Quarta Parte - PRISÃO

1.7K 1 0
                                    

                     CAPÍTULO I - INSTITUIÇÕES COMPLETAS E AUSTERAS  


  A prisão é menos recente do que se diz quando se faz datar seu nascimento dosnovos códigos. A forma-prisão preexiste à sua utilização sistemática nas leis penais.Ela se constituiu fora do aparelho judiciário, quando se elaboraram, por todo o corposocial, os processos para repartir os indivíduos, fixá-los e distribuí-losespacialmente, classificá-los, tirar deles o máximo de tempo, e o máximo de forças,treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numavisibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo deobservação, registro e notações, constituir sobre eles um saber que se acumula e secentraliza. A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis eúteis, através de um trabalho preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão,antes que a lei a definisse como a pena por excelência. No fim do século XVIII eprincípio do século XIX se dá a passagem a uma penalidade de detenção, é verdade;e era coisa nova. Mas era na verdade abertura da penalidade a mecanismos decoerção já elaborados em outros lugares. Os "modelos" da detenção penal — Gand,Gloucester, Walnut Street — marcam os primeiros pontos visíveis dessa transição,mais que inovações ou pontos de partida. A prisão, peça essencial no conjunto daspunições, marca certamente um momento importante na história da justiça penal:seu acesso à "humanidade". Mas também um momento importante na história dessesmecanismos disciplinares que o novo poder de classe estava desenvolvendo: omomento em que aqueles colonizam a instituição judiciária. Na passagem dos doisséculos, uma nova legislação define o poder de punir como uma função geral dasociedade que é exercida da mesma maneira sobre todos os seus membros, e na qualcada um deles é igualmente representado; mas, ao fazer da detenção a pena porexcelência, ela introduz processos de dominação característicos de um tipo particularde poder. Uma justiça que se diz "igual", um aparelho judiciário que se pretende"autônomo", mas que é investido pelas assimetrias das sujeições disciplinares, tal é aconjunção do nascimento da prisão, "pena das sociedades civilizadas"1. Pode-se compreender o caráter de obviedade que a prisão-castigo muito cedoassumiu. Desde os primeiros anos do século XIX, ter-se-á ainda consciência de suanovidade; e entretanto ela surgiu tão ligada, e em profundidade, com o própriofuncionamento da sociedade, que relegou ao esquecimento todas as outras puniçõesque os reformadores do século XVIII haviam imaginado. Pareceu sem alternativa, elevada pelo próprio movimento da história:Não foi o acaso, não foi o capricho do legislador que fizeram do encarceramento a base eo edifício quase inteiro de nossa escala penal atual: foi o progresso das idéias e aeducação dos costumes.2E se, em pouco mais de um século, o clima de obviedade se transformou, nãodesapareceu. Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que éperigosa quando não inútil. E entretanto não "vemos" o que pôr em seu lugar. Ela éa detestável solução, de que não se pode abrir mão.Essa "obviedade" da prisão, de que nos destacamos tão mal, se fundamenta emprimeiro lugar na forma simples da "privação de liberdade". Como não seria a prisãoa pena por excelência numa sociedade em que a liberdade é um bem que pertence atodos da mesma maneira e ao qual cada um está ligado por um sentimento"universal e constante"?3 Sua perda tem portanto o mesmo preço para todos; melhorque a multa, ela é o castigo "igualitário". Clareza de certo modo jurídica da prisão.Além disso ela permite quantificar exatamente a pena segundo a variável do tempo.Há uma forma-salário da prisão que constitui, nas sociedades industriais, sua"obviedade" econômica. E permite que ela pareça como uma reparação. Retirandotempo do condenado, a prisão parece traduzir concretamente a idéia de que ainfração lesou, mais além da vítima, a sociedade inteira. Obviedade econômicomoralde uma penalidade que contabiliza os castigos em dias, em meses, em anos eestabelece equivalências quantitativas delitos-duração. Daí a expressão tãofreqüente, e que está tão de acordo