A SANÇÃO NORMALIZADORA

711 2 0
                                    

  1) No orfanato do cavaleiro Paulet, as sessões do tribunal que se reunia todasas manhãs davam lugar a um cerimonial:Encontramos todos os alunos em formação, alinhamento, imobilidade e silêncioperfeitos. O major, jovem da nobreza de dezesseis anos, estava fora da fila, a espada namão; à sua ordem, a tropa se abalou ao passo duplo para formar o círculo. O conselho sereuniu no centro; cada oficial fez o relatório de sua tropa nas vinte e, quatro horas. Osacusados foram admitidos a se justificar; ouviram-se as testemunhas; deliberou-se e,quando se chegou a um acordo, o major prestou contas em voz alta do número dosculpados, da natureza dos delitos e dos castigos ordenados. A tropa em seguida desfilouna maior ordem.11Na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequenomecanismo penal. É beneficiado por uma espécie de privilégio de justiça, com suasleis próprias, seus delitos especificados, suas formas particulares de sanção, suasinstâncias de julgamento. As disciplinas estabelecem uma "infra-penalidade";quadriculam um espaço deixado vazio pelas leis; qualificam e reprimem umconjunto de comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por sua relativa indiferença.Ao entrar os companheiros deverão saudar-se reciprocamente; ...ao sair deverãoguardar as mercadorias e ferramentas que utilizaram e em época de serão apagar alâmpada; é expressamente proibido divertir os companheiros com gestos ou de outramaneira; [eles deverão] se comportar honesta e decentemente; [quem se ausentar pormais de cinco minutos sem avisar o Sr. Oppenheim será] anotado por meio-dia; [e paraque fique certo que nada será esquecido nessa justiça criminal miúda, é proibido fazer]qualquer coisa que puder prejudicar o Sr. Oppenheim e seus companheiros.12Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda umamicropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade(desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência),dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes "incorretas", gestos nãoconformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo éutilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que vão do castigofísico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações. Trata-se ao mesmo tempode tornar penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e de dar uma funçãopunitiva aos elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar: levandoao extremo, que tudo possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo seencontre preso numa universalidade punível-punidora.Pela palavra punição, deve-se compreender tudo o que é capaz de fazer as criançassentir a falta que cometeram, tudo o que é capaz de humilhá-las, de confundi-las: ...umacerta frieza, uma certa indiferença, uma pergunta, uma humilhação, uma destituição deposto.132) Mas a disciplina traz consigo uma maneira específica de punir, e que éapenas um modelo reduzido do tribunal. O que pertence à penalidade disciplinar é ainobservância, tudo o que está inadequado à regra, tudo o que se afasta dela, osdesvios. É passível de pena o campo indefinido do não-conforme: o soldado cometeuma "falta" cada vez que não atinge o nível requerido; a "falta" do aluno é, assimcomo um delito menor, uma inaptidão a cumprir suas tarefas. O regulamento dainfantaria prussiana impunha tratar com "todo o rigor possível" o soldado que nãotivesse aprendido a manejar corretamente o fuzil. Do mesmo modo,quando um escolar não tiver guardado o catecismo da véspera, poder-se-á obrigá-lo a aprender o daquele dia, sem nenhum erro, e deverá repeti-lo no dia seguinte; ou seráobrigado a ouvi-lo de pé ou de joelhos, ou com as mãos postas, ou então lhe será impostaalguma outra penitência.A ordem que os castigos disciplinares devem fazer respeitar é de naturezamista: é uma ordem "artificial", colocada de maneira explícita por uma lei, umprograma, um regulamento. Mas é também uma ordem, definida por processosnaturais e observáveis: a duração de um aprendizado, o tempo de um exercício, onível de aptidão têm por referência uma regularidade, que é também uma regra. Ascrianças das escolas cristãs nunca devem ser colocadas numa "lição" de que aindanão são capazes, pois estariam correndo o perigo de não poder aprender nada;entretanto a duração de cada estágio é fixada de maneira regulamentar e quem, nofim de três meses, não houver passado para a ordem superior deve ser colocado, bemem evidência, no banco dos "ignorantes". A punição em regime disciplinar comportauma dupla referência jurídico-natural.3) O castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios. Deve portanto seressencialmente corretivo. Ao lado das punições copiadas ao modelo judiciário(multas, açoite, masmorra), os sistemas disciplinares privilegiam as punições quesão da ordem do exercício — aprendizado intensificado, multiplicado, muitas vezesrepetido: o regulamento de 1766 para a infantaria previa que os soldados de primeiraclasse "que mostrarem alguma negligência ou má vontade serão enviados para aúltima classe", e só poderão voltar à primeira, depois de novos exercícios e um novoexame, Como dizia, por seu lado, J.