Quem nasceu mestre, somente leva a sério as coisas apenasno que se referem a discípulos, inclusive a si mesmo.64"A ciência pela ciência" é a última cilada que nos arma amoral — e é precisamente essa que envolve a todosinextrincavelmente em sua rede.65A atração exercida pelo conhecimento seria bastante fraca, separa atingi-lo não fosse preciso vencer tantos pudores.65-aSomos mais desonestos para com Deus: pretendemos que elenão possa nem deva pecar.66A propensão a aviltar-se, a deixar derrubar, desfrutar ecarregar-se de mentiras, poderia ser o pudor de um Deus emmeio aos homens.67O amor por um único ser é uma barbárie: porque acontece emdetrimento de todos os outros seres. Mesmo o amor de Deus.7768"Eu fiz isto", me diz a memória. "Não posso tê-lo feito",sustém a meu orgulho que é inexorável. Finalmente cede amemória.69Observou-se mal a vida, se ainda não se descobriu a mão que,piedosamente, mata.70Quando se tem caráter ainda se tem na vida a própria aventuratípica, que sempre se renova.71O sábio como astrônomo — Enquanto sentires os astros comoalgo "acima de ti", não possuirás ainda o olhar do vidente.72Não a potência, mas a duração de um sentimento elevadoforma os homens superiores.73Aquele que atinge seu ideal, por si só o ultrapassa.73-aEis pavões que escondem zelosamente sua cauda e nissocolocam sua soberba.7874Um homem dotado de gênio é insuportável se além disso nãotem pelo menos duas outras qualidades: a gratidão e a polidez.75O grau e espécie de sexualidade de um indivíduo penetramaté o mais alto grau em seu espírito.76Em condições de paz o homem belicoso engolfinha-seconsigo mesmo.77Os princípios servem para tiranizar os próprios hábitos, ajustificá-los, honrá-los, vituperá-los ou escondê-los — doishomens de princípios iguais desejam alcançar, provavelmente,coisas fundamentalmente diferentes.78Quem despreza a si mesmo, se honra pelo menos comodesprezador.79Uma alma que se sabe amada, mas não sabe retribuir,manifesta suas próprias profundezas: o que estava sepultado nofundo vem à tona.7980Uma coisa explicada deixa de interessar. — O que queriadizer o Deus que sugeriu: "conhece a ti mesmo"? Talvezquisesse dizer: "deixa de interessar-te por ti mesmo! torna-teobjetivo"! — Sócrates? e o "homem científico"?81É uma coisa terrível morrer de sede em meio ao mar. Érealmente necessário que se ponha tanto sal na vossa verdade aponto de torná-la incapaz de satisfazer a sede?82"Piedade para todos" — seria dureza e tirania contra timesmo, meu Caro!83O Instinto — Quando a casa está em chama esquece-se até decomer. Mas depois come-se sobre as cinzas.84A mulher aprende a odiar à medida que desaprende a fascinar.85As mesmas paixões no homem e na mulher são diferentes emseu andamento e é por isso que o homem e a mulher jamaisdeixam de se desentender.8086As mulheres escondem no fundo de sua vaidade pessoal umdesprezo imperial — pela "mulher" uma.87Coração encadeado, espírito livre — Quando se prende ocoração e se o mantém preso, pode-se permitir muita liberdadeao espírito: eu já o disse uma vez. Mas não se deseja crer-me,porque não era coisa já consabida.88Começa-se a desconfiar das pessoas muito prudentes quandoelas se mostram embaraçadas.89As aventuras terríveis nos fazem pensar se aqueles que sãopor elas tocados não são também algo terrível.90As pessoas graves, melancólicas, tornam-se precisamente poraquilo que tornam as outras mais pesadas, isto é, o ódio e oamor, mais leves e saem aos poucos à sua superfície.91Tão frio, tão gelado que apenas ao tocá-lo já se queimam osdedos, cada mão que o toca retrocede apavorada! Eprecisamente por isso alguns o acreditam ardente.8192Quem ainda não se sacrificou pelo menos uma vez pela suaprópria reputação?93Na afabilidade para com todos não se vê traço