com o funcionamento das punições, se bem quecontrária à teoria estrita do direito penal, de que a pessoa está na prisão para "pagarsua dívida". A prisão é "natural" como é "natural" na nossa sociedade o uso dotempo para medir as trocas.4Mas a obviedade da prisão se fundamenta também em seu papel, suposto ou exigido, de aparelho para transformar os indivíduos. Como não seria a prisãoimediatamente aceita, pois se só o que ela faz, ao encarcerar, ao retreinar, ao tornardócil, é reproduzir, podendo sempre acentuá-los um pouco, todos os mecanismosque encontramos no corpo social? A prisão: um quartel um pouco estrito, umaescola sem indulgência, uma oficina sombria, mas, levando ao fundo, nada dequalitativamente diferente. Esse duplo fundamento — jurídico-econômico por umlado, técnico-disciplinar por outro — fez a prisão aparecer como a forma maisimediata e mais civilizada de todas as penas. E foi esse duplo funcionamento que lhedeu imediata solidez. Uma coisa, com efeito, é clara: a prisão não foi primeiro umaprivação de liberdade a que se teria dado em seguida uma função técnica decorreção; ela foi desde o início uma "detenção legal" encarregada de um suplementocorretivo, ou ainda uma empresa de modificação dos indivíduos que a privação deliberdade permite fazer funcionar no sistema legal. Em suma, o encarceramentopenal, desde o início do século XIX, recobriu ao mesmo tempo a privação deliberdade e a transformação técnica dos indivíduos.Lembremos um certo número de fatos. Nos códigos de 1808 e de 1810, e nasmedidas que os seguiram ou os precederam imediatamente, o encarceramento nuncase confunde com a simples privação de liberdade. É, ou deve ser em todo caso, ummecanismo diferenciado e finalizado. Diferenciado pois não deve ter: a mesmaforma, consoante se trate de um indiciado ou de um condenado, de um contraventorou de um criminoso: cadeia, casa de correção, penitenciária devem em princípiocorresponder mais ou menos a essas diferenças, e realizar um castigo não sógraduado em intensidade, mas diversificado em seus objetivos. Pois a prisão tem umfim, apresentado de saída:Como a lei inflige penas umas mais graves que outras, não pode permitir que oindivíduo condenado a penas leves se encontre preso no mesmo local que o criminosocondenado a penas mais graves...; se a pena infligida pela lei tem como objetivo principala reparação do crime, ela pretende também que o culpado se emende.5E deve-se requerer essa transformação aos efeitos internos do encarceramento.Prisão-castigo, prisão-aparelho:A ordem que deve reinar nas cadeias pode contribuir fortemente para regenerar oscondenados; os vícios da educação, o contágio dos maus exemplos, a ociosidade... originaram crimes. Pois bem, tentemos fechar todas essas fontes de corrupção; que sejampraticadas regras de sã moral nas casas de detenção; que, obrigados a um trabalho deque terminarão gostando, quando dele recolherem o fruto, os condenados contraiam ohábito, o gosto e a necessidade da ocupação; que se dêem respectivamente o exemplo deuma vida laboriosa; ela logo se tornará uma vida pura; logo começarão a lamentar opassado, primeiro sinal avançado de amor pelo dever.6As técnicas corretivas imediatamente fazem parte da armadura institucional dadetenção penal.Devemos lembrar também que o movimento para reformar as prisões, paracontrolar seu funcionamento, não é um fenômeno tardio. Não parece sequer ternascido de um atestado de fracasso devidamente lavrado. A "reforma" da prisão émais ou menos contemporânea da própria prisão. Ela é como que seu programa. Aprisão se encontrou, desde o início, engajada numa série de mecanismos deacompanhamento, que aparentemente devem corrigi-la, mas que parecem fazer partede seu próprio funcionamento, de tal modo têm estado ligados a sua existência emtodo o decorrer de sua história. Houve, imediatamente, uma tecnologia loquaz daprisão. Inquéritos: o de Chaptal já em 1801 quando se tratava de fazer olevantamento do que se podia utilizar para implantar na França o aparelhocarcerário, a de Decazes em 1819, o livro de Villermé publicado em 1820, orelatório sobre as penitenciárias preparado por Martignac em 1829, os inquéritosconduzidos nos Estados Unidos por Beaumont