A MITIGAÇÃO DAS PENAS

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  A arte de punir deve portanto repousar sobre toda uma tecnologia da representação.A empresa só pode ser bem sucedida se estiver inscrita numa mecânica natural.Semelhante à gravitação dos corpos, uma força secreta nos empurra sempre paranosso bem-estar. Esse impulso só é afetado pelos obstáculos que as leis lhe opõem.Todas as várias ações do homem são efeitos dessa tendência interior.Encontrar para um crime o castigo que convém é encontrar a desvantagem cujaidéia seja tal que torne definitivamente sem atração a idéia de um delito. É uma artedas energias que se combatem, arte das imagens que se associam, fabricação deligações estáveis que desafiem o tempo. Importa constituir pares de representação devalores opostos, instaurar diferenças quantitativas entre as forças em questão,estabelecer um jogo de sinais-obstáculos que possam submeter o movimento dasforças a uma relação de poder.Que a idéia do suplício esteja sempre presente no coração do homem fraco edomine o sentimento que o arrasta para o crime.1Esses sinais-obstáculos devem constituir o novo arsenal das penas, como asmarcas-vinditas organizavam os antigos suplícios. Mas, para funcionar, têm queobedecer a várias condições:1) Ser tão pouco arbitrários quanto possível. É verdade que é a sociedade quedefine, em função de seus interesses próprios, o que deve ser considerado comocrime: este, portanto, não é natural. Mas se queremos que a punição possa semdificuldade apresentar-se ao espírito assim que se pensa no crime, é preciso que, deum ao outro, a ligação seja a mais imediata possível: de semelhança, de analogia, deproximidade. É preciso darà pena toda a conformidade possível com a natureza de delito, a fim de que o medo de umcastigo afaste o espírito do caminho por onde era levado na perspectiva de um crimevantajoso.2A punição ideal será transparente ao crime que sanciona; assim, para quem acontempla, ela será infalivelmente o sinal do crime que castiga; e para quem sonhacom o crime, a simples idéia do delito despertará o sinal punitivo. Vantagem para aestabilidade da ligação, vantagem para o cálculo das proporções entre crime ecastigo e para a leitura quantitativa dos interesses; pois tomando a forma de umaconseqüência natural, a punição não aparece como o efeito arbitrário de um poderhumano:Tirar ao castigo o delito é a melhor maneira de proporcionar a punição ao crime. Seé isso o triunfo da justiça, é também o triunfo da liberdade, pois então, não vindo mais aspenas da vontade do legislador, mas da natureza das coisas, não se vê mais o homemfazer violência ao homem.3Na punição analógica, o poder que pune se esconde.Os reformadores apresentaram uma série inteira das penas naturais porinstituição, e das que retomam em sua forma o conteúdo do crime. Vermeil, porexemplo: os que abusam da liberdade pública serão privados da sua; serão retiradosos direitos civis dos que abusarem das vantagens da lei e dos privilégios das funçõespúblicas; a multa punirá o peculato e a usura; a confiscação punirá o roubo; ahumilhação, os delitos de "vanglória"; a morte, o assassinato; a fogueira, o incêndio.Quanto ao envenenador,o carrasco lhe apresentará uma taça cujo conteúdo lhe jogará no rosto, para esmagá-locom o horror de seu crime ao fazê-lo ver sua imagem, e o meterá em seguida numacaldeira de água fervente.4Simples sonho? Talvez. Mas o princípio de uma comunicação simbólica é denovo claramente formulado por Le Peletier, quando apresenta em 1791 a novalegislação criminal:Tem que haver relações exatas entre a natureza do delito e a natureza da punição;aquele que foi feroz em seu crime sofrerá dores físicas; aquele que tiver sido preguiçososerá obrigado a um trabalho penoso; aquele que foi abjeto sofrerá uma pena de infâmia.5Apesar de crueldades que lembram muito o Antigo Regime, é um mecanismobem diverso que funciona nessas penas analógicas. Não se opõem mais o atroz aoatroz numa justa de poder; não é mais a simetria da vingança, é a transparência do sinal ao que ele significa; pretende-se, no teatro dos castigos, estabelecer umarelação imediatamente inteligível aos sentidos e que possa dar lugar a um cálculosimples. Uma espécie de estética razoável da pena.Não é só nas belas-artes que se deve seguir fielmente a natureza; as instituiçõespolíticas, pelo menos as que têm um caráter de sabedoria e elementos de duração, sefundamentam na natureza.6Que o castigo decorra do crime; que a lei pareça ser uma necessidade dascoisas, e que o poder aja mascarando-se sob a força suave da natureza.2) Esse jogo de sinais deve corresponder à mecânica das forças: diminuir odesejo que torna o crime atraente, aumentar o interesse que torna a pena temível;inverter a relação das intensidades, fazer que a representação da pena e de suasdesvantagens seja mais viva que a do crime com seus prazeres. Toda uma mecânica,portanto, do interesse de seu movimento, da maneira como é representado e davivacidade dessa representação.O legislador deve ser um arquiteto hábil que saiba ao mesmo tempo empregar todasas forças que possam contribuir para a solidez do edifício e amortecer todas as quepoderiam arruiná-lo.7Várias meios. "Ir direto à fonte do mal.8 Quebrar a mola que anima arepresentação do crime. Tornar sem força o interesse que a fez nascer. Atrás dosdelitos de vadiagem, há a preguiça; é esta que se deve combater.Não teremos sucesso trancando os mendigos em prisões infectas que são antescloacas [será preciso obrigá-los ao trabalho]. Empregá-los é a melhor maneira de punilos.9Contra uma paixão má, um bom hábito; contra uma força, outra força; mas oimportante é a força da sensibilidade e da paixão, não as do poder com suas armas.Não devemos deduzir todas as penas desse princípio tão simples, tão feliz e jáconhecido de escolhê-las no que há de mais deprimente para a paixão que levou ao crimecometido?10Fazer funcionar contra ela mesma a força que levou ao delito. Dividir ointeresse, servir-se dele para tornar temível a pena. Que o castigo o irrite e oestimule mais do que o erro que encorajara. Se o orgulho fez cometer um crime, que seja ferido, que se revolte com a punição. A eficácia das penas infamantes é seapoiarem sobre a vaidade que estava na raiz do crime. Os fanáticos se glorificamtanto de suas opiniões quanto dos suplícios que suportam por elas. Que se faça entãofuncionar contra o fanatismo a teimosia orgulhosa que o sustenta: "Comprimi-lopelo ridículo e pela vergonha; se humilharmos a orgulhosa vaidade dos fanáticosdiante de uma grande multidão de espectadores, devemos esperar efeitos felizesdessa pena". De nada serviria, ao contrário, impor-lhes dores físicas.11Reanimar um interesse útil e virtuoso, cujo enfraquecimento é provado pelocrime. O sentimento de respeito pela propriedade — a de riquezas mas também a dehonra, de liberdade, de vida — o malfeitor o perde quando rouba, calunia, seqüestraou mata. É preciso então que lhe seja reensinado. E começaremos a ensiná-lo nelemesmo: ele sentirá o que é perder a livre disposição de seus bens, de sua honra, deseu tempo e de seu corpo, para, por sua vez, respeitá-lo nos outros.12 A pena queforma sinais estáveis e facilmente legíveis deve assim recompor a economia dosinteresses e a dinâmica das paixões.3) Conseqüentemente, utilidade de uma modulação temporal. A penatransforma, modifica, estabelece sinais, organiza obstáculos. Qual seria sua utilidadese se tornasse definitiva? Uma pena que não tivesse termo seria contraditória: todasas restrições por ela impostas ao condenado e que, voltando a ser virtuoso, ele nuncapoderia aproveitar, não passariam de suplícios; e o esforço feito para reformá-loseria pena e custo perdidos, pelo lado da sociedade. Se há incorrigíveis, temos quenos resolver a eliminá-los. Mas para todos os outros as penas só podem