A VIGILÂNCIA HIERÁRQUICA

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  O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar;um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde,em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem seaplicam. Lentamente, no decorrer da época clássica, são construídos esses"observatórios" da multiplicidade humana para as quais a história das ciênciasguardou tão poucos elogios. Ao lado da grande tecnologia dos óculos, das lentes,dos feixes luminosos, unida à fundação da física e da cosmologia novas, houve aspequenas técnicas das vigilâncias múltiplas e entrecruzadas, dos olhares que devemver sem ser vistos; uma arte obscura da luz e do visível preparou em surdina umsaber novo sobre o homem, através de técnicas para sujeitá-lo e processos parautilizá-lo.Esses "observatórios" têm um modelo quase ideal: o acampamento militar. É acidade apressada e artificial, que se constrói e remodela quase à vontade; é o ápicede um poder que deve ter ainda mais intensidade, mas também mais discrição, por seexercer sobre homens de armas. No acampamento perfeito, todo o poder seriaexercido somente pelo jogo de uma vigilância exata; e cada olhar seria uma peça nofuncionamento global do poder. O velho e tradicional plano quadrado foiconsideravelmente afinado de acordo com inúmeros esquemas. Define-seexatamente a geometria das aléias, o número e a distribuição das tendas, a orientaçãode suas entradas, a disposição das filas e das colunas; desenha-se a rede dos olharesque se controlam uns aos outros:Na praça d'armas, tiram-se cinco linhas, a primeira fica a 16 pés da segunda; asoutras ficam a 8 pés uma da outra; e a última fica a 8 pés dos tabardos. Os tabardos ficama 10 pés das tendas dos oficiais inferiores, precisamente em frente ao primeiro bastão.Uma rua de companhia tem 51 pés de largura... Todas as tendas ficam a dois pés umasdas outras. As tendas dos subalternos ficam em frente às ruelas de suas companhias. Obastão de trás fica a 8 pés da última tenda dos soldados e a porta olha para a tenda doscapitães... As tendas dos capitães ficam levantadas em frente às ruas de suascompanhias. A porta olha para as próprias companhias.2O acampamento é o diagrama de um poder que age pelo efeito de uma visibilidade geral. Durante muito tempo encontraremos no urbanismo, na construçãodas cidades operárias, dos hospitais, dos asilos, das prisões, das casas de educação,esse modelo do acampamento ou pelo menos o princípio que o sustenta: oencaixamento espacial das vigilâncias hierarquizadas. Princípio do "encastramento".O acampamento foi para a ciência pouco confessável das vigilâncias o que a câmaraescura foi para a grande ciência da ótica.Toda uma problemática se desenvolve então: a de uma arquitetura que não émais feita simplesmente para ser vista (fausto dos palácios), ou para vigiar o espaçoexterior (geometria das fortalezas), mas para permitir um controle interior,articulado e detalhado — para tornar visíveis os que nela se encontram; maisgeralmente, a de uma arquitetura que seria um operador para a transformação dosindivíduos: agir sobre aquele que abriga, dar domínio sobre seu comportamento,reconduzir até eles os efeitos do poder, oferecê-los a um conhecimento, modificá-los. As pedras podem tornar dócil e conhecível. O velho esquema simples doencarceramento e do fechamento — do muro espesso, da porta sólida que impedemde entrar ou de sair — começa a ser substituído pelo cálculo das aberturas, doscheios e dos vazios, das passagens e das transparências. Assim é que o hospitaledifíciose organiza pouco a pouco como instrumento de ação médica: deve permitirque se possa observar bem os doentes, portanto, coordenar melhor os cuidados; aforma dos edifícios, pela cuidadosa separação dos doentes, deve impedir oscontágios; a ventilação que se faz circular em torno de cada leito deve enfim evitarque os vapores deletérios se estagnem em volta do paciente, decompondo seushumores e multiplicando a doença por seus efeitos imediatos. O hospital — aqueleque se quer aparelhar na segunda metade do século, e para o qual se fizeram tantosprojetos depois do segundo incêndio do Hôtel-Dieu — não é mais simplesmente oteto onde se abrigavam a miséria e a morte próxima; é, sem sua própriamaterialidade, um operador terapêutico.Como a escola-edifício deve ser um operador de adestramento. Fora umamáquina pedagógica que Pâris-Duverney concebera na Escola militar e até nosmínimos detalhes que ele impusera a Gabriel. Adestrar corpos vigorosos, imperativode saúde; obter oficiais competentes, imperativo de qualificação; formar militaresobedientes, imperativo político; prevenir a devassidão e a homossexualidade, imperativo de moralidade. Quádrupla razão para estabelecer separações estanquesentre os indivíduos, mas também aberturas para observação contínua. O próprioedifício da Escola devia ser um aparelho de vigiar; os quartos eram repartidos aolongo de um corredor como uma série de pequenas celas; a intervalos regulares,encontrava-se um alojamento de oficial, de maneira quecada dezena de alunos tivesse um oficial à direita e à esquerda; [os alunos aí ficavamtrancados durante toda a noite; e