto, não fiquei completamente imune aocontato e comecei, como todos os outros, a ocupar-me decoisas que não me interessavam nem um pouco, primeiro sintoma de infecção política. Por exemplo, a respeito dosjudeus, estava a ouvir: — jamais encontrei algum alemão aquem os judeus fossem simpáticos e porquanto se rejeitesistematicamente o anti-semitismo propriamente dito pelosassisados e políticos, é preciso lembrar que este juízo, que estapolítica, não são dirigidos contra a espécie de sentimento por simesmo, mas sobretudo contra sua perigosa imoderação eprecisamente contra o modo infeliz e vergonhoso segundo oqual um tal sentimento se manifesta — sem margem de engano.Que a Alemanha tenha judeus em número suficiente para seuestômago, — o alemão demorará muito para digerir aquantidade de judeus de que atualmente está provido — comojá o fizeram os italianos, os franceses, os ingleses, graças à suadigestão mais robusta — eis o que diz claramente a voz doinstinto universal, da qual preciso ouvir o aviso. "Não sepermita o ingresso de outros judeus na Alemanha! E que lhesseja fechado principalmente o Império do Oriente (e também aÁustria). Isto exige o instinto de um povo, cuja índole ainda éfraca e pouco determinada, para que possa ser facilmenteabsorvida, cancelada por uma raça mais forte. Mas os judeussão incontestavelmente a raça mais vigorosa, mais tenaz e maisgenuína que vive na Europa, sabem caminhar nas piorescondições (e talvez muito melhor que em condições favoráveis)e isto quanto a tais virtudes, que atualmente se pretende tomarpor vícios, em termos de uma fé resoluta, que não temnecessidade de envergonhar-se diante das "idéias modernas",mudam, quando e se se mudam, sempre do mesmo modo que oimpério russo — Império que tem muito tempo diante de si eque não data de ontem — alarga suas conquistas, quer dizer: "omais lentamente possível"! Um pensador que fosse responsávelpelo futuro da Europa, em todos os seus projetos deveria incluiros judeus e os russos, fatores seguros e prováveis na liça, nogrande confronto de forças.Aquilo que hoje é dito "nacional" é antes de mais nada "resfacta" antes que "res nata" (e que, maldição, assemelhasse a  uma res ficta et picta) é de qualquer modo algo que está sendoformado, uma coisa jovem, fácil de ser mudada, mas não aindauma raça e menos ainda qualquer coisa de aeree perennius,como são os judeus; essas nações devem evitar qualquerconcorrência de hostilidade entre elas! Que os judeus sequisessem e fossem constrangidos como parece que o queremfazer os anti-semitas poderiam ter o predomínio, literalmentedominar a Europa. é indubitável, talvez não ambicionem talpredomínio. Por ora pedem e desejam, com uma certainsistência, a absorção na Europa, têm sede de ter uma demoraestável para que possam ser tolerados, respeitados em qualquerlugar, de pôr fim à sua vida nômade, ao "judeu errante" e serianecessário considerar seriamente tal desejo, tal tendência(significando por si mesma um amolecimento dos instintoshebraicos), talvez ir ao encontro do mesmo, mas para poderfazer isso. seria adequado afastar, de todos os países, osagitadores anti-semitas. Dever-se-ia receber os judeus comtodas as precauções imagináveis, com um certo espíritoseletivo, ao redor. como o fez a nobreza inglesa. É óbvio, quesem temor algum os tipos mais vigorosos e mais sólidos doneo-germanismo poderiam manter relações com os judeus, porexemplo. os oficiais nobres da Marca, seria de grande interesseestudar a mestiçagem do elemento destinado por atavismo aocomando e à obediência — e nas duas coisas o pais citado podeservir de exemplo, clássico — com gênio do dinheiro epaciência (que traria um pouco de espiritualidade, da qual hámuita falta no país mencionado). Mas que se me permitetruncar minha jucunda divagação patriótica, e que retorne àminha seriedade, ao "problema europeu", como eu o entendo,isto é, da formação da nova casta que reinará na Europa. Não são certamente uma raça filosófica — esses ingleses!Bacon significa um atentado contra o espírito filosófico em geral, Hobbes, Hume, e Locke um aviltamento e um desprezode mais de um século do conceito do "filósofo". Contra Hulneinsurgiu-se Kant; quanto a Locke, Schelling pode dizer: "jeméprise Locke"; na luta contra o mecanismo brutal daconcepção inglesa, estiveram em acordo Hegel e Schopenhauer(com Goethe) esses dois geniais irmãos, inimigos da filosofia,que caminharam rumo aos dois pólos opostos do espíritoalemão e que se desprezaram apenas como dois irmãospoderiam fazê-lo. O que falta na Inglaterra e sempre faltou,aquele meiocomediante e reitor, o insosso fazedor deconfusões, Carlyle sabia muito bem, mesmo quando tentavaesconder sob os trejeitos apaixonados tudo aquilo que sabiafaltar-lhe — isto é, a verdadeira potência da intelectualidade, averdadeira profundidade do olhar espiritual, logo, a filosofia.É característico de uma raça tão pouco filosófica se prenderao cristianismo com tanta rigidez, a sua disciplina lhe énecessária para tornar-se moral e humana. O inglês, mais triste,mais sensual, mais voluntarioso e mais brutal que o alemão, étambém, por ser o mais brutal dos dois, mais religioso que oalemão, posto que o cristianismo lhe é mais necessário.Para quem possui um olfato delicado, esse cristianismo inglêssente ainda o spleen e o extravio alcoólico, contra os quais porcertas boas razões isso deve servir de contra-veneno, isto é, umveneno mais fina contra um mais grosseiro, na verdade umenvenenamento refinado já é um progresso, um passo rumo àintelectualidade num povo rústico. O pesadume e a rústicagravidade são disfarçados e tomados suportáveis, melhor ainda,explicados e transformados pela mímica cristã, pela prece epelo cântico e para aquele rebanho de animais embriagadosque, como nos tempos passados com o metodismo, novamentesão ouvidos grunhir com o "Exército da Salvação", podeinclusive acontecer que as colônias penais representem omáximo do "humanismo" que possa ser conseguido, pode-selhesfazer essa concessão. Aquilo que o ofende mesmo noinglês mais humanizado é a sua total falta de sentimento musical, falando metaforicamente (e também sem metáfora).Aos movimentos de sua alma e também do seu corpo falta oritmo do "tempo" e da dança, falta inclusive o desejo de um talritmo, da "música". Que se o ouça quando fala, observe-se ocaminhar das mais graciosas inglesinhas — não, nempombinhas, nem cisnes mais belos que elas — e escute seucanto! Mas, pretendo um pouco mais...  Certas verdades são percebidas pelos medíocresprimeiramente, porque são mais conformes à sua inteligência enão têm atrativo ou sedução senão para os espíritos medíocres.Se é levado a constatar este fato, por si mesmo poucoconfortador, precisamente depois que as mentes de algunsingleses respeitabilíssimos, mas de inteligência medíocre —designarei Darwin, John Stuart Mill e Herbert Spencer — namédia do gosto europeu parecem exercer uma influência pre,ponderante.De fato, quem poderia duvidar da utilidade do aparecimento,a intervalos, de tais espíritos? Seria um erro sustentar queprecisamente os espíritos superiores, que tentam sendeirosinacessíveis aos outros, possuam suficiente habilidade paraconstatar muitos fatos pequenos e vulgares, para tirar delescertas conclusões — pelo contrário. esses são exceções e seencontram numa posição pouco feliz frente à "regra". E alémdisso, devem fazer outras coisas distintas do apenas conhecer,devem ser, significar, representar novos valores! O abismo quesepara o saber do poder é talvez mais profundo e também maissinistro do que se possa crer aquilo que se ouve do poder, numestilo grandioso, quem tem o espírito que cria, poderá, talvezdeva ser um ignorante — posto que as descobertas científicas àDarwin exigem uma certa restrição de vistas, uma certa aridezdo espírito, certo pedantismo, muito conforme à índole inglesa.