funcionar seterminam. Análise aceita pelos Constituintes: o Código de 1791 prevê a morte paraos traidores e os assassinos; todas as outras penas devem ter um termo (o máximo éde vinte anos).Mas, principalmente, o papel da duração deve estar integrado à economia dapena. Os suplícios, em sua violência, corriam o risco de ter esse resultado: quantomais grave o crime, menos longo era seu castigo. A duração intervinha, sem dúvida,no antigo sistema das penas: dias de pelourinho, anos de banimento, horas passadasa expirar na roda. Mas era um tempo de prova, não de transformação concertada. Aduração deve agora permitir a ação própria do castigo: Uma série prolongada de privações penosas, poupando à humanidade o horror dastorturas, afeta muito mais o culpado que um instante passageiro de dor... Ela renova semcessar aos olhos do povo que serve de testemunha a lembrança das leis vingadoras e faza todos os momentos reviver um terror salutar.13O tempo, operador da pena.Ora, a frágil mecânica das paixões não permite que as pressionemos da mesmamaneira nem com a mesma insistência à medida que elas se reaprumam; é bom quea pena se atenue com os efeitos que produz. Pode naturalmente ser fixa, no sentidode que é determinada para todos, da mesma maneira, pela lei; seu mecanismointerno deve ser variável. Em seu projeto à Constituinte, Le Peletier propunha penasde intensidade regressiva: um condenado à pena mais grave só irá para a masmorra(corrente nos pés e nas mãos, escuridão, solidão, pão e água) durante uma primeirafase; terá a possibilidade de trabalhar dois, depois três dias por semana. Depois dosdois primeiros terços da pena, poderá passar ao regime da "limitação" (masmorrailuminada, corrente em torno da cintura, trabalho solitário durante cinco dias nasemana, mas em comum os outros dois dias; esse trabalho será pago e lhe permitirámelhorar seu passadio). Enfim, quando se aproximar do fim da pena, poderá passarao regime da prisão:Poderá se reunir com os outros prisioneiros todos os dias para um trabalho comum.Se preferir, poderá trabalhar sozinho. Sua comida será o que lhe render seu trabalho.144) Pelo lado do condenado, a pena é uma mecânica dos sinais, dos interesses eda duração. Mas o culpado é apenas um dos alvos do castigo. Este interessaprincipalmente aos outros: todos os culpados possíveis. Que esses sinais-obstáculosque são pouco a pouco gravados na representação do condenado circulem entãorápida e largamente; que sejam aceitos e redistribuídos por todos; que formem odiscurso que cada um faz a todo mundo e com o qual todos se proíbem o crime — aboa moeda que, nos espíritos, toma o lugar do falso proveito do crime.Para isso, é preciso que o castigo seja achado não só natural, mas interessante;é preciso que cada um possa ler nele sua própria vantagem. Que não haja mais essaspenas ostensivas, mas inúteis. Que também cessem as penas secretas; mas que oscastigos possam ser vistos como uma retribuição que o culpado faz a cada um de seus concidadãos pelo crime com que lesou a todos, como penas "continuamenteapresentadas aos olhos dos cidadãos", e "evidenciem a utilidade pública dosmovimentos comuns e particulares".15 O ideal seria que o condenado fosseconsiderado como uma espécie de propriedade rentável: um escravo posto a serviçode todos. Por que haveria a sociedade de suprimir uma vida e um corpo de que elapoderia se apropriar? Seria mais útil fazer "servir ao Estado numa escravidão maisou menos longa de acordo com a natureza de seu crime"; a França tem muitasestradas intransitáveis que prejudicam o comércio; os ladrões que também criamobstáculo à livre circulação das mercadorias terão que reconstruir as estradas. Seriamais eloqüente do que a morte "o exemplo de um homem que conservamos sempresob os olhos, cuja liberdade foi retirada e é obrigado a usar o resto da vida a reparara perda que causou à sociedade".16No antigo sistema, o corpo dos condenados se tornava coisa do rei, sobre aqual o soberano imprimia sua marca e deixava cair os efeitos de seu poder. Agora,ele será antes um bem social, objeto de uma apropriação coletiva e útil. Daí o fato deque os reformadores tenham quase sempre proposto as obras públicas como uma dasmelhores penas possíveis; os Cahiers de doléances, aliás, os acompanharam:Que os condenados a alguma pena abaixo da morte sejam condenados às obraspúblicas do país, por um tempo proporcional a seu crime.17Obra pública quer dizer duas coisas: interesse coletivo na pena do condenado ecaráter visível, controlável do castigo. O culpado, assim, paga duas vezes: pelotrabalho que ele fornece e pelos sinais que produz. No centro da sociedade, naspraças públicas ou nas grandes estrada, o condenado irradia lucros e significações.Ele serve visivelmente a cada um; mas, ao mesmo tempo, introduz no espírito detodos o sinal crime-castigo: utilidade secundária, puramente moral esta, mas tantomais real.5) Daí resulta uma sábia economia da publicidade. No suplício corporal, oterror era o suporte do exemplo: medo físico, pavor coletivo, imagens que devem sergravadas na memória dos espectadores, como a marca na face ou no ombro docondenado. O suporte do exemplo, agora, é a lição, o discurso, o sinal decifrável, aencenação e a exposição da moralidade pública. Não é mais a restauração aterrorizante da soberania que vai sustentar a cerimônia do castigo, é a reativação doCódigo, o reforço coletivo da ligação entre a idéia do crime e a idéia da pena. Napunição, mais que a visão da presença do soberano, haverá a leitura das próprias leis.Estas haviam associado a tal crime tal castigo. Assim que o crime for cometido, esem perda de tempo, virá a punição, traduzindo em ações o discurso da lei emostrando que o Código, que liga as idéias, liga também as realidades. A junção,imediata no texto, deve sê-lo nos atos.Considerai os primeiros momentos, quando a notícia de alguma ação atroz seespalha em nossas cidades e campos; os cidadãos parecem homens que vêem cair umraio perto de si; cada um está penetrado de indignação e de horror... Este é o movimentode castigar o crime: não o deixeis escapar; apressai-vos em convencê-lo e julgá-lo.Levantai cadafalsos, fogueiras, arrastai o culpado pelas praças públicas, chamai o povoem altas vozes; ouvi-lo-eis então aplaudir a proclamação de vossos julgamentos, como ade paz e de liberdade; vê-lo-eis socorrer a esses terríveis espetáculos como ao triunfo dasleis.18A punição pública é a cerimônia da recodificação imediata.A lei se reforma, vem retomar um lugar ao lado do crime que a violara. Omalfeitor, em compensação, é separado da sociedade. Deixa-a. Mas não naquelasfestas ambíguas do Antigo Regime, em que o povo fatalmente tomava partido docrime ou da execução, mas numa cerimônia de luto. A sociedade que recuperou suasleis perdeu o cidadão que as violara. A punição pública deve manifestar essa duplaaflição: que se possa ter ignorado a lei e que um cidadão tenha que ser isolado.Ligai ao suplício o mais lúgubre e mais tocante aparelho; que esse dia terrível sejapara a pátria um dia de luto; que a dor geral seja estampada em toda parte em grandescaracteres... Que o magistrado coberto com o crepe fúnebre anuncie ao povo o atentado ea triste necessidade de uma vingança legal. Que as diversas cenas desta tragédia atinjamtodos os sentidos, mexam com todas as afeições suaves e honestas.19Luto cujo sentido deve ser claro para todos; cada elemento de seu ritual devefalar, dizer o crime, lembrar a lei, mostrar a necessidade da punição, justificar suamedida. Cartazes, placas, sinais, símbolos devem ser multiplicados, para que cadaum possa apreender seus significados. A publicidade da punição não deve espalharum efeito físico de terror; deve abrir um livro de leitura. Le Peletier propunha que opovo, uma vez por mês, pudesse visitar os condenados em seu doloroso reduto: lerá