de misantropia,mas se houver, quanto desprezo pelos homens.94A maturidade do homem consiste em ter reencontrado aseriedade que em criança se colocava nos jogos.95Envergonhar-se da própria imoralidade é um degrau daescada no extremo da qual se sentirá vergonha da própriamoralidade.96É preciso despedir-se da vida como Ulisses de Nausica, maisbendizendo-a que enamorado.97Como! Um grande homem? Não consigo ver mais que umcomediante do próprio ideal.98Quando se amestra a própria consciência, esta acaricia aomesmo tempo em que morde.8299Fala o desiludido: Esperava ouvir o eco, mas apenas ouçoloas.100Diante de nós mesmos sempre nos fazemos sentir menosagudos que realmente somos. assim repousamos do cansaçoque nos causa o próximo.101Hoje um vidente gostaria de acreditar-se um Deus tornadoanimal.102Encontrar amor em quem se ama deveria desenganarrealmente aquele que ama acerca do objeto amado. — Como?Seria ainda uma coisa modesta aquela de te amar? Ou aindatola? Ou ainda, ou ainda...103O perigo na felicidade — "Tudo é pelo melhor, agora! Agoraamo qualquer destino — quem deseja ser meu destino?104Não é já o seu amor ao próximo, mas, unicamente aimpotência desse seu amor que impede aos cristãos de hoje...de lançar-nos à fogueira.83105Ao espírito livre, àquele que possui a "religião doconhecimento" — repugna a pia fraus mais que a impia fraus.Daí nasce a profunda incompreensão da Igreja quando sepertence ao "espírito livre" — a Igreja tenta sujeitar.106Graças à música as paixões encontram gozo em si mesmas.107Quando se toma a resolução de tapar os ouvidos mesmo aosmais válidos argumentos contrários, dá-se indícios de caráterforte. Embora isso também signifique eventualmente a vontadelevada até à estupidez.108Não existem fenômenos morais, mas uma interpretação moraldos fenômenos.109O delinqüente de modo muito freqüente não está à altura deseu delito: ele o empequenece e o calunia.110Os advogados dos delinqüentes são raramente tão artistas queconsigam fazer ressaltar a favor de quem cometeu, quanto detão terrivelmente belo existe na ação cometida.84111Quando nosso orgulho foi ofendido é precisamente quandonossa vaidade se sente menos ofendida.112Aquele que se sente predestinado mais à contemplação que àfé, todos os crentes parecem demasiado escandalosos eindiscretos: procura evitá-los.113Desejas predispor alguém a teu favor? Finge-te embaraçadodiante dele.114A enorme expectativa e a vergonha da expectativa que asmulheres colocam no amor carnal, tiram desde logo todas asperspectivas às mulheres.115Onde não está em jogo nem o amor nem o ódio, as mulheressão medíocres artistas.116As grandes épocas de nossa vida ocorrem quando sentimos acoragem de rebatizar o mal que em nós existe como o melhorde nós mesmos.85117A vontade de superar uma paixão não é mais que a vontade deoutra ou muitas outras paixões.118Existe uma ingenuidade na admiração: aquela do indivíduoque jamais pensou que um dia pudesse ser admirado.119A náusea pela sordidez pode ser tão grande que nos impeça depurificar-nos, de justificar-nos.120A sensualidade costuma crescer mais rapidamente que oamor, de tal forma que a raiz permanece débil e pode serfacilmente extirpada.121Refinamento a fato de Deus ter aprendido grego quando quisser escritor — e que não o tenha aprendido melhor.122Comprazer-se com uma loa é em alguns um cumprimento docoração e precisamente o contrário de uma vaidade do espírito.123Também o concubinato sofreu uma corrupção graças aomatrimônio.86124Quem na fogueira exulta ainda, não triunfa da dor, mas defelicidade de não sentir a dor que esperava. Um símbolo.125Quando somos obrigados a mudar de opinião acerca de rimindivíduo, fazemos com que pague muito caro o trabalho, quecusta uma tal mudança.126Um povo é o rodeio