— Não se esqueça que os ingleses, graças à sua profunda  mediocridade, ocasionaram uma depressão geral do espíritoeuropeu, as ditas "idéias modernas" ou ainda "idéias .do séculodezoito", ou ainda "idéias francesas" — isto é, tudo aquilocontra o que o espírito alemão se rebelou com um sentimentode profunda náusea, tem origem inglesa, sem sombra dedúvida. Os franceses nada mais fizeram que macaquear eapresentar as idéias, do mesmo modo que foram seus melhoresdefensores e infelizmente suas primeiras e mais completasvitimas, depois, a serviço das "idéias modernas" l'âmefrançaise acabou por atoleimar-se e desgastar-se a ponto demais ser reconhecível para quem quer que se lembrasse de suaforça antiga, apaixonada e profunda, da sua distinçãoengenhosa, enfim, de seus séculos dezesseis e dezessete. Mas,seja lá como for, é preciso lembrar desse mandamento daeqüidade histórica: que a nobreza européia, aquela dosentimento, do gosto, dos costumes, a nobreza, enfim, no seumais alto significado, é obra e criação francesa, a vulgaridadeeuropéia, o plebeísmo das idéias modernas é invenção inglesa.  Ainda hoje, a França é a sede da cultura mais intelectual emais refinada da Europa e a alta escola do bom gosto, mas épreciso saber encontrar essa "França do bom gosto". Quem fazparte dela se mantém zelosamente escondido, é composta porum pequeno número de pessoas, talvez não suficientementeseguras sobre suas pernas, na maior parte fatalistas,misantropos, doentes, em parte, ainda, efeminados, refinados,invejosos, que encontram prazer em esconder-se. Mas umacoisa lhes é comum, mantém os ouvidos bem tampados paranão ouvir as solenes tolices e o vozeiro vazio do bourgeoisdemocrático. E de fato, a França que se agita no palco é umaFrança diminuída e grosseira, recentemente, por ocasião dosfunerais de Victor Hugo, afogou-se numa verdadeira orgia demau gosto e, auto-glorificação. Também outra coisa lhes é  comum: a boa vontade em opor-se à germanização espiritual, emais ainda, uma absoluta incapacidade de conseguir isso.Talvez neste momento, na França do espírito, que é também ado pessimismo, Schopenhauer seja mais conhecido do quejamais o foi na Alemanha; não falamos de Heinrich Heine quese transferiu para o sangue dos ]!ricos mais refinados epretensiosos da moderna Paris, ou ainda Hegel que, sob acobertura de Taine — o maior historiador vivo — exerce umainfluencia tirânica. E relativamente a Richard Wagner —quanto mais a música francesa tender a identificar-se com asreais necessidades da "Ame moderne" e mais se tornaráwagneriana, é correto predizê-lo, isso já acontece emabundância!Restam ainda três coisas que os franceses podem jactar-se deser seu botim e indiscutível propriedade, aquela característicairredutível de uma superioridade cultural sobre o resto daEuropa, e vergonha da voluntária ou involuntária germanizaçãoe plebeização do gosto, em primeiro lugar a sua disposição áspaixões artísticas, a adoração da "forma", para a qual foi criada,entre mil outras, a expressão, "l'art paur l'art", isto não faltou naFrança há já três séculos, e sempre, graças ao respeito que seprofessa pelo "menor número" é possível, na França, umaespécie de "música de câmara" da literatura, o que não éencontrado em nenhuma parte da Europa.A segunda prerrogativa dos franceses, que lhes confere suasuperioridade na Europa é sua antiga múltipla culturamoralística que faz com que, em média mesmo nos"romanciers" dos jornais e dos "boulevardiers de Paris", seencontra uma sensibilidade e uma curiosidade psicológica, deque não se tem idéia na Alemanha (ou menos ainda, uma formacorrespondente). Para chegar a isso, faltam aos alemães algunsséculos de trabalho moral, que a França não poupou a simesma, que por essa razão chamará os alemães de "ingênuos",transformará em louvor os seus defeitos (que coisa contrária àinexperiência, à ingenuidade alemã in voluptate psycholopica,  que tem uma afinidade não muito distante com a enfadonhaconversa alemã — e como expressão saída da verdadeiracuriosidade da imaginação francesa por esse reino de delicadosarrepios sirva de exemplo Henry Bayle, aquele singularprecursor, que com um "tempo" napoleônico atravessou a suaEuropa e percorre muitos séculos da alma européia, como umdescobridor e investigador da mesma, — foram necessáriasduas gerações, para poder atingi-la de alguma forma, pararemediar alguns dos problemas que, atormentavam eextasiavam aquele curioso epicurista hirto de pontos deinterrogações, que foi o último grande psicólogo francês). Masa França ostenta ainda um terceiro titula de superioridade, naíndole