de Tocqueville em 1831, por Demetze Blouet em 1835, os questionários dirigidos por Montalivet aos diretores depenitenciárias e aos conselhos gerais quando se está em pleno debate sobre oisolamento dos detentos. Sociedades, para controlar o funcionamento das prisões epropor sua melhora: em 1818, é a muito oficial "Sociedade para a melhoria dasprisões", um pouco mais tarde a "sociedade das prisões" e diversos gruposfilantrópicos. Inúmeras providências — portarias, instruções ou leis: desde a reformaque a primeira Restauração havia previsto logo no mês de setembro de 1814, e quenunca foi aplicada, até à lei de 1844, preparada por Tocqueville e que por algumtempo encerrou um longo debate sobre os meios de tornar eficaz a prisão. Programaspara assegurar o funcionamento da máquina-prisão7: programas de tratamento paraos detentos; modelos de arranjo material, alguns permanecendo puros projetos comoos de Danjou, de Blouet, de Harou-Romain, outros tomando forma em instruções (como a circular de 9 de agosto de 1841 sobre as construções das cadeias), outrastornando-se arquiteturas muito reais, como a Petite Roquette, onde pela primeira vezna França foi organizado o encarceramento celular.A que se devem ainda acrescentar as publicações mais ou menos diretamentesaídas da prisão e redigidas ou por filantropos, como appert, ou um pouco mais tardepor "especialistas", assim como os Annales de la Charité8ou ainda por antigosdetentos; Pauvre Jacques no fim da Restauração, ou a Gazette de Sainte-Pélagie nocomeço da monarquia de julho.9A prisão não deve ser vista como uma instituição inerte, que volta e meia teriasido sacudida por movimentos de reforma. A "teoria da prisão" foi seu modo de usarconstante, mais que sua crítica incidente — uma de suas condições defuncionamento. A prisão fez sempre parte de um campo ativo onde abundaram osprojetos, os remanejamentos, as experiências, os discursos teóricos, os testemunhos,os inquéritos. Em torno da instituição carcerária, toda uma prolixidade, todo umzelo. A prisão, região sombria e abandonada? O simples fato de que não se pare dedizê-lo há cerca de dois séculos prova que ela não o era? Ao se tornar punição legal,ela carregou a velha questão jurídico-política do direito de punir com todos osproblemas, todas as agitações que surgiram em torno das tecnologias corretivas doindivíduo.*"Instituições completas e austeras", dizia Baltard.10 A prisão deve ser umaparelho disciplinar exaustivo. Em vários sentidos: deve tomar a seu cargo todos osaspectos do indivíduo, seu treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seucomportamento cotidiano, sua atitude moral, suas disposições; a prisão, muito maisque a escola, a oficina ou o exército, que implicam sempre numa certaespecialização, é "onidisciplinar". Além disso a prisão é sem exterior nem lacuna;não se interrompe, a não ser depois de terminada totalmente sua tarefa; sua açãosobre o indivíduo deve ser ininterrupta: disciplina incessante. Enfim, ela dá um poder quase total sobre os detentos; tem seus mecanismos internos de repressão e decastigo: disciplina despótica. Leva à mais forte intensidade todos os processos queencontramos nos outros dispositivos de disciplina. Ela tem que ser a maquinariamais potente para impor uma nova forma ao indivíduo pervertido; seu modo de açãoé a coação de uma educação total:Na prisão o governo pode dispor da liberdade da pessoa e do tempo do detento; apartir daí, concebe-se a potência da educação que, não em só um dia, mas na sucessãodos dias e mesmo dos anos pode regular para o homem o tempo da vigília e do sono, daatividade e do repouso, o número e a duração das refeições, a qualidade e a ração dosalimentos, a natureza e o produto do trabalho, o tempo da oração, o uso da palavra e, porassim dizer, até o do pensamento, aquela educação que, nos simples e curtos trajetos dorefeitório à oficina, da oficina à cela, regula os movimentos do corpo e até nos momentosde repouso determina o horário, aquela educação, em uma palavra, que se apodera dohomem inteiro, de todas as faculdades físicas e morais que estão nele e do tempo em queele mesmo está.11Esse "reformatório" integral prescreve uma recodificação da existência bemdiferente da