Pâris insistira para que fosse envidraçada] a parede decada quarto do lado do corredor desde a altura de apoio até um ou dois pés do teto. Alémdisso a vista dessas vidraças só pode ser agradável, ousamos dizer que é útil sob váriospontos de vista, sem falar das razões de disciplina que podem determinar essadisposição.3Nas salas de refeições, fora preparadoum estrado um pouco alto para colocar as mesas dos inspetores dos estudos, para queeles possam ver todas as mesas dos alunos de suas divisões, durante as refeições;haviam sido instaladas latrinas com meias-portas, para que o vigia para lá designadopudesse ver a cabeça e as pernas dos alunos, mas com separações lateraissuficientemente elevadas "para que os que lá estão não se possam ver".4 Escrúpulosinfinitos de vigilância que a arquitetura transmite por mil dispositivos sem honra. Sóos acharemos irrisórios se esquecermos o papel dessa instrumentação, menor massem falha, na objetivação progressiva e no quadriculamento cada vez mais detalhadodos comportamentos individuais. As instituições disciplinares produziram umamaquinaria de controle que funcionou como um microscópio do comportamento; asdivisões tênues e analíticas por elas realizadas formaram, em torno dos homens, umaparelho de observação, de registro e de treinamento. Nessas máquinas de observar,como subdividir os olhares, como estabelecer entre eles escalas, comunicações?Como fazer para que, de sua multiplicidade calculada, resulte um poder homogêneoe contínuo?O aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único olhar tudo verpermanentemente. Um ponto central seria ao mesmo tempo fonte de luz queiluminasse todas as coisas, e lugar de convergência para tudo o que deve ser sabido:olho perfeito a que nada escapa e centro em direção ao qual todos os olharesconvergem. Foi o que imaginara Ledoux ao construir Arc-et-Senans: no centro dos edifícios dispostos em círculo e que se abriam todos para o interior, uma altaconstrução devia acumular as funções administrativas de direção, policiais devigilância, econômicas de controle e de verificação, religiosas de encorajamento àobediência e ao trabalho; de lá viriam todas as ordens, lá seriam registradas todas asatividades, percebidas e julgadas todas as faltas; e isso imediatamente, sem quasenenhum suporte a não ser uma geometria exata. Entre todas as razões do prestígioque foi dado, na segunda metade do século XVIII, às arquiteturas circulares5, épreciso sem dúvida contar esta: elas exprimiam uma certa utopia política.Mas o olhar disciplinar teve, de fato, necessidade de escala. Melhor que ocírculo, a pirâmide podia atender a duas exigências: ser bastante completa paraformar uma rede sem lacuna — possibilidade em conseqüência de multiplicar seusdegraus, e de espalhá-los sobre toda a superfície a controlar; e entretanto ser bastantediscreta para não pesar como uma massa inerte sobre a atividade a disciplinar e nãoser para ela um freio ou um obstáculo; integrar-se ao dispositivo disciplinar comouma função que lhe aumenta os efeitos possíveis. É preciso decompor suasinstâncias, mas para aumentar sua função produtora. Especificar a vigilância e torná-la funcional.É o problema das grandes oficinas e das fábricas, onde se organiza um novotipo de vigilância. É diferente do que se realizava nos regimes das manufaturas doexterior pelos inspetores, encarregados de fazer aplicar os regulamentos; trata-seagora de um controle intenso, contínuo; corre ao longo de todo o processo detrabalho; não se efetua — ou não só — sobre a produção (natureza, quantidade dematérias-primas, tipo de instrumentos utilizados, dimensões e qualidades dosprodutos), mas leva em conta a atividade dos homens, seu conhecimento técnico, amaneira de fazê-lo, sua rapidez, seu zelo, seu comportamento. Mas é tambémdiferente do controle doméstico do mestre, presente ao lado dos operários e dosaprendizes; pois é realizado por prepostos, fiscais, controladores e contramestres. Àmedida que o aparelho de produção se torna mais importante e mais complexo, àmedida que aumentam o número de operários e a divisão do trabalho, as tarefas decontrole se fazem mais necessárias e mais difíceis. Vigiar torna-se então uma funçãodefinida, mas deve fazer parte integrante do processo de produção; deve duplicá-loem todo o seu comprimento. Um pessoal especializado torna-se indispensável, constantemente presente, e distinto dos operários:Na grande manufatura, tudo é feito ao toque da campainha, os operários sãoforçados e reprimidos. Os chefes, acostumados a ter com eles um ar de superioridade ede comando, que realmente é necessário com a multidão, tratam-nos duramente ou comdesprezo; acontece daí que esses operários ou são mais caros ou apenas passam pelamanufatura.6Mas se os operários preferem o enquadramento de tipo corporativo a esse novoregime de vigilância, os patrões, quanto a eles, reconhecem nisso um elementoindissociável do sistema da produção industrial, da propriedade privada e do lucro.Em nível de fábrica, de grande forja ou de mina,os objetos de despesa são tão multiplicados, que a menor infidelidade sobre cada objetodaria no total uma fraude imensa, que não somente absorveria