traçado em grandes caracteres, acima da porta da masmorra,o nome do culpado, o crime e o julgamento.20E no estilo ingênuo e militar das cerimônias imperiais, Bexon imaginaráalguns anos mais tarde todo um quadro heráldico penal:O condenado à morte será conduzido ao cadafalso num carro "tingido ou pintado depreto entremeado de vermelho"; se traiu, terá uma camisa vermelha sobre a qual estaráescrita, na frente e atrás, a palavra "traidor"; se for parricida, terá a cabeça coberta com umvéu negro e em sua camisa serão bordados punhais ou os instrumentos de morte de quese tiver servido; se envenenou, sua camisa vermelha será ornamentada com serpentes eoutros animais venenosos.21Essa lição legível, essa recodificação ritual, devem ser repetidas com toda afreqüência possível; que os castigos sejam uma escola mais que uma festa; um livrosempre aberto mais que uma cerimônia. A duração que torna o castigo eficaz para oculpado também é útil para os espectadores. Estes devem poder consultar a cadainstante o léxico permanente do crime e do castigo. Pena secreta, pena perdida pelametade. Seria necessário que as crianças pudessem vir aos lugares onde é executada;lá fariam suas aulas cívicas. E os homens feitos lá reaprenderiam periodicamente asleis. Concebamos os lugares de castigos como um Jardim de Leis que as famíliasvisitariam aos domingos.Eu gostaria que de vez em quando, depois de preparar os espíritos com um discursofundamentado sobre a conservação da ordem social, sobre a utilidade dos castigos, selevassem os jovens, mesmo os homens, às minas, às obras, para contemplar o horríveldestino dos proscritos. Essas peregrinações seriam mais úteis que as que os turcos fazema Meca.22E Le Peletier considerava que essa visibilidade dos castigos era um dosprincípios fundamentais do novo Código Penal:Freqüentemente e em momentos marcados, a presença do povo deve levar avergonha à cabeça do culpado; e a presença do culpado no estado penoso a que foireduzido por seu crime deve dar à alma do povo uma útil instrução.23Bem antes de ser concebido como objeto de ciência, pensa-se no criminosocomo elemento de instrução. Depois da visita de caridade para partilhar dosofrimento dos prisioneiros — o século XVII a inventara ou restabelecera — pensou-se nessas visitas de crianças que viriam aprender como a justiça da lei vemse aplicar ao crime: lição viva no museu da ordem.6) Então se poderá inverter na sociedade o tradicional discurso do crime.Grave preocupação para os fazedores de leis no século XVIII: como apagar a glóriaduvidosa dos criminosos? Como fazer calar-se a epopéia dos grandes malfeitorescantada pelos almanaques, folhetins, as narrativas populares? Se a recodificação forbem feita, se a cerimônia de luto se desenrolar como deve, o crime só poderáaparecer então como uma desgraça e o malfeitor como um inimigo a quem sereensina a vida social. Em lugar dessas louvações que tornam o criminoso um herói,só se propagarão então no discurso dos homens esses sinais-obstáculos que impedemo desejo do crime pelo receio calculado do castigo. A mecânica positiva funcionarátotalmente na linguagem de todos os dias, e esta a fortalecerá sem cessar com novasnarrativas. O discurso se tornará o veículo da lei: princípio constante darecodificação universal. Os poetas do povo se juntarão enfim aos que se chamam a simesmos "missionários da razão eterna"; tornar-se-ão moralistas.Pleno dessas imagens terríveis e dessas idéias salutares, cada cidadão viráespalhá-las em sua família, e aí, com longas narrativas feitas com tanto calor quantoavidamente ouvidas, seus filhos em torno dele abrirão suas jovens memórias para receber,em traços inalteráveis, a idéia do crime e do castigo, o amor pelas leis e pela pátria, orespeito e a confiança na magistratura. Os habitantes do campo, testemunhas tambémdesses exemplos, os semearão em torno de suas cabanas, o gosto pela virtude criaráraízes nessas almas grosseiras, enquanto que o mau, consternado pela alegria pública,assustado de ver tantos inimigos, talvez venha a renunciar a seus projetos cujo resultado étão rápido quanto funesto.24Eis então como devemos imaginar a cidade punitiva. Nas encruzilhadas, nosjardins, à beira das estradas que são refeitas ou das pontes que são construídas, emoficinas abertas a todos, no fundo de minas que serão visitadas, mil pequenos teatrosde castigos. Para cada crime, sua lei; para cada criminoso, sua pena. Pena visível,pena loquaz, que diz tudo, que explica, se justifica, convence: placas, bonés,cartazes, tabuletas, símbolos, textos lidos ou impressos, isso tudo repeteincansavelmente o Código. Cenários, perspectivas, efeitos de ótica, fachadas àsvezes ampliam a cena, tornam-na mais temível, mas também mais clara. Do lugaronde está colocado o público, poder-se-ia acreditar em certas crueldades que, na realidade, não acontecem. Mas o essencial, para essas severidades reais ouampliadas, é que, segundo uma economia estrita, todas elas sirvam de lição: quecada castigo seja um apólogo. E que, em contraponto a todos os exemplos diretos devirtude, se possam a cada instante encontrar, como uma cena viva, as desgraças dovício. Em torno de cada uma dessas "representações" morais, os escolares secomprimirão com seus professores e os adultos aprenderão que lição ensinar aosfilhos. Não mais o grande ritual aterrorizante dos suplícios, mas no correr dos dias epelas ruas esse teatro sério, com suas cenas múltiplas e persuasivas. E a memóriapopular reproduzirá em seus boatos o discurso austero da lei. Mas talvez fossenecessário, acima desses mil espetáculos e narrativas, colocar o sinal maior dapunição para o mais terrível dos crimes: o ápice do edifício penal. Vermeil, em todocaso, imaginara a cena da punição absoluta que devia dominar todos os teatros docastigo diário: o único caso em que se deveria procurar atingir o infinito punitivo.Um pouco o equivalente, na nova penalidade, ao que fora o regicídio na antiga. Oculpado teria os olhos furados; seria colocado numa jaula de ferro, suspensa empleno ar, acima de uma praça pública; estaria completamente nu; com um cinto deferro em torno da cintura, seria amarrado às grades; até o fim de seus dias, seriaalimentado a pão e água.Estaria assim exposto a todos os rigores das estações ora a fronte coberta de neve,ora calcinado por um sol ardente. Seria nesse suplício enérgico, que apresenta antes oprolongamento de uma morte dolorosa que o de uma vida penosa que se poderiarealmente reconhecer um celerado votado ao horror da natureza inteira, condenado a nãover mais o céu que ultrajou e a não habitar mais a terra que maculou.25Acima da cidade punitiva, essa aranha de ferro; e o que deve ser assimcrucificado pela nova lei é o parricida.*Todo um arsenal de castigos pitorescos. "Evitai infligir as mesmas punições",dizia Mably. É banida a idéia de uma pena uniforme, modulada unicamente pelagravidade da falta. Mais precisamente: a utilização da prisão como forma geral de castigo nunca é apresentada nesses projetos de penas específicas, visíveis eeloqüentes. Sem dúvida, a prisão é prevista, mas entre outras penas; é então ocastigo específico para certos delitos, os que atentam à liberdade dos indivíduos(como o rapto) ou que resultam do abuso da liberdade (a desordem, a violência). Éprevista também como condição para que se possam executar certas penas (otrabalho forçado, por exemplo). Mas não cobre todo o campo da penalidade com aduração como único princípio de variação. Melhor, a idéia de uma reclusão penal éexplicitamente criticada por muitos reformadores. Porque é incapaz de responder àespecificidade dos crimes. Porque é desprovida de efeito sobre o público. Porque éinútil à sociedade, até nociva: é cara, mantém os condenados na ociosidade,multiplica-lhes os vícios.26 Porque é difícil controlar o cumprimento de uma penadessas e corre-se o risco de expor os detentos à arbitrariedade de seus guardiães.Porque o trabalho de privar um homem de sua liberdade e vigiá-lo na prisão é umexercício de tirania.Exigis que haja entre vós monstros; e esses homens odiosos, se existissem, olegislador deveria talvez tratá-los como assassinos.27A prisão em seu todo é incompatível com toda essa técnica da pena-efeito, dapena-representação, da pena-função geral, da pena-sinal e discurso. Ela é aescuridão, a violência e a suspeita.