pura privação jurídica de liberdade e bem diferente também da simplesmecânica de representações com que sonhavam os reformadores na época daIdeologia.1) Primeiro princípio, o isolamento. Isolamento do condenado em relação aomundo exterior, a tudo o que motivou a infração, às cumplicidades que a facilitaram.Isolamento dos detentos uns em relação aos outros. Não somente a pena deve serindividual, mas também individualizante. E isso de duas maneiras. Em primeirolugar, a prisão deve ser concebida de maneira a que ela mesma apague asconseqüências nefastas que atrai ao reunir num mesmo local condenados muitodiversos: abafar os complôs e revoltas que se possam formar, impedir que seformem cumplicidades futuras ou nasçam possibilidades de chantagem (no dia emque os detentos se encontrarem livres), criar obstáculo à imoralidade de tantas"associações misteriosas". Enfim, que a prisão não forme, a partir dos malfeitoresque reúne, uma população homogênea e solidária:Existe entre nós neste momento uma sociedade organizada de criminosos... formamuma pequena nação no seio da grande. Quase todos esses homens se conheceram nasprisões ou nelas se encontram. São os membros dessa sociedade que importa hoje dispersar.12Além disso, a solidão deve ser um instrumento positivo de reforma. Pelareflexão que suscita, e pelo remorso que não pode deixar de chegar:jogado na solidão o condenado reflete. Colocado a sós em presença de seu crime, eleaprende a odiá-lo, e se sua alma ainda não estiver empedernida pelo mal é no isolamentoque o remorso virá assalta-lo.13Pelo fato também de que a solidão realiza uma espécie de auto-regulação dapena, e permite uma como que individualização espontânea do castigo: quanto maiso condenado é capaz de refletir, mais ele foi culpado de cometer seu crime; masmais também o remorso será vivo, e a solidão dolorosa; em compensação, quandoestiver profundamente arrependido, e corrigido sem a menor dissimulação, a solidãonão lhe será mais pesada:Assim, segundo essa admirável disciplina, cada inteligência e cada moralidadelevam em si mesmas o princípio e a medida de uma repressão cuja certeza e invariáveleqüidade não poderiam ser alteradas pelo erro e pela falibilidade humanas... Não é emverdade como o selo de uma justiça divina e providencial?14Enfim, e talvez principalmente, o isolamento dos condenados garante que sepossa exercer sobre eles, com o máximo de intensidade, um poder que não seráabalado por nenhuma outra influência; a solidão é a condição primeira da submissãototal:Imagine-se [dizia Charles Lucas, evocando o papel do diretor, do professor, dosacerdote e das "pessoas caridosas" sobre o detento isolado], imagine-se a força dapalavra humana que intervém no meio da terrível disciplina do silêncio para falar aocoração, à alma, à pessoa humana.15O isolamento assegura o encontro do detento a sós com o poder que se exercesobre ele.É nesse ponto que se situa a discussão sobre os dois sistemas americanos deencarceramento, o de Auburn e o de Filadélfia. Na realidade, essa discussão queocupa tanto lugar16 só se refere à realização de um isolamento, admitido por todos.O modelo de Auburn prescreve a cela individual durante a noite, o trabalho eas refeições em comum, mas, sob a regra do silêncio absoluto, os detentos só podendo falar com os guardas, com a permissão destes e em voz baixa. Referênciaclara tomada ao modelo monástico; referência também tomada à disciplina deoficina. A prisão deve ser um microcosmo de uma sociedade perfeita onde osindivíduos estão isolados em sua existência moral, mas onde sua reunião se efetuanum enquadramento hierárquico estrito, sem relacionamento lateral, só se podendofazer comunicação no sentido vertical. Vantagem do sistema auburniano segundoseus partidários: é uma repetição da própria sociedade. A coação é assegurada pormeios materiais mas sobretudo por uma regra que se tem que aprender a respeitar e égarantida por uma vigilância e punições. Mais que manter os condenados "a setechaves como uma fera em sua jaula", deve-se associá-lo aos outros, "fazê-losparticipar em comum de exercícios úteis, obrigá-los em comum a bons hábitos,prevenindo o contágio moral por uma vigilância ativa, e mantendo o recolhimentopela