-B. de La Salle:O castigo escrito é, de todas as penitências, a mais honesta para um mestre, a maisvantajosa e a que mais agrada aos pais; [permite] tirar dos próprios erros das criançasmaneiras de avançar seus progressos corrigindo-lhes os defeitos; [àqueles, por exemplo],que não houverem escrito tudo o que deviam escrever, ou não se aplicarem para fazê-lobem, se poderá dar algum dever para escrever ou para decorar.14A punição disciplinar é, pelo menos por uma boa parte, isomorfa à própriaobrigação; ela é menos a vingança da lei ultrajada que sua repetição, sua insistênciaredobrada. De modo que o efeito corretivo que dela se espera apenas de umamaneira acessória passa pela expiação e pelo arrependimento; é diretamente obtidopela mecânica de um castigo. Castigar é exercitar. 4) A punição, na disciplina, não passa de um elemento de um sistema duplo:gratificação-sanção. E é esse sistema que se torna operante no processo detreinamento e de correção. O professordeve evitar, tanto quanto possível, usar castigos; ao contrário, deve procurar tornar asrecompensas mais freqüentes que as penas, sendo os preguiçosos mais incitados pelodesejo de ser recompensados como os diligentes que pelo receio dos castigos; por issoserá muito proveitoso, quando o mestre for obrigado a usar de castigo, que ele ganhe, sepuder, o coração da criança, antes de aplicar-lhe o castigo.15Este mecanismo de dois elementos permite um certo número de operaçõescaracterísticas da penalidade disciplinar. Em primeiro lugar, a qualificação doscomportamentos e dos desempenhos a partir de dois valores opostos do bem e domal; em vez da simples separação do proibido, como é feito pela justiça penal,temos uma distribuição entre pólo positivo e pólo negativo; todo o comportamentocai no campo das boas e das más notas, dos bons e dos maus pontos. É possível,além disso, estabelecer uma quantificação e uma economia traduzida em números.Uma contabilidade penal, constantemente posta em dia, permite obter o balançopositivo de cada um. A "justiça" escolar levou muito longe esse sistema, de que seencontram pelo menos os rudimentos no exército ou nas oficinas. Os irmãos dasEscolas Cristãs haviam organizado uma micro-economia dos privilégios e doscastigos escritos:Os privilégios servirão aos escolares para se isentarem das penitências que lhesserão impostas... Um escolar por exemplo terá por castigo quatro ou cinco perguntas docatecismo para copiar; ele poderá se libertar dessa penitência mediante alguns pontos deprivilégios; o mestre anotará o número para cada pergunta... Valendo os privilégios umnúmero determinado de pontos, o mestre tem também outros de menor valor, que servirãocomo que de troco para os primeiros. Uma criança, por exemplo, terá um castigo de quese poderá redimir com seis pontos; tem um privilégio de dez; apresenta-o ao mestre quelhe devolve quatro pontos; e assim outros.16E pelo jogo dessa quantificação, dessa circulação dos adiantamentos e dasdívidas, graças ao cálculo permanente das notas a mais ou a menos, os aparelhosdisciplinares hierarquizam, numa relação mútua, os "bons" e os "maus" indivíduos.Através dessa microeconomia de uma penalidade perpétua, opera-se umadiferenciação que não é a dos atos, mas dos próprios indivíduos, de sua natureza, de suas virtualidades, de seu nível ou valor. A disciplina, ao sancionar os atos comexatidão, avalia os indivíduos "com verdade"; a penalidade que ela põe em execuçãose integra no ciclo de conhecimento dos indivíduos.5) A divisão segundo as classificações ou os graus tem um duplo papel: marcaros desvios, hierarquizar as qualidades, as competências e as aptidões; mas tambémcastigar e recompensar. Funcionamento penal da ordenação e caráter ordinal dasanção. A disciplina recompensa unicamente pelo jogo das promoções que permitemhierarquias e lugares; pune rebaixando e degradando. O próprio sistema declassificação vale como recompensa ou punição. Havia sido aperfeiçoado na EscolaMilitar um sistema complexo de hierarquização "honorífica", em que as roupastraduziam essa classificação aos olhos de todos, e castigos mais ou menos nobres ouvergonhosos estavam ligados, como marca de privilégio ou de infâmia, às categoriasassim distribuídas. Essa repartição classificatória e penal se efetua a intervalospróximos por relatórios que os oficiais, os professores, seus adjuntos fazem, semconsideração de idade ou de posto, sobre "as qualidades morais dos alunos" e sobre"seu comportamento universalmente reconhecido". A primeira classe, dita dos"muito bons", se distingue por uma dragona de prata; sua honra é ser tratada como"uma tropa puramente militar"; militares serão portanto as punições a que ela temdireito (as detenções e, nos casos graves, a prisão). A segunda classe, dos "bons",usa uma dragona de seda cor de papoula e prata; são passíveis de prisão e detenção,e também da jaula e de se ajoelhar. A classe dos "medíocres" tem direito a umadragona de lã vermelha; às penas precedentes se acrescenta, se for o caso, o burel. Aúltima classe, a dos "maus", é marcada por uma dragona de lã parda; "os alunosdesta classe serão submetidos a todas as punições usuais no "Hotel" ou todas as quese julgar necessário introduzir, e até à masmorra escura". A isso se acrescentoudurante algum tempo a classe "vergonhosa" para a qual se prepararam regulamentosespeciais "de maneira que os que a compõem estarão sempre separados dos outros evestidos de burel". Como só o mérito e o comportamento devem decidir sobre olugar do aluno, "os das duas últimas classes poderão se orgulhar de subir àsprimeiras e usar suas marcas, quando, por testemunhos