É um lugar de trevas onde o olho do cidadão não pode contar as vítimas, ondeconseqüentemente seu número está perdido para o exemplo... Enquanto que se, semmultiplicar os crimes, pudermos multiplicar o exemplo dos castigos, conseguimos enfimtomá-los menos necessários; aliás a escuridão das prisões torna-se assunto dedesconfiança para os cidadãos; supõem facilmente que lá se cometem grandesinjustiças... Há certamente alguma coisa que vai mal, quando a lei, que é feita para o bemda multidão, em vez de excitar seu reconhecimento, excita continuamente seusmurmúrios.28Que a reclusão pudesse como hoje, entre a morte e as penas leves, cobrir todoo espaço médio da punição, é uma idéia que os reformadores não podiam terimediatamente.Ora, eis o problema: depois de bem pouco tempo, a detenção se tornou a formaessencial de castigo. No Código Penal de 1810, entre a morte e as multas, ela ocupa, sob um certo número de formas, quase todo o campo das punições possíveis.Que é o sistema de penalidades admitido pela nova lei? É o encarceramento sobtodas as suas formas. Comparai com efeito as quatro penas principais que restam noCódigo Penal. Os trabalhos forçados são uma forma de encarceramento. O local dessecastigo é uma prisão ao ar livre. A detenção, a reclusão, o encarceramento correcional nãopassam, de certo modo, de nomes diversos de um único e mesmo castigo.29E esse encarceramento, pedido pela lei, o Império resolvera transcrevê-lo logopara a realidade, segundo uma hierarquia penal, administrativa, geográfica: no graumais baixo, associada a cada justiça de paz, delegacia municipal; em cada distrito,prisões; em todos os departamentos, uma casa de correção; no cume, várias casascentrais para os condenados criminosos ou os correcionais que são condenados amais de um ano; enfim, em alguns portos, prisão com trabalhos forçados. Éprogramado um grande edifício carceral, cujos níveis diversos devem-se ajustarexatamente aos andares da centralização administrativa. O cadafalso onde o corpodo supliciado era exposto à força ritualmente manifesta do soberano, o teatropunitivo onde a representação do castigo teria sido permanentemente dada ao corposocial, são substituídos por uma grande arquitetura fechada, complexa ehierarquizada que se integra no próprio corpo do aparelho do Estado. Umamaterialidade totalmente diferente, uma física do poder totalmente diferente, umamaneira de investir o corpo do homem totalmente diferente. A partir da Restauraçãoe sob a monarquia de julho, encontraremos, por pequenas diferenças, entre 40 e43.000 detentos nas prisões francesas (mais ou menos um prisioneiro para cada 600habitantes). O muro alto, não mais aquele que cerca e protege, não mais aquele quemanifesta, por seu prestígio, o poder e a riqueza, mas o muro cuidadosamentetrancado, intransponível num sentido e no outro, e fechado sobre o trabalho agoramisterioso da punição, será bem perto e às vezes mesmo no meio das cidades doséculo XIX, a figura monótona, ao mesmo tempo material e simbólica, do poder depunir. Já sob o Consulado, o ministro do interior fora encarregado de investigarsobre os diversos lugares de segurança que já funcionavam ou que podiam serutilizados nas diversas cidades. Alguns anos mais tarde, haviam sido previstoscréditos para construir, à altura do poder que deviam representar e servir, essesnovos castelos da ordem civil. O Império os utilizou, na realidade, para uma outra guerra.30 Uma economia menos suntuária mas mais obstinada acabou construindoos,pouco a pouco, no século XIX.Em todo caso em menos de vinte anos, o princípio tão claramente formuladona Constituinte, de penas específicas, ajustadas, eficazes, que formassem, em cadacaso, lição para todos, tornou-se a lei de detenção para qualquer infração poucoimportante, se ela ao menos não merecer a morte. Esse teatro punitivo, com que sesonhava no século XVIII, e que teria agido essencialmente sobre o espírito doscidadãos, foi substituído pelo grande aparelho uniforme das prisões cuja rede deimensos edifícios se estenderá por toda a França e a Europa. Mas dar vinte anoscomo cronologia para esse passe de mágica é talvez ainda excessivo. Pode-se dizerque foi quase instantâneo. Basta examinar com atenção o projeto de CódigoCriminal apresentado por Le Peletier à Constituinte. O princípio formulado no inícioé que são necessárias "relações exatas entre a natureza do delito e a natureza dapunição": dores para os que foram ferozes, trabalho para os que foram preguiçosos,infâmia para aqueles cuja alma está degradada. Ora, as penas aflitivas efetivamentepropostas são três formas de detenção: a masmorra onde a pena de encarceramento éagravada por diversas medidas (referentes à solidão, à privação de luz, às restriçõesde comida); a "limitação", em que essas medidas anexas são atenuadas, enfim aprisão propriamente dita, que se reduz ao encarceramento puro e simples. Adiversidade, tão solenemente prometida, reduz-se finalmente a essa penalidadeuniforme e melancólica. Houve, aliás, no momento, deputados que se espantaram deque, em vez de estabelecer uma relação entre delitos e penas, se houvesse seguidoum plano totalmente diferente:De maneira que se eu traí meu país, sou preso; se matei meu pai, sou preso; todosos delitos imagináveis são punidos da maneira mais uniforme. Tenho a impressão de verum médico que, para todas as doenças, tem o mesmo remédio.31Pronta substituição que não foi privilégio da França. Encontramo-la, igual emtudo, nos países estrangeiros. Quando Catarina II, nos anos que se seguiramimediatamente ao tratado "Dos delitos e das penas", manda redigir um projeto paraum "novo código das leis", a lição de Beccaria sobre a especificidade e a variedadedas penas não foi esquecida; é repetida quase palavra por palavra: É o triunfo da liberdade civil, quando as leis criminais tiram cada pena da naturezaparticular de cada crime. Então cessa qualquer arbitrariedade; a pena não depende emnada do capricho do legislador, mas da natureza da coisa; não é de modo algum o homemque faz violência ao homem, mas a própria ação do homem.32Alguns anos mais tarde os princípios gerais de Beccaria ainda fundamentam onovo código toscano e o que José II deu à Áustria; e no entanto essas duaslegislações fazem do encarceramento — modulado segundo a duração e agravadoem certos casos pelo ferrete ou pelas algemas, uma pena quase uniforme; trinta anospelo menos de detenção por atentado contra o soberano, por falsificação de moeda epor assassinato complicado com roubo; de quinze a trinta anos por homicídiovoluntário ou por roubo a mão armada; de um mês a cinco anos por roubo simples,etc.33Mas se essa colonização da penalidade pela prisão é de surpreender, é porqueesta não era, como se imagina, um castigo que já estivesse solidamente instalado nosistema penal, logo abaixo da pena de morte, e que teria naturalmente ocupado olugar deixado vago pelo desaparecimento dos suplícios. Na realidade a prisão — emuitos países, nesse ponto, estavam na mesma situação da França — tinha apenasuma posição restrita e marginal no sistema das penas. Os textos o provam. Aordenação de 1670, entre as penas aflitivas, não cita a detenção. A prisão perpétuaou temporária havia, sem dúvida, figurado entre as penas em certos costumes.34 Maspretende-se que ela está caindo em desuso como outros suplícios:Havia antigamente penas