regra do silêncio". Esta regra habitua o detendo a "considerar a lei como umpreceito sagrado cuja infração acarreta um mal justo e legítimo".17 Assim esse jogodo isolamento, da reunião sem comunicação, e da lei garantida por um controleininterrupto, deve requalificar o criminoso como indivíduo social: ele o treina parauma "atividade útil e resignada"18; devolve-lhe "hábitos de sociabilidade".19No isolamento absoluto — como em Filadélfia — não se pede a requalificaçãodo criminoso ao exercício de uma lei comum, mas à relação do indivíduo com suaprópria consciência e com aquilo que pode iluminá-lo de dentro.20Sozinho em sua cela o detento está entregue a si mesmo; no silêncio de suaspaixões e do mundo que o cerca, ele desce à sua consciência, interroga-a e sentedespertar em si o sentimento moral que nunca perece inteiramente no coração dohomem.21Não é portanto um respeito exterior pela lei ou apenas o receio da punição quevai agir sobre o detento, mas o próprio trabalho de sua consciência. Antes umasubmissão profunda que um treinamento superficial; uma mudança de "moralidade"e não de atitude. Na prisão pensilvaniana, as únicas operações da correção são aconsciência e a arquitetura muda contra a qual ela esbarra. Em Cherry Hill, "osmuros são a punição do crime; a cela põe o detento em presença de si mesmo; ele éforçado a ouvir sua consciência". Donde o fato de que o trabalho é aí antes umconsolo que uma obrigação; que os vigias não têm que exercer uma coação que é realizada pela materialidade das coisas, e que sua autoridade, conseqüentemente,pode ser aceita:A cada visita, algumas palavras benevolentes saem dessa boca honesta e levam aocoração do detento, junto com o reconhecimento, a esperança e o consolo; ele ama seuguarda; e o ama porque este é suave e tem compaixão. Os muros são terríveis e o homemé bom.22Nessa cela fechada, sepulcro provisório, facilmente crescem os mitos daressurreição. Depois da noite e do silêncio, a vida regenerada. Auburn era a própriavida renovada em seus vigores essenciais. Cherry Hill, a vida aniquilada erecomeçada. O catolicismo recupera rapidamente em seus discursos essa técnicaquaker.Só vejo em vossa cela um horroroso sepulcro, no qual, em lugar dos vermes, osremorsos e o desespero avançam em vossa direção para roer-vos e fazer de vossaexistência um inferno antecipado. Mas... aquilo que para o prisioneiro sem religião nãopassa de uma tumba, um ossário repulsivo, torna-se, para o detento sinceramente cristão,o próprio berço da imortalidade bem-aventurada.23Na oposição entre esses dois modelos, veio se fixar toda uma série de conflitosdiferentes: religioso (deve a conversão ser a peça principal da correção?), médico (oisolamento completo enlouquece?), econômico (onde está o menor custo?),arquitetural e administrativo (qual é a forma que garante a melhor vigilância?).Donde, sem dúvida, o tamanho da polêmica. Mas no centro das discussões, etornando-as possíveis, este objetivo primeiro da ação carceral: a individualizaçãocoercitiva, pela ruptura de qualquer relação que não seja controlada pelo poder ouordenada de acordo com a hierarquia.2) O trabalho que se alterna com as refeições acompanha o detento até à oração danoite; então um novo sono lhe dá um repouso agradável que não vem perturbar osfantasmas de uma imaginação desregrada. Assim se passam seis dias da semana. Sãoseguidos por um dia exclusivamente consagrado à oração, à instrução e a meditaçõessalutares. É assim que se sucedem e se substituem as semanas, os meses, os anos;assim o prisioneiro que, em sua entrada para o estabelecimento era um homeminconstante ou que só tinha convicção de sua irregularidade, procurando destruir suaexistência pela variedade de seus vícios, torna-se pouco a pouco pela força de um hábitoinicialmente puramente exterior, mas logo transformado em segunda natureza, tão familiarizado com o trabalho e os gozos dele decorrentes que, por pouco que umainstrução sábia tenha aberto sua alma ao arrependimento, ele poderá ser exposto commais confiança às tentações que lhe serão trazidas pela recuperação de sua liberdade.24O trabalho é definido, junto com o isolamento, como um agente datransformação carcerária. E isso desde o código