da natureza para chegar a seis ou setegrandes homens... Sim, e para depois evitá-los.127A ciência é repugnante ao pudor de todas as verdadeirasmulheres. Sentem a mesma sensação que se quisesse olhá-laspor sob a pele, pior ainda, sob as vestes.128Quanto mais abstrata a verdade que desejares ensinar, maisdeveras seduzir aos sentidos para que se sintam atraídos porela.129O diabo tem as mais amplas perspectivas relativamente aDeus, por isso se mantém tão distante dele: o diabo, quer dizer,o mais antigo amigo do conhecimento.87130O ser verdadeiro começa a mostrar-se quando o seu talentodeclina, quando deixa de mostrar o quanto pode. O talentotambém é um adorno e um adorno também serve para esconder.131Cada sexo se engana relativamente ao outro, e assim, naverdade, no fundo, ama e respeita apenas a si mesmo (ou paraexprimir-me mais gentilmente o próprio ideal).Assim, o homem deseja que a mulher seja plácida, mas amulher é essencialmente aversa à placidez, da mesma formaque o gato, por mais que seja capaz de ter aparência deplacidez.132É se punido principalmente pela própria virtude.133Quem não consegue encontrar o caminho para seu próprioideal leva vida mais impensada e deslocada que a de umhomem que não tem ideal.134Através dos sentidos temos toda manifestação de certeza, deboa consciência, toda aparência de verdade.135O farisaísmo do homem bom não é uma degeneração; é, pelocontrário, em grande parte, uma condição para ser bom.88136Um procura quem possa ajudá-lo a desenvolver as própriasidéias, outro procura a quem possa ajudar, disso nasce umaconversação interessante.137Em nossas relações com os cientistas e com os artistasenganamo-nos freqüentemente num douto que parece digno deestudo, descobre-se não raramente um homem medíocre e numartista medíocre — um homem muito interessante.138Fazemos em vigília aquilo que fazemos em sonho., criamos ointerlocutor e depois o esquecemos.139Na vingança e no amor a mulher é mais cruel que o homem.140Conselho em forma de adivinhas: Para que o vinculo não serompa é preciso que abocanhes bem.141O baixo ventre é a causa pela qual o homem não acha tãofácil sentir-se um deus.89142A frase mais pudica que já ouvi: "Dans le véritable amourc'est l'áme, qui enveloppe le corps".1143O que melhor se faz, gostaríamos que fosse aquilo que é maisdifícil de se fazer. Isto explica a origem de certas morais.144Quando uma mulher tem veleidades literárias, eis um índicede qualquer afecção da sensualidade. A esterilidade predispõe auma certa virilidade do gosto, o homem é. falemos comfranqueza. o animal in fecundo.145Confrontando, em geral, o homem à mulher pode-se afirmar:a mulher não possuiria o talento de se adornar se não tivesse oinstinto que a faz compreender que isso representa umasegunda parte.146Quem deve enfrentar monstros deve permanecer atento paranão se tornar também um monstro. Se olhares demasiadotempo dentro de um abismo, o abismo acabará por olhar dentrode ti. 1 No verdadeiro amor, a alma é que envolve o corpo.90147Tirado de antiga novela florentina — mas também da vida:buona femmina e mala femmina vuol bastone.1(Sacchetti, nov.86)148Induzir o nosso próximo a ter de nós uma boa opinião edepois acreditar sinceramente naquela opinião: quem possuitanta arte nisso quanto as mulheres?149Aquilo que numa época parece mau, é quase sempre umrestolho daquilo que na precedente era considerado bom oatavismo de um ideal já envelhecido.150Ao redor dos heróis tudo se torna tragédia, em torno dossemideuses, drama satírico e ao redor de Deus tudo setransforma — em quê? talvez no mundo?151Não basta ter gênio, é preciso também ter permissão de tê-lo— que lhes parece, meus amigos? 