francesa se encontra uma síntese suficientemente bemsucedida do norte e do sul, que permite aos francesescompreender e fazer muitas coisas que um inglês não poderia oseu temperamento que periodicamente se volta para o sul e sedistancia nesta direção, e no qual de quando em quandotransborda o sangue provençal e lígure, preserva-o do horrívelcinzento do norte, do fantástico, da anemia dos países sem sol— da nossa moléstia germânica do gosto, contra cujo excessomomentâneo prescreve-se o sangue e o ferro em grandesquantidades, isto é, a "grande política" (terapia perigosa que meensina a ter paciência, mas não me permite esperar).Ainda hoje na França se procura compreender aos homensraros, dificilmente encontráveis, de vistas mais largas, parapoder encontrar a sua satisfação nos limites estreitos dossentimentos ultrapatrióticos, que sabem amar o Sul em o Nortee o Norte no Sul, em suma os "bons europeus", os europeus dofuturo.Para eles foi escrita a música de "Bizet", deste novo gênio queentreviu novas belezas e novas seduções e que descobriu afímbria do "sul da música".  Contra a música alemã sustento que sejam necessárias certasprecauções. Suponho que alguém ame o sul como eu amo,como uma grande escola de saúde, tanto espiritual quantosensual, como imensa orgia de luz na qual pode se expandir umser cheio de sua independência e de fé em si mesmo, então,esse alguém deve precaver-se contra a música alemã, porqueatacando-lhe o gosto, atacar-lhe-á também a saúde. Omeridional não por nascimento, mas pela fé, quando sonha umfuturo da música, deve ao mesmo tempo sonhar a sua redençãoda, música do norte e. ouvir os prelúdios de uma música maisprofunda, mais potente talvez, mais maligna e misteriosa, deuma música superalemã que diante do mar voluptuosamenteazul e do sol meridional não enlanguesce, não empalidece,como acontece para toda música alemã, de uma músicasupereuropéia, capaz de resistir aos pores do sol dos desertosafricanos. cuja alma seja conforme à palma, e que se sinta àvontade em meio à possantes e belas feras ferozes e solitárias.— O meu ideal seria uma música, cujo maior fascínioconsistisse na ignorância do bem e do mal, uma música,trêmula como nostalgia de marujo. como qualquer sombradourada, por qualquer lembrança terna, uma arte queabsorvesse em si mesma, de uma grande distância, todas ascores de um mundo moral que declina, de um mundo tornadoquase incompreensível e que fosse hospitaleira e profunda obastante para acolher em si os fugitivos tardios.  Graças à mórbida aversão que o delírio do nacionalismosuscitou entre os povos da Europa e mantém viva ainda hoje,graças aos políticos de vista curta e mão lesta, os quais por viasde tal aversão estão no auge e não apresentam nem mesmocomo a política dissolutora que preferem não possa ser mais que uma política de "intermezzo" — graças a tudo isso e aqualquer outra coisa que atualmente não pode ser exprimida,são transcurados ou interpretados arbitrária e mentirosamente,os indícios mais seguros da vontade de unificação da Europa.Todos os trabalhos secretos da alma dos homens maisprofundos e de maior amplitude de visão tendiam a preparar talsíntese e procurar antecipar o europeu do futuro, sobretudo naaparência ou ainda nas horas de fraqueza e na velhice lutarampelo princípio da "nacionalidade" — e repousaram de simesmos tornando-se "patriotas". O meu pensamento lembra oshomens que tiveram renome: Napoleão, Goethe, Beethoven,Stendhal, Heinrich Heine, Schopenhauer. Não incorrerei emreprovação se a estes nomes eu juntar o de Richard Wagner,acerca do qual não é preciso deixar-se induzir a formar umfalso conceito sobre a base de seus próprios mal-entendidos —gênios de sua espécie raramente têm o direito de entender a simesmos. Ainda menos se deve considerar o caso trivial que sefaz na França contra ele — é um fato incontestável que entre oneo-romantismo francês e Richard Wagner há uma íntimaafinidade. Comungam intimamente nos cumes e nasprofundezas de suas aspirações — a Europa é uma das que seatira na sua arte múltipla e imperiosa, aspirando as alturas e oexterior -, e que coisas mais? A uma nova luz? A