de 1808:Se a pena infligida pela lei tem por objetivo a reparação do crime, ela pretendetambém que o culpado se emende, e esse duplo objetivo será cumprido se o malfeitor forarrancado a essa ociosidade funesta que, tendo-o atirado à prisão, aí viria encontrá-lo denovo e dele se apoderar para conduzi-lo ao último grau da depravação.25O trabalho não é nem uma adição nem um corretivo ao regime de detenção:quer se trate de trabalhos forçados, da reclusão, do encarceramento, é concebido,pelo próprio legislador, como tendo que acompanhá-la necessariamente. Mas umanecessidade que justamente não é aquela de que falavam os reformadores do séculoXVIII, quando queriam fazer da prisão ou um exemplo para o público, ou umareparação útil para a sociedade. No regime carcerário a ligação do trabalho e dapunição é de outro tipo.Várias polêmicas surgidas na Restauração ou durante a monarquia de julhoesclarecem a função que se empresta ao trabalho penal. Discussão em primeiro lugarsobre o salário. O trabalho dos detentos era remunerado na França. Problema: seuma retribuição recompensa o trabalho em prisão, é porque esta não faz realmenteparte da pena; e o detento pode então recusá-lo. Além disso, o benefício recompensaa habilidade do operário e não a regeneração do culpado:Os piores elementos são quase em toda parte os mais hábeis operários; são os maisretribuídos, conseqüentemente os mais intemperantes e os menos aptos aoarrependimento.26A discussão que nunca se encerrou totalmente recomeça, e muito vivamente,nos anos 1840-1845: época de crise econômica, época de agitação operária, épocatambém em que começa a se cristalizar a oposição do operário e do delinqüente.27Há greves contra as oficinas de prisão: quando um fabricante de luvas de Chaumontarranja para organizar uma oficina em Clairvaux, os operários protestam, declaramque seu trabalho está desonrado, ocupam a manufatura e forçam o patrão a renunciara seu projeto.28 Há também uma campanha de imprensa nos jornais operários sobre o tema de que o governo favorece o trabalho penal para fazer baixar os salários"livres"; sobre o tema de que os inconvenientes dessas oficinas de prisão são aindamais graves para as mulheres, a quem eles retiram o trabalho, levando-as àprostituição, portanto à prisão, onde essas mesmas mulheres, que não podiam maistrabalhar quando eram livres, vêm então fazer concorrência às que ainda têmserviço29; sobre o tema de que se reservam aos detentos os trabalhos mais seguros —"os ladrões vivendo em prisões bem aquecidas e bem abrigados executam ostrabalhos de chapelaria e de marcenaria", enquanto o chapeleiro reduzido aodesemprego tem que ir "ao abatedouro humano fabricar alvaiade a 2 francos pordia"30; sobre o tema de que a filantropia dá muita importância às condições detrabalho dos detentos, mas negligencia as do trabalhador livre: "Temos certeza deque, se os prisioneiros trabalhassem com mercúrio, por exemplo, a ciência seria bemmais rápida do que é para encontrar meios de preservar os trabalhadores do perigode suas emanações: 'Esses pobres condenados!', diria aquele que quase não fala dosoperários douradores. Que se há de fazer, é preciso ter matado ou roubado para atraira compaixão ou o interesse dos outros". Sobre o tema principalmente de que se aprisão tender a se tornar uma oficina, logo para lá serão enviados os mendigos e osdesempregados, reconstituindo assim os velhos "hospitais gerais" da França ou asworkhouses da Inglaterra.31 Houve ainda, principalmente depois da votação da lei de1844, petições e cartas — uma petição é recusada pela Câmara de Paris, que "achoudesumano que se propusesse empregar assassinos, ladrões, em trabalhos quepertencem agora a alguns milhares de operários"; "a Câmara preferiu Barrabás anós"32; operários tipógrafos enviam uma carta ao ministro ao tomarem conhecimentode que foi instalada uma gráfica na Central de Melun:Tendes a escolher entre reprovados justamente atingidos pela lei, e cidadãos quesacrificam seus dias, na abnegação e na probidade, à existência de suas famílias, tantoquanto à riqueza da pátria.33Ora, a toda essa campanha as respostas dadas pelo governo e pela administraçãosão muito constantes. O trabalho penal não pode ser