que não se praticam mais na França, como escrever natesta ou rosto de um condenado sua pena, e a prisão perpétua, assim como não se devecondenar um criminoso a ser exposto às feras nem às minas.35De fato, é certo que a prisão subsistira de maneira tenaz, para sancionar asfaltas sem gravidade, e isto segundo os costumes ou hábitos locais. Nesse sentidoSoulatges fala das "penas leves" que a ordenação de 1670 não mencionara: oanátema, a admoestação, a abstenção de lugar, a satisfação à pessoa ofendida e aprisão temporária. Em certas regiões, principalmente as que haviam melhorconservado seu particularismo judiciário, a pena de prisão tinha ainda uma grandeextensão, mas a coisa tinha suas dificuldades, como no Roussillon, recentementeanexado. Mas através dessas divergências os juristas defendem firmemente o princípiode que a "prisão não é vista como uma pena em nosso direito civil".36 Seu papel é deser uma garantia sobre a pessoa e sobre seu corpo: ad continendos homines, non adpuniendos, diz o adágio: nesse sentido, o encarceramento de um suspeito tem umpouco o mesmo papel que o de um devedor. A prisão assegura que temos alguém,não o pune.37 É este o princípio geral. E se às vezes a prisão desempenha o papel depena mesmo, e em casos importantes é essencialmente a título do substituto:substitui as galés para aqueles — mulheres, crianças, inválidos — que nelas nãopodem servir:A condenação a ser encarcerado temporária ou definitivamente numa casa de forçaé equivalente à das galés.38Nessa equivalência, vemos bem esboçar-se uma possível substituição. Mas,para que ela se realizasse, foi preciso que a prisão mudasse de estatuto jurídico.Foi preciso também superar um segundo obstáculo que, para a França pelomenos, era considerável. Com efeito, a prisão era ainda mais desqualificada porqueestava, na prática, diretamente ligada ao arbítrio real e aos excessos do podersoberano. As "casas de força", os hospitais gerais, as "ordens do rei" ou as do chefede polícia, as cartas timbradas obtidas pelos notáveis ou pelas famílias haviamconstituído toda uma prática repressiva, justaposta à "justiça regular" e ainda maisfreqüentemente oposta a ela. E esse encarceramento extrajudiciário era rejeitadotanto pelos juristas clássicos quanto pelos reformadores. Prisões, feito do príncipe,dizia um tradicionalista como Serpillon que se abrigava por trás da autoridade dopresidente Bouhier:Embora os príncipes por razões de Estado cheguem às vezes a infligir esta pena, ajustiça ordinária não utiliza esses tipos de condenação.39Detenção, figura e instrumento privilegiado do despotismo, dizem osreformadores, em inúmeras declarações:Que se dirá dessas prisões secretas imaginadas pelo espírito fatal do monarquismo,reservadas principalmente ou para os filósofos em cujas mãos a natureza colocou seufacho e que ousam iluminar seu século, ou para essas almas orgulhosas e independentesque não têm a covardia de calar os males de sua pátria: prisões cujas portas funestas são abertas por misteriosas cartas, para aí sepultar para sempre suas infelizes vítimas? Quese dirá mesmo dessas cartas, obra-prima de uma misteriosa tirania, que invertem oprivilégio que tem qualquer cidadão de ser ouvido antes de ser julgado, e que são milvezes mais perigosas para os homens que a invenção das Phalaris...40Sem dúvida que esses protestos vindos de horizontes tão diversos se referemnão ao encarceramento como pena legal, mas à utilização "fora da lei" da detençãoarbitrária e indeterminada. Nem por isso a prisão deixava de aparecer, de umamaneira geral, como marcada pelos abusos do poder. E muitos rejeitam-na porincompatível com uma boa justiça. Quer em nome dos princípios jurídicos clássicos:As prisões, na intenção da lei, sendo destinadas não a punir mas a garantir apresença das pessoas...41Quer em nome dos efeitos da prisão que já pune os que ainda não estãocondenados, que comunica e generaliza o mal que deveria prevenir e que vai contrao princípio da individualização da pena, sancionando toda uma família; diz-se quea prisão é uma pena. A humanidade se levanta contra esse horrível pensamento de quenão é uma punição privar um cidadão do mais precioso dos bens, mergulhá-loignominiosamente no mundo do crime, arrancá-lo a tudo o que lhe é caro, precipitá-lotalvez na ruína e retirar-lhe, não só a ele mas à sua infeliz família todos os meios desubsistência.42E os cahiers, por várias vezes, pedem a supressão dessas casas de internação:Pensamos que as cadeias devem ser arrasadas...43E realmente o decreto de 13 de março de 1790 ordena que se ponha emliberdadetodas as pessoas detidas nos castelos, nas casas religiosas, cadeias, delegacias ouquaisquer outras prisões por cartas de prego ou por ordem dos agentes do poderexecutivo.Como pôde a detenção, tão visivelmente ligada a esse ilegalismo que édenunciado até no poder do príncipe, em tão pouco tempo tornar-se uma das formasmais gerais dos castigos legais?* A explicação mais freqüente é a formação durante a época clássica de algunsgrandes modelos de encarceramento punitivo. Seu prestígio, ainda maior dado o fatode que os mais recentes vinham da Inglaterra e principalmente da América, teriapermitido superar o duplo obstáculo constituído pelas regras seculares do direito e ofuncionamento despótico da prisão. Muito rapidamente, teriam afastado asmaravilhas punitivas imaginadas pelos reformadores, e imposto a realidade séria dadetenção. A importância desses modelos foi grande, não se deve duvidar. Mas sãojustamente eles que antes de fornecer a solução trazem problemas: o de suaexistência e o de sua difusão. Como puderam nascer e principalmente comopuderam ser aceitos de maneira tão geral? Pois é fácil mostrar que, se apresentamum certo número de pontos em comum com os princípios gerais da reforma penal,em muitos pontos são inteiramente heterogêneos a ela, e às vezes mesmoincompatíveis.O mais antigo desses modelos, o que passa por ter, de perto ou de longe,inspirado todos os outros, é o Rasphuis de Amsterdam, aberto em 1596.44 Destinavaseem princípio a mendigos ou a jovens malfeitores. Seu funcionamento obedecia atrês grandes princípios: a duração das penas podia, pelo menos dentro de certoslimites, ser determinada pela própria administração, de acordo com ocomportamento do prisioneiro (essa latitude podia, aliás, ser prevista pela sentença:em 1597 um detento era condenado a doze anos de prisão, que podiam se reduzir aoito, se seu comportamento fosse satisfatório). O trabalho era obrigatório, feito emcomum (aliás a cela individual só era utilizada a título de punição suplementar; osdetentos dormiam 2 ou 3 em cada cama, em celas que continham 4 a 12 pessoas); epelo trabalho feito, os prisioneiros recebiam um salário. Enfim um horário estrito,um sistema de proibições e de obrigações, uma vigilância contínua, exortações,leituras espirituais, todo um jogo de meios para "atrair para o bem" e "desviar domal", enquadrava os detentos no dia-a-dia. Pode-se tomar o Rasphuis de Amsterdamcomo exemplo básico. Historicamente, faz a ligação entre a teoria, característica doséculo XVI, de uma transformação pedagógica e espiritual dos indivíduos por umexercício contínuo, e as técnicas penitenciárias imaginadas na segunda metade doséculo XVIII. E deu às três instituições que são então implantadas os princípios fundamentais que cada uma desenvolverá numa direção particular.A cadeia de Gand organizou o trabalho penal em torno principalmente deimperativos econômicos. A razão dada é que a ociosidade é a causa geral da maiorparte dos crimes. Um levantamento — um dos primeiros sem dúvida — feito sobreos condenados na jurisdição de Alost, em 1749, mostra que os malfeitores não eramartesões ou lavradores (os operários só pensam no trabalho que os alimenta), masvagabundos que se dedicavam à mendicância.45Daí a idéia de uma casa que