universais, se reconheceráque se tornaram dignos disso pela mudança de seu comportamento e seusprogressos; e os das primeiras classes também descerão para as outras se relaxarem e se relatórios reunidos e desvantajosos mostrarem que não merecem mais asdistribuições e prerrogativas das primeiras classes...". A classificação que pune devetender a se extinguir. A "classe vergonhosa" só existe para desaparecer: "A fim dejulgar a espécie de conversão dos alunos da classe vergonhosa que nela secomportam bem", eles serão reintroduzidos nas outras classes, suas roupas lhesserão devolvidas; mas ficarão com seus camaradas de infâmia durante as refeições eas recreações; aí permanecerão se não continuarem a se comportar bem; daí "sairãoabsolutamente, se derem satisfação tanto nessa classe quanto nessa divisão".17 Duploefeito conseqüentemente dessa penalidade hierarquizante: distribuir os alunossegundo suas aptidões e seu comportamento, portanto segundo o uso que se poderáfazer deles quando saírem da escola; exercer sobre eles uma pressão constante, paraque se submetam todos ao mesmo modelo, para que sejam obrigados todos juntos "àsubordinação, à docilidade, à atenção nos estudos e nos exercícios, e à exata práticados deveres e de todas as partes da disciplina". Para que, todos, se pareçam.Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem aexpiação, nem mesmo exatamente a repressão. Põe em funcionamento cincooperações bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentossingulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço dediferenciação e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos emrelação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto — que se deve fazerfuncionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que sedeve chegar perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valoras capacidades, o nível, a "natureza" dos indivíduos. Fazer funcionar, através dessamedida "valorizadora", a coação de uma conformidade a realizar. Enfim traçar olimite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira externado anormal (a "classe vergonhosa" da Escola Militar). A penalidade perpétua queatravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinarescompara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, elanormaliza.Opõe-se então termo por termo a uma penalidade judiciária que tem a funçãoessencial de tomar por referência, não um conjunto de fenômenos observáveis, masum corpo de leis e de textos que é preciso memorizar; não diferenciar indivíduos, mas especificar atos num certo número de categorias gerais; não hierarquizar masfazer funcionar pura e simplesmente a oposição binária do permitido e do proibido;não homogeneizar, mas realizar a partilha, adquirida de uma vez por todas, dacondenação. Os dispositivos disciplinares produziram uma "penalidade da norma"que é irredutível em seus princípios e seu funcionamento à penalidade tradicional dalei. O pequeno tribunal que parece ter sede permanente nos edifícios da disciplina, eàs vezes toma a forma teatral do grande aparelho judiciário, não deve iludir: ele nãoconduz, a não ser por algumas continuidades formais, os mecanismos da justiçacriminal até à trama da existência cotidiana; ou ao menos não é isso o essencial; asdisciplinas inventaram — apoiando-se aliás sobre uma série de processos muitoantigos — um novo funcionamento punitivo, e é este que pouco a pouco investiu ogrande aparelho exterior que parecia reproduzir modesta ou ironicamente. O funcionamentojurídico-antropológico que toda a história da penalidade moderna revelanão se origina na superposição à justiça criminal das ciências humanas, e nasexigências próprias a essa nova racionalidade ou ao humanismo que ela trariaconsigo; ele tem seu ponto de formação nessa técnica disciplinar que fez funcionaresses novos mecanismos de sanção normalizadora.Aparece, através das disciplinas, o poder da Norma. Nova lei da sociedademoderna? Digamos antes que desde o século XVIII ele veio unir-se a outros poderesobrigando-os a novas delimitações; o da Lei, o da Palavra e do Texto, o da Tradição.O Normal se estabelece como princípio de coerção no ensino, com a instauração deuma educação estandardizada e a criação das escolas normais; estabelece-se noesforço para organizar um corpo médico e um quadro hospitalar da nação capazes defazer funcionar normas gerais de saúde; estabelece-se na regularização dosprocessos e dos produtos industriais.18 Tal como a vigilância e junto com ela, aregulamentação é um dos grandes instrumentos de poder no fim da era clássica. Asmarcas que significavam status, privilégios, filiações, tendem a ser substituídas oupelo menos acrescidas de um conjunto de graus de normalidade, que são sinais defiliação a um corpo social homogêneo, mas que têm em si mesmos um papel declassificação, de hierarquização e de distribuição de lugares. Em certo sentido, opoder de regulamentação obriga à homogeneidade; mas individualiza, permitindomedir os desvios, determinar os níveis, fixar as especialidades e tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras. Compreende-se que o poder da normafuncione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de umahomogeneidade que é a regra, ele introduz, como um imperativo útil e resultado deuma medida, toda a gradação das diferenças individuais  

Vigiar e Punir -  Michel FoucaultOnde histórias criam vida. Descubra agora