criticado pelodesemprego que provocaria: com sua parca extensão, seu fraco rendimento, ele nãopode ter incidência geral sobre a economia. Não é como atividade de produção queele é intrinsecamente útil, mas pelos efeitos que toma na mecânica humana. É um princípio de ordem e de regularidade; pelas exigências que lhe são próprias, veicula,de maneira insensível, as formas de um poder rigoroso; sujeita os corpos amovimentos regulares, exclui a agitação e a distração, impõe uma hierarquia e umavigilância que serão ainda mais bem aceitas, e penetrarão ainda mais profundamenteno comportamento dos condenados, por fazerem parte de sua lógica: com o trabalho,a regra é introduzida numa prisão, ela reina sem esforço, sem emprego de nenhum meiorepressivo e violento. Ocupando-se o detento, são-lhe dados hábitos de ordem e deobediência; tornamo-lo diligente e ativo, de preguiçoso que era... com o tempo, eleencontra no movimento regular da casa, nos trabalhos manuais a que foi submetido... umremédio certo contra os desvios de sua imaginação.34O trabalho penal deve ser concebido como sendo por si mesmo umamaquinaria que transforma o prisioneiro violento, agitado, irrefletido em uma peçaque desempenha seu papel com perfeita regularidade. A prisão não é uma oficina;ela é, ela tem que ser em si mesma uma máquina de que os detentos-operários são aomesmo tempo as engrenagens e os produtos; ela os "ocupa" e issocontinuamente, mesmo se fora com o único objetivo de preencher seus momentos.Quando o corpo se agita, quando o espírito se aplica a um objeto determinado, as idéiasimportunas se afastam, a calma renasce na alma.35Se, no fim das contas, o trabalho da prisão tem um efeito econômico, éproduzindo indivíduos mecanizados segundo as normas gerais de uma sociedadeindustrial:O trabalho é a providência dos povos modernos; serve-lhes como moral, preenche ovazio das crenças e passa por ser o princípio de todo bem. O trabalho devia ser a religiãodas prisões. A uma sociedade-máquina, seriam necessárias meios de reforma puramentemecânicas.36Fabricação de indivíduos-máquinas, mas também de proletários; efetivamente,quando o homem possui apenas "os braços como bens", só poderá viver "do produtode seu trabalho, pelo exercício de uma profissão, ou do produto do trabalho alheio,pelo ofício do roubo"; ora, se a prisão não obrigasse os malfeitores ao trabalho, elareproduziria em sua própria instituição, pelo fisco, essa vantagem de uns sobre otrabalho de outros:A questão da ociosidade é a mesma que na sociedade; é do trabalho dos outros que têm que viver os detentos, se não vivem do seu próprio.37O trabalho pelo qual o condenado atende a suas próprias necessidadesrequalifica o ladrão em operário dócil. E é nesse ponto que intervém a utilidade deuma retribuição pelo trabalho penal; ela impõe ao detento a forma "moral" do saláriocomo condição de sua existência. O salário faz com que se adquira "amor e hábito"ao trabalho38; dá a esses malfeitores que ignoram a diferença entre o meu e o teu osentido da propriedade — "daquela que se ganhou com o suor do rosto"39; ensinalhestambém, a eles que viveram na dissipação, o que é a previdência, a poupança, ocálculo do futuro40; enfim, propondo uma medida do trabalho feito, permite avaliarquantitativamente o zelo do detento e os progressos de sua regeneração.41 O saláriodo trabalho penal não retribui uma produção; funciona como motor e marcatransformações individuais: uma ficção jurídica, pois não representa a "livre" cessãode uma força de trabalho, mas um artifício que se supõe eficaz nas técnicas decorreção.A utilidade do trabalho penal? Não é um lucro; nem mesmo a formação deuma habilidade útil; mas a constituição de uma relação de poder, de uma formaeconômica vazia, de um esquema da submissão individual e de seu ajustamento aum aparelho de produção.Imagem perfeita do trabalho de prisão: a oficina de mulheres em Clairvaux; aexatidão silenciosa da maquinaria humana atinge aí o rigor regulamentar doconvento:Num púlpito, acima do qual há um crucifixo, está sentada uma freira; diante dela, ealinhadas em duas fileiras, as prisioneiras efetuam a tarefa que lhes é imposta, e comodomina quase exclusivamente o trabalho de agulha, resulta que