realizasse de uma certa maneira a pedagogiauniversal do trabalho para aqueles que se mostrassem refratários. Quatro vantagens:diminuir o número de processos criminais que custam caro ao Estado (poder-se-iamassim economizar mais de 100.000 libras em Flandres); não ser mais necessárioadiar os impostos para os proprietários dos bosques arruinados pelos vagabundos;formar uma quantidade de novos operários, o que "contribuiria, pela concorrência, adiminuir a mão-de-obra"; enfim permitir aos verdadeiros pobres ter os benefícios,sem divisão, da caridade necessária.46 Essa pedagogia tão útil reconstituirá noindivíduo preguiçoso o gosto pelo trabalho, recolocá-lo-á por força num sistema deinteresses em que o trabalho será mais vantajoso que a preguiça, formará em tornodele uma pequena sociedade reduzida, simplificada e coercitiva onde apareceráclaramente a máxima: quem quer viver tem que trabalhar. Obrigação do trabalho,mas também retribuição que permite ao detento melhorar seu destino durante edepois da detenção.O homem que não encontra sua subsistência deve absolutamente ser levado aodesejo de procurá-la pelo trabalho; ela lhe é oferecida pela polícia e pela disciplina; dealguma maneira, ele é obrigado a se entregar; a atração do ganho o excita, em seguida:corrigido em seus hábitos, acostumado a trabalhar, alimentado sem inquietação comalguns lucros que reserva para a saída [ele aprendeu uma profissão] que lhe garante umasubsistência sem perigo.47Reconstrução do Homo oeconomicus, que exclui a utilização de penas muitobreves — o que impediria a aquisição das técnicas e do gosto pelo trabalho, oudefinitivas — o que tornaria inútil qualquer aprendizagem.O prazo de seis meses é curto demais para corrigir os criminosos, e levá-los aoespírito de trabalho; [em compensação] o prazo perpétuo os desespera; ficam indiferentes à correção dos hábitos e ao espírito de trabalho; só se ocupam com projetos de evasão ede revolta; e já que não foram julgados quanto a serem privados da vida, por que procurartorná-la insuportável?48A duração da pena só tem sentido em relação a uma possível correção, e a umautilização econômica dos criminosos corrigidos.Ao princípio do trabalho, o modelo inglês acrescenta, como condição essencialpara a correção, o isolamento. O esquema fora dado em 1775, por Hanway, que ojustificava em primeiro lugar por razões negativas: a promiscuidade na prisão dámaus exemplos e possibilidades de evasão no imediato, de chantagem ou decumplicidade para o futuro. A prisão se pareceria demais com uma fábrica deixandoseos detentos trabalhar em comum. As razões positivas em seguida: o isolamentoconstitui "um choque terrível", a partir do qual o condenado, escapando às másinfluências, pode fazer meia-volta e redescobrir no fundo de sua consciência a vozdo bem; o trabalho solitário se tornará então tanto um exercício de conversão quantode aprendizado; não reformará simplesmente o jogo de interesses próprios ao homooeconomicus, mas também os imperativos do indivíduo moral. A cela, esta técnicado monaquismo cristão e que só subsistia em países católicos, torna-se nessasociedade protestante o instrumento através do qual se podem reconstituir ao mesmotempo o homo oeconomicus e a consciência religiosa. Entre o crime e a volta aodireito e à virtude, a prisão constituirá um "espaço entre dois mundos", um lugarpara as transformações individuais que devolverão ao Estado os indivíduos que esteperdera. Aparelho para modificar os indivíduos que Hanway chama um"reformatório".49 São esses princípios gerais que Howard e Blackstone põem emprática em 1779 quando a independência dos Estados Unidos impede as deportaçõese se prepara uma lei para modificar o sistema de penas. O encarceramento, com afinalidade de transformação da alma e do comportamento, faz sua entrada no sistemadas leis civis. O preâmbulo da lei, redigido por Blackstone e Howard, descreve oencarceramento individual em sua tríplice função de exemplo temível, deinstrumento de conversão e de condição para um aprendizado: submetidosa uma detenção isolada, a um trabalho regular e à influência da instrução religiosa [certoscriminosos poderiam] não só assustar aqueles que ficassem tentados a imitá-los, masainda eles mesmos se corrigirem e contrair o hábito do trabalho.50Donde a decisão de construir duas penitenciárias, uma para os homens, outrapara as mulheres, onde os detentos isolados seriam obrigados "aos trabalhos maisservis e mais compatíveis com a ignorância, a negligência e a obstinação doscriminosos": andar numa roda para movimentar uma máquina, fixar um cabrestante,polir mármore, bater cânhamo, raspar pau-campeche, retalhar trapos, fazer cordas esacos. Na realidade só uma penitenciária foi construída, a de Gloucester, e que sóparcialmente correspondia ao esquema inicial: confinamento total para oscriminosos mais perigosos; para os outros, trabalho em comum durante o dia eseparação à noite.Enfim, o modelo de Filadélfia. O mais famoso, sem dúvida, porque surgialigado às inovações políticas do sistema americano e também porque não foi votado,como os outros, ao fracasso imediato e ao abandono; foi continuamente retomado etransformado até às grandes discussões dos anos 1830 sobre a reforma penitenciária.Em muitos pontos, a prisão de Walnut Street, aberta em 1790, sob a influência diretados meios quaker, retomava o modelo de Gand e de Gloucester.51 Trabalhoobrigatório em oficinas, ocupação constante dos detentos, custeio das despesas daprisão com esse trabalho, mas também retribuição individual dos prisioneiros paraassegurar sua reinserção moral e material no mundo estrito da economia; oscondenados são entãoconstantemente empregados em trabalhos produtivos para fazê-los suportar os gastos daprisão, para não deixá-los na inação e para lhes preparar alguns recursos para o momentoem que deverá cessar seu cativeiro.52A vida é então repartida de acordo com um horário absolutamente estrito, sobuma vigilância ininterrupta: cada instante do dia é destinado a alguma coisa,prescreve-se um tipo de atividade e implica obrigações e proibições:Todos os prisioneiros se levantam cedo de madrugada, de maneira que depois deterem feito as camas, se terem lavado e atendido a outras necessidades, começam otrabalho geralmente ao nascer do sol. A partir desse momento, ninguém pode entrar nassalas ou outros lugares que não sejam as oficinas e locais designados para seustrabalhos... No fim do dia, toca um sino que os avisa para deixar o trabalho... Eles têmmeia hora para arrumar as camas, e depois disso não lhes é mais permitido conversar altoe fazer o mínimo ruído.53Como em Gloucester, o confinamento solitário não é total: é para certoscondenados que em outras épocas teriam recebido a morte, e para aqueles que nointerior da prisão merecem uma punição especial:Lá, sem ocupação, sem nada para distraí-lo, à espera e na incerteza do momentoem que será libertado [o prisioneiro passa] longas horas ansiosas, trancado empensamentos que se apresentam ao espírito de todos os culpados.54Como em Gand, enfim, a duração do encarceramento pode variar com ocomportamento do detento: os inspetores da prisão, depois de consultar o processo,obtêm das autoridades — e isso sem dificuldades até pelos anos 1820 — o perdãopara os detentos que se comportarem bem.Walnut Street comporta além disso um certo número de traços que lhe sãoespecíficos, ou pelo menos que desenvolvem o que estava virtualmente presente nosoutros modelos. Em primeiro lugar o princípio da não-publicidade da pena. Se acondenação e o que a motivou devem ser conhecidos por todos, a execução da pena,em compensação, deve ser feita em segredo; o público não deve intervir nem comotestemunha, nem como abonador da punição; a certeza de que, atrás dos muros, odetento cumpre sua pena deve ser suficiente para constituir um exemplo: terminadosaqueles espetáculos de rua criados pela lei de 1786, quando impôs a certoscondenados obras públicas a executar nas cidades ou estradas.55 O castigo e acorreção que este deve operar são processos que se desenrolam entre o prisioneiro eaqueles que o vigiam. Processos que impõem uma transformação do indivíduointeiro — de seu corpo e de seus hábitos pelo trabalho cotidiano a que é obrigado, deseu espírito e de sua vontade pelos cuidados espirituais de que é objeto:São fornecidas Bíblias e outros livros de religião prática; o clero das diversasobediências que se encontrar na cidade e nos arrabaldes realiza o serviço religioso umavez por semana e qualquer outra pessoa edificante pode ter acesso aos prisioneiros todo otempo.56Mas a própria administração tem o papel de empreender essa transformação. Asolidão e o retorno sobre si mesmo não bastam; assim tampouco as exortaçõespuramente religiosas. Deve ser feito com tanta freqüência quanto possível umtrabalho sobre a alma do detento. A prisão, aparelho administrativo, será ao mesmotempo uma máquina para modificar os espíritos. Quando o detento entra, o regulamento lhe é lido:ao mesmo tempo, os inspetores procuram fortalecer nele as obrigações morais onde eleestá; demonstram-lhe a infração em que caiu em relação a eles, o mal que dissoconseqüentemente resultou para a sociedade que o protegia e a necessidade de fazeruma compensação por seu exemplo e ao se emendar. Fazem-no em seguidacomprometer-se a cumprir seu dever com alegria, a se comportar decentemente,prometendo-lhe, ou fazendo-o esperar, que antes da expiração do termo da sentençapoderá obter seu relaxamento, se se comportar bem... De vez em quando os inspetores,sem falta, conversam com os criminosos um depois do outro, relativamente a seusdeveres como homens e como membros da sociedade.57Mas o mais importante sem dúvida é que esse controle e essa transformação docomportamento são acompanhados — ao mesmo tempo condição e conseqüência —da formação de um saber dos indivíduos. Ao mesmo tempo que o própriocondenado, a administração de Walnut Street recebe um relatório sobre seu crime, ascircunstâncias em que foi cometido, um resumo de interrogatório do culpado, notassobre a maneira como ele se conduziu antes e depois da sentença. Outros tantoselementos indispensáveis se queremos "determinar quais serão os cuidadosnecessários para destruir seus hábitos antigos".58 E durante todo o tempo dadetenção ele será observado; seu comportamento será anotado dia por dia, e osinspetores — doze notáveis da cidade designados em 1795 — que, dois a dois,visitam a prisão toda semana, deverão se informar do que se passou, tomarconhecimento da conduta de cada condenado e designar aqueles para os quais serápedida a graça. Esses conhecimentos dos indivíduos, continuamente atualizados,permitem reparti-los na prisão menos em função de seus crimes que das disposiçõesque demonstram. A prisão torna-se uma espécie do observatório permanente quepermite distribuir as variedades do vício ou da fraqueza. A partir de 1797, osprisioneiros estavam divididos em quatro classes: a primeira para os que foramexplicitamente condenados ao confinamento solitário, ou que cometeram faltasgraves na prisão; outra é a reservada aos que sãobem conhecidos por serem velhos delinqüentes... ou cuja moral depravada,temperamento perigoso, disposições irregulares ou conduta desordenada [semanifestaram durante o tempo em que estavam na prisão; outra para aqueles] de quem ocaráter e as circunstâncias, antes e depois da condenação, fazem pensar que não são delinqüentes comuns.Existe enfim uma seção especial, uma classe de prova para aqueles cujotemperamento ainda não é conhecido, ou que, se são mais bem conhecidos, nãomerecem entrar na categoria anterior.59 Organiza-se todo um saber individualizanteque toma como campo de referência não tanto o crime cometido (pelo menos emestado isolado) mas a virtualidade de perigos contida num indivíduo e que semanifesta no comportamento observado cotidianamente. A prisão funciona aí comoum aparelho de saber.*Entre este aparelho punitivo proposto pelos modelos flamengo, inglês,americano — entre esses "reformatórios" e todos os castigos imaginados pelosreformadores, podem-se estabelecer pontos de convergência e disparidades.Pontos de convergência. Em primeiro lugar, o retorno temporal da punição. Os"reformatórios" se dão por função, também eles, não apagar um crime, mas evitarque recomece. São dispositivos voltados para o futuro, e organizados para bloqueara repetição do delito.O objeto das penas não é a expiação do crime cuja determinação deve ser deixadaao Ser supremo; mas prevenir os delitos da mesma espécie.60 [E na Pensilvânia Buxtonafirmava que os princípios de Montesquieu e de Beccaria deviam ter agora] "força deaxiomas", a prevenção dos crimes é o único fim do castigo.61Não se pune portanto para apagar um crime, mas para transformar um culpado(atual ou virtual); o castigo deve levar em si uma certa técnica corretiva. Ainda nesseponto, Rush está bem próximo dos juristas reformadores — não fora, talvez, ametáfora que utiliza — quando diz: inventaram-se sem dúvida máquinas quefacilitam o trabalho; bem mais se deveria louvar aquele que inventasseos métodos mais rápidos e mais eficazes para trazer de volta à virtude e à felicidade a parte maisviciosa da humanidade e para extirpar uma parte do vício que está no mundo.62Enfim os modelos anglo-saxões, como os projetos dos legisladores e dos teóricos, utilizam processos para singularizar a pena: em sua duração, sua natureza,sua intensidade, na maneira como se desenrola, o castigo deve ser ajustado aocaráter individual, e ao que este comporta de perigo para os outros. O sistema daspenas deve estar aberto às variáveis individuais. Em seu esquema geral, os modelosmais ou menos derivados do Rasphuis de Amsterdam não estavam em contradiçãocom o que propunham os reformadores. Poder-se-ia mesmo pensar, à primeira vista,que eram apenas os desenvolvimentos — ou o esboço — dessa proposta ao nível dasinstituições concretas.E no entanto a disparidade salta aos olhos desde que se trata de definir astécnicas dessa correção individualizante. Onde se faz a diferença, é no procedimentode acesso ao indivíduo, na maneira como o poder punitivo se apossa dele, nosinstrumentos que utiliza para realizar essa transformação; é na tecnologia da pena,não em seu fundamento teórico; na relação que ela estabelece no corpo e na alma, enão na maneira como ela se insere no interior do sistema do direito.Vejamos o método dos reformadores. Será o ponto a que se refere a pena,aquilo com que ela tem poder sobre o indivíduo? As representações: representaçãode seus interesses, representação de suas vantagens, suas desvantagens, seu prazer, eseu desprazer; e se acontece que o castigo se aposse do corpo, lhe aplique técnicasque não tem nada a invejar aos suplícios, é na medida em que esse corpo é — para ocondenado e para os espectadores — um objeto de representação. O instrumentocom o qual se age sobre as representações? Outras representações, ou antes asduplas de idéias (crime-punição, vantagem imaginada do crime-desvantagempercebida dos castigos); esses emparelhamentos só podem funcionar no elemento dapublicidade: cenas punitivas que os estabelecem ou os reforçam aos olhos de todos,discursos que os fazem circular e revalorizam a cada instante o jogo dos sinais. Opapel do criminoso na punição é reintroduzir, diante do código e dos crimes, apresença real do significado — ou seja, dessa pena que, segundo os termos docódigo, deve estar infalivelmente associada à infração. Produzir com abundância ecom evidência esse significado, reativar desse modo o sistema significante docódigo, fazer funcionar a idéia de crime como um sinal de punição, é com essamoeda que o malfeitor paga sua dívida à sociedade. A