os lucros, mas levaria afonte dos capitais...; a mínima imperícia desapercebida e por isso repetida cada dia podese tornar funesta à empresa ao ponto de anulá-la em muito pouco tempo; [donde o fatoque só agentes, diretamente dependentes do proprietário, e designados só para estatarefa poderão zelar] para que não haja um tostão de despesa inútil, para que não haja ummomento perdido no dia; seu papel será de vigiar os operários, visitar todas as obras,instruir o comitê sobre todos os acontecimentos.7A vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na medida em que é aomesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagemespecífica do poder disciplinar.8Mesmo movimento na reorganização do ensino elementar; especificação davigilância e integração à relação pedagógica. O desenvolvimento das escolasparoquiais, o aumento de seu número de alunos, a inexistência de métodos quepermitissem regulamentar simultaneamente a atividade de toda uma turma, adesordem e a confusão que daí provinham tornavam necessária a organização doscontroles. Para ajudar o mestre, Batencour escolhe entre os melhores alunos todauma série de "oficiais", intendentes, observadores, monitores, repetidores,recitadores de orações, oficiais de escrita, recebedores de tinta, capelães evisitadores. Os papéis assim definidos são de duas ordens: uns correspondem atarefas materiais (distribuir a tinta e o papel, dar as sobras aos pobres, ler textosespirituais nos dias de festa, etc); outros são da ordem da fiscalização: Os "observadores" devem anotar quem sai do banco, quem conversa, quem não temo terço ou o livro de orações, quem se comporta mal na missa, quem comete algumaimodéstia, conversa ou grita na rua; os "admonitores" estão encarregados de "tomar contados que falam ou fazem zunzum ao estudar as lições, dos que não escrevem ou brincam";os "visitadores" vão se informar, nas famílias, sobre os alunos que estiveram ausentes oucometeram faltas graves. Quanto aos "intendentes", fiscalizam todos os outros oficiais. Sóos "repetidores" têm um papel pedagógico: têm que fazer os alunos ler dois a dois, em vozbaixa.9Ora, algumas dezenas de anos mais tarde, Demia volta a uma hierarquia domesmo tipo, mas as funções de fiscalização agora são quase todas duplicadas por umpapel pedagógico: um submestre ensina a segurar a pena, guia a mão, corrige oserros e ao mesmo tempo "marca as faltas quando se discute"; outro submestre tem asmesmas tarefas na classe de leitura; o intendente que controla os outros oficiais ezela pelo comportamento geral é também encarregado de "adequar os recémchegadosaos exercícios da escola"; os decuriões fazem recitar as lições e "marcam"os que não as sabem.10 Temos aí o esboço de uma instituição tipo escola mútua emque estão integrados no interior de um dispositivo único três procedimentos: oensino propriamente dito, a aquisição dos conhecimentos pelo próprio exercício daatividade pedagógica, enfim uma observação recíproca e hierarquizada. Uma relaçãode fiscalização, definida e regulada, está inserida na essência da prática do ensino:não como uma peça trazida ou adjacente, mas como um mecanismo que lhe éinerente e multiplica sua eficiência.A vigilância hierarquizada, contínua e funcional não é, sem dúvida, uma dasgrandes "invenções" técnicas do século XVIII, mas sua insidiosa extensão deve suaimportância às novas mecânicas de poder, que traz consigo. O poder disciplinar,graças a ela, torna-se um sistema "integrado", ligado do interior à economia e aosfins do dispositivo onde é exercido. Organiza-se assim como um poder múltiplo,automático e anônimo; pois, se é verdade que a vigilância repousa sobre indivíduos,seu funcionamento é de uma rede de relações de alto a baixo, mas também até umcerto ponto de baixo para cima e lateralmente; essa rede "sustenta" o conjunto, e operpassa de efeitos de poder que se apóiam uns sobre os outros: fiscaisperpetuamente fiscalizados. O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas nãose detém como uma coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como uma máquina. E se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um "chefe", é oaparelho inteiro que produz "poder" e distribui os indivíduos nesse campopermanente e contínuo. O que permite ao poder disciplinar ser absolutamenteindiscreto, pois está em toda parte e sempre alerta, pois em princípio não deixanenhuma parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estãoencarregados de controlar; e absolutamente "discreto", pois funcionapermanentemente e em grande parte em silêncio. A disciplina faz "funcionar" umpoder relacionai que se auto-sustenta por seus próprios mecanismos e substitui obrilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos olhares calculados. Graças àstécnicas de vigilância, a "física" do poder, o domínio sobre o corpo se efetuamsegundo as leis da ótica e de mecânica, segundo um jogo de espaços, de linhas, detelas, de feixes, de graus, e sem recurso, pelo menos em princípio, ao excesso, àforça, à violência. Poder que é em aparência ainda menos "corporal" por ser maissabiamente "físico".    

Vigiar e Punir -  Michel FoucaultOnde histórias criam vida. Descubra agora