1 NT — Tanto a boa mulher quanto a má desejam um arrimo.91152Onde se ergue a árvore da ciência. eis o paraíso. Isto diziamas serpentes da antiguidade mais remota e também asmodernas.153Aquilo que se faz por amor sempre se faz além dos limites dobem e do mal.154A objeção, a oposição caprichosa, a desconfiança jucunda, aironia, são símbolos de saúde; tudo aquilo que éincondicionado pertence aos domínios da patologia.155O sentido do trágico cresce e decresce com a sensualidade.156A loucura é muito rara em indivíduos — nos grupos, nospartidos, nos povos, na época — essa a regra.157A idéia do suicídio é um potente meio de conforto: com elasuperamos muitas noites más.92158Ao mais forte de nossos instintos, ao tirano dentro de nós sesujeitam não apenas nossa razão, mas também nossaconsciência.159Deve-se devolver o bem e o mal; mas por que precisamente àmesma pessoa que fez o bem ou o mal?160Não se ama suficientemente o próprio conhecimento quandose o comunica a outros.161Os poetas são imprudentes com as próprias aventuras —desfrutam-nas.162Nosso próximo não é nosso vizinho, mas o vizinho deste —assim pensam todos os povos.163O amor traz a lume as qualidades mais elevadas e maissecretas de quem ama, aquilo que nele há de raro, deexcepcional e com isso engana facilmente acerca daquilo quenele é regra.93164Jesus disse aos seus judeus: "a lei era para os escravos, amai aDeus como eu o amo, como seus filhos! Que importa a moralpara nós, filhos de Deus?"165Dedicado a todos os partidos. — Um pastor sempre temnecessidade de um carneiro que sirva de guia ao rebanho — ouentão é constrangido a fazer-se de carneiro.166Com a boca se proferem mentiras, é verdade. porém ostrejeitos que se fazem ao mesmo tempo traduzem a verdade.167Nos homens rudes a ternura é objeto de vergonha — etambém algo precioso.168O cristianismo perverteu a Eros, este não morreu, masdegenerou-se. tornou-se vicio.169Falar muito de si mesmo pode ser também um modo de seesconder.170No elogio há muito maior indiscrição que na censura.94171Em um homem de ciência a compaixão quase faz rir, comoum ciclope com mãos feminilmente delicadas.172Abraçamos, por amor à humanidade. abraçamos ao primeiroque chega (porque não se pode abraçar a humanidade inteira),mas é precisamente isto que não é preciso fazer compreenderao primeiro que chega...173Não se odeia àquele que se despreza, mas se odeia apenasàquele que acreditamos igual ou superior a nós.174Oh vós, utilitaristas, também vós tendes amor a tudo que éútil porque serve de veículo às vossas inclinações — mas nofundo também considerais inoportuno o ringir de suas rodas.175Acabamos por amar nosso próprio desejo, em lugar do objetodesejado.176A vaidade dos outros é fastidiosa apenas quando se chocacom nossa própria vaidade.17795Acerta da "verdade" ninguém até agora foi suficientementeverdadeiro.178Não se acredita nas estultices das pessoas prudentes: queperda para os direitos do homem.179As conseqüências de nossas ações nos agarram pelo pescoço,sem perguntar se no entretempo melhoramos,180Há uma ingenuidade na mentira que é indício de boa fé.181É inumano bendizer quando somos amaldiçoados.182A familiaridade do homem superior é exasperante porque nãopodemos retribui-la.183Não pelo fato de me teres mentido, mas por não poderacreditar-te, é que me agonio.184Na bondade há por vezes uma insolência que me parecemalícia.96185— Ele não me agrada. — Por quê? — Porque não me sinto àsua altura. Algum homem já respondeu de tal forma?
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Além do bem e do mal - FRIEDRICH WILHELM NIETZSCHE
De TodoDo Original Alemão: JENSEITS VON GUT UND BÖSE © Copyright 2.001 by Hemus S.A. Todos os direitos adquiridos e reservada a propriedade literária desta publicação pela HEMUS LIVRARIA, DISTRIBUIDORA E EDITORA S.A. Visite nosso site: www.hemus.com.br Ped...