correção individual deveentão realizar o processo de requalificação do indivíduo como sujeito de direito, pelo reforço dos sistemas de sinais e das representações que fazem circular.O aparelho da penalidade corretiva age de maneira totalmente diversa. O pontode aplicação da pena não é a representação, é o corpo, é o tempo, são os gestos e asatividades de todos os dias; a alma, também, mas na medida em que é sede dehábitos. O corpo e a alma, como princípios dos comportamentos, formam oelemento que agora é proposto à intervenção punitiva. Mais que sobre uma arte derepresentações, ela deve repousar sobre uma manipulação refletida do indivíduo:Qualquer crime tem sua cura na influência física e moral: [é necessário então paradeterminar os castigos] conhecer o princípio das sensações e das simpatias que seproduzem no sistema nervoso.63Quanto aos instrumentos utilizados, não são mais jogos de representação quesão reforçados e que se faz circular; mas formas de coerção, esquemas de limitaçãoaplicados e repetidos. Exercícios, e não sinais: horários, distribuição do tempo,movimentos obrigatórios, atividades regulares, meditação solitária, trabalho emcomum, silêncio, aplicação, respeito, bons hábitos. E finalmente, o que se procurareconstruir nessa técnica de correção não é tanto o sujeito de direito, que se encontrapreso nos interesses fundamentais do pacto social: é o sujeito obediente, o indivíduosujeito a hábitos, regras, ordens, uma autoridade que se exerce continuamente sobreele e em torno dele, e que ele deve deixar funcionar automaticamente nele. Duasmaneiras, portanto, bem distintas de reagir à infração: reconstituir o sujeito jurídicodo pacto social — ou formar um sujeito de obediência dobrado à forma ao mesmotempo geral e meticulosa de um poder qualquer.Tudo isso não passaria talvez de uma diferença bem especulativa — pois nototal trata-se, nos dois casos, de formar indivíduos submissos — se a penalidade "decoerção" não trouxesse consigo algumas conseqüências capitais. O treinamento docomportamento pelo pleno emprego do tempo, a aquisição de hábitos, as limitaçõesdo corpo implicam entre o que é punido e o que pune uma relação bem particular.Relação que não só torna simplesmente inútil a dimensão do espetáculo: ela oexclui.64 O agente de punição deve exercer um poder total, que nenhum terceiropode vir perturbar; o indivíduo a corrigir deve estar inteiramente envolvido no poderque se exerce sobre ele. Imperativo do segredo. E, portanto, também autonomia pelo menos relativa dessa técnica de punição: ela deverá ter seu funcionamento, suastécnicas, seu saber; ela deverá fixar suas normas, decidir de seus resultados:descontinuidade, ou em todo caso especificidade em relação ao poder judiciário quedeclara a culpa e fixa os limites gerais da punição. Ora, essas duas conseqüências —segredo e autonomia no exercício do poder de punir — são exorbitantes para umateoria e uma política de penalidade que se propunha dois objetivos: fazer todos oscidadãos participarem do castigo do inimigo social; tornar o exercício do poder depunir inteiramente adequado e transparente às leis que o delimitam publicamente.Castigos secretos e não codificados pela legislação, um poder de punir que se exercena sombra de acordo com critérios e instrumentos que escapam ao controle — é todaa estratégia da reforma que corre o risco de ser comprometida. Depois da sentença éconstituído um poder que lembra o que era exercido no antigo sistema. O poder queaplica às penas ameaça ser tão arbitrário, tão despótico quanto aquele queantigamente as decidia.No total, a divergência é a seguinte: cidade punitiva ou instituição coercitiva?De um lado, funcionamento do poder penal repartido em todo o espaço social;presente em toda parte como cena, espetáculo, sinal, discurso; legível como um livroaberto; que opera por uma recodificação permanente do espírito dos cidadãos; querealiza a repressão do crime por esses obstáculos colocados à idéia do crime; queage de maneira invisível e inútil sobre as "fibras moles do cérebro", como diziaServan. Um poder de punir que correria ao longo de toda a rede social, agiria emcada um de seus pontos, e terminaria não sendo mais percebido como poder dealguns sobre alguns, mas como reação imediata de todos em relação a cada um. Deoutro, um funcionamento compacto do poder de punir: ocupação meticulosa docorpo e do tempo do culpado, enquadramento de seus gestos, de suas condutas porum sistema de autoridade e de saber; uma ortopedia concertada que é aplicada aosculpados a fim de corrigi-los individualmente; gestão autônoma desse poder que seisola tanto do corpo social quanto do poder judiciário propriamente dito. O que seengaja no aparecimento da prisão é a institucionalização do poder de punir, ou maisprecisamente: o poder de punir (com o objetivo estratégico que lhe foi dado no fimdo século XVIII, a redução dos ilegalismos populares) será mais bem realizadoescondendo-se sob uma função social geral, na "cidade punitiva", ou investindo-se numa instituição coercitiva, no local fechado do "reformatório"?Em todo caso, pode-se dizer que os encontramos no fim do século XVIIIdiante de três maneiras de organizar o poder de punir. A primeira é a que aindaestava funcionando e se apoiava no velho direito monárquico. As outras se referem,ambas, a uma concepção preventiva, utilitária, corretiva de um direito de punir quepertenceria à sociedade inteira; mas são muito diferentes entre si, ao nível dosdispositivos que esboçam. Esquematizando muito, poderíamos dizer que, no direitomonárquico, a punição é um cerimonial de soberania; ela utiliza as marcas rituais davingança que aplica sobre o corpo do condenado; e estende sob os olhos dosespectadores um efeito de terror ainda mais intenso por ser descontínuo, irregular esempre acima de suas próprias leis, a presença física do soberano e de seu poder. Noprojeto dos juristas reformadores, a punição é um processo para requalificar osindivíduos como sujeitos de direito; utiliza, não marcas, mas sinais, conjuntoscodificados de representações, cuja circulação deve ser realizada o mais rapidamentepossível pela cena do castigo, e a aceitação deve ser a mais universal possível.Enfim no projeto de instituição carcerária que se elabora, a punição é uma técnica decoerção dos indivíduos; ela utiliza processos de treinamento do corpo — não sinais— com os traços que deixa, sob a forma de hábitos, no comportamento; e ela supõea implantação de um poder específico de gestão da pena. O soberano e sua força, ocorpo social, o aparelho administrativo. A marca, o sinal, o traço. A cerimônia, arepresentação, o exercício. O inimigo vencido, o sujeito de direito em vias derequalificação, o indivíduo submetido a uma coerção imediata. O corpo que ésupliciado, a alma cujas representações são manipuladas, o corpo que é treinado;temos aí três séries de elementos que caracterizam os três dispositivos que sedefrontam na última metade do século XVIII. Não podemos reduzi-los nem a teoriasde direito (se bem que eles lhes sejam paralelos) nem identificá-los a aparelhos ou ainstituições (se bem que se apoiem sobre estes), nem fazê-los derivar de escolhasmorais (se bem que nelas encontrem eles suas justificações). São modalidades deacordo com as quais se exerce o poder de punir. Três tecnologias de poder.O problema é então o seguinte: como é possível que o terceiro se tenhafinalmente imposto? Como o modelo coercitivo, corporal, solitário, secreto, dopoder de punir substitui o modelo representativo, cênico, significante, público, coletivo? Por que o exercício físico da punição (e que não é o suplício) substituiu,com a prisão que é seu suporte institucional, o jogo social dos sinais de castigo, e dafesta bastarda que os fazia circular?   

Vigiar e Punir -  Michel FoucaultOnde histórias criam vida. Descubra agora