um novo Sol?Mas quem jamais saberia exprimir com clareza aquilo que estesmestres, inventores de novas linguagens, não souberamexprimir com clareza? Uma coisa é certa, que todos tinhamenfrentado as mesmas tempestades, estes últimos entre osgrandes pesquisadores! Todo conjunto dominadocompletamente pela literatura — esses, os primeiros artistasque possuem uma cultura mundial, na maior parte essesmesmos escritores, poetas, reveladores e amalgamadores dasartes e dos sentidos (Wagner, músico, classificado entrepintores, como poeta entre os músicos, como artista em geralentre os grandes atores); todos fanáticos pela expressão "a todocusto" — ressaltarei sobretudo Delacroix cujo espírito tem  maior afinidade com Wagner — todos grandes descobridoresno reino do sublime, também do brutal e do horrível,descobridores ainda maiores dos efeitos, na encenação, na arteda exposição, todos com engenhosidade muito superior ao seugênio, virtuosos, perfeitos, sinistramente acessíveis a tudoaquilo que atrai, constrange, revoluciona, inimigos jurados dalógica e da linha reta, ávidos pelo estranho, pelo exótico, pelomonstruoso, pelo contraditório, pelo contorcido. Tântalos davontade, g plebeus aventureiros, os quais no viver e no criareram incapazes de um "tempo" aristocrático, de um "lento" —lembra-se de Balzac — trabalhadores desenfreados que com otrabalho ameaçavam destruir a si mesmos, antinômicos erebeldes nos costumes, ambiciosos e insaciáveis sem equilíbrioe sem prazer, mas todos se curvando diante da cruz cristã (eisso foi inevitável porque não havia entre eles quem fossecapaz de conceber uma filosofia do Anticristo) em resumo,uma espécie de homens superiores, temerariamente audazes,estupendamente violentos, cujo vôo de águias fascinava aos Idemais, que apresentaram ao próprio século — que é o séculodas massas o conceito do "homem superior" ...Queiram os amigos alemães de Wagner examinarconscienciosamente se na arte wagneriana existe algo depuramente alemão ou se sua projeção não é devidaprecisamente ao fato de se inspirar em fontes não alemãs, e aofazer isso não esqueçam o fato de que, ao aperfeiçoamento deseu tipo foi indispensável Paris. para a qual lhe chamavaimperiosamente a profundidade de seus instintos, que toda sualinha de conduta, ou seu auto-apostolado, só poderiamaperfeiçoar-se segundo o modelo do socialismo francês. Talvezse encontre num confronto menos superficial — o que redundaem favor da índole alemã de Wagner — enquanto sedemonstrou mais vigoroso, audaz, elevado e menosescrupuloso quanto possa ser um francês do século XIX — eisto pelo mérito do fato de que nós os alemães estamos muitomais próximos dos bárbaros do que os franceses. — Talvez o que Wagner criou de mais singular permanecerá para sempre, enão só atualmente, inacessível, incompreensível, imutável, paratoda a raça latina: a figura de Siegfried, deste homem "moltolibero" a qual, de fato, é muito livre, muito rude, muito jovial,muito sadio, muito anticatólico para o gosto de povosoriginários de uma civilização antiga e caduca. Pode significartambém uma contravenção romântica, este Siegfried: se bemque Wagner tenha expiado seu pecado, quando em seus últimosdias — sacrificando a um gosto que já era passado, em política— com a sua habitual veemência religiosa começou, se não aempreender, pelo menos a pregar a peregrinagem a Roma.— Para evitar compreensão equivoca de minhas últimaspalavras, recorrerei a alguns versos fortes que denunciarão atodas orelhas — mesmo as menos apuradas — o que tenhocontra o mais "recente Wagner" e sua música do Parsifal:— Será isto alemão, ainda? -De coração alemão estes guinchos sórdidos?Será de corpo alemão esta auto-descarnação?Alemão este abrir de mãos. sacerdotal?Esta excitação sensorial com dor de incenso?E será alemão este hesitar, precipitar, cambalear, indefinidoindefectível bambolear?Estes olhares furtivos de religiosa, este badalar de vésperas,este extasiar falso em céus e supra-céus?Isto, alemão?Refleti ainda às portas,O que ouvis, é Roma...A fé de Roma,sem palavras!  

Além do bem e do mal - FRIEDRICH WILHELM NIETZSCHEOnde histórias criam vida. Descubra agora