o mais rigoroso silêncio éconstantemente mantido... Parece que nessas salas tudo respira a penitência e aexpiação. Ocorre-nos, como por um movimento espontâneo, os tempos dos veneráveishábitos desta tão antiga habitação; lembra-nos os penitentes voluntários que aqui sefechavam para dizer adeus ao mundo.423) Mas a prisão excede a simples privação de liberdade de uma maneira maisimportante. Ela tende a tornar-se um instrumento de modulação da pena: umaparelho que, através da execução da sentença de que está encarregado, teria odireito de retomar, pelo menos em parte, seu princípio. É claro que esse "direito" não foi recebido pela instituição carcerária no século XIX, nem mesmo ainda noXX, salvo sob uma forma fragmentária (por via das liberações condicionais, dassemiliberdades, da organização das centrais de reforma). Mas deve-se notar que foimuito cedo reclamado pelos responsáveis pela administração penitenciária, como aprópria condição de um bom funcionamento da prisão, e de sua eficácia nessa tarefade regeneração que a própria justiça lhe confia.Assim para a duração do castigo: ela permite quantificar exatamente as penas,graduá-las segundo as circunstâncias, e dar ao castigo legal a forma mais ou menosexplícita de um salário; mas corre o risco de não ter valor corretivo, se for fixada emcaráter definitivo, ao nível do julgamento. A extensão da pena não deve medir o"valor de troca" da infração; ela deve se ajustar à transformação "útil" do detento nodecorrer de sua condenação. Não um tempo-medida, mas um tempo com metaprefixada. Mais que a forma do salário, a forma da operação.Do mesmo modo que o médico prudente pára a medicação ou continua com elaconforme o doente tenha ou não chegado à cura perfeita, assim também, na primeiradessas duas hipóteses, a expiação deveria cessar diante da regeneração completa docondenado; pois, nesse caso, qualquer detenção se terá tornado inútil, e portanto tãodesumana para com o regenerado quanto inútil e onerosa para o Estado.43A justa duração da pena deve portanto variar não só com o ato e suascircunstâncias, mas com a própria pena tal como ela se desenrola concretamente. Oque eqüivale a dizer que, se a pena deve ser individualizada, não é a partir doindivíduo-infrator, sujeito jurídico de seu ato, autor responsável do delito, mas apartir do indivíduo punido, objeto de uma matéria controlada de transformação, oindivíduo em detenção inserido no aparelho carcerário, modificado por este ou a elereagindo.O importante é apenas reformar o mau. Uma vez operada essa reforma, o criminosodeve voltar à sociedade.44A qualidade e o conteúdo da infração não deveriam tampouco serdeterminados só pela natureza da infração. A gravidade jurídica de um crime nãotem absolutamente valor de sinal unívoco para o caráter corrigível ou não docondenado. Particularmente a distinção crime-contravenção, a que o código fazcorresponder a distinção entre prisão e reclusão ou trabalhos forçados, não é operatória em termos de regeneração. É a opinião quase geral formulada pelosdiretores de penitenciárias, quando de uma pesquisa feita pelo ministério em 1836:Os contraventores são em geral os mais viciosos... Entre os criminosos, encontramsemuitos homens que sucumbiram à violência de suas paixões e às necessidades de umafamília numerosa. O comportamento dos criminosos é bem melhor que o doscontraventores; os primeiros são mais submissos, mais laboriosos que os últimos, que sãoem geral ladinos, devassos, preguiçosos.45Donde a idéia de que o rigor punitivo não deve estar em proporção direta coma importância penal do ato condenado. Nem determinado de uma vez por todas.Operação corretora, o encarceramento tem suas exigências e peripéciaspróprias. Seus efeitos é que devem determinar suas etapas, agravações temporárias,atenuações sucessivas; o que Charles Lucas chamava "a classificação móvel dasmoralidades". O sistema progressivo aplicado em Genebra desde 182546 foi muitasvezes reclamado na França. Sob a forma, por exemplo, dos três setores: o de provapara a generalidade dos detentos, o setor de punição e o setor de recompensa para osque estão no caminho da melhora.47 Ou sob a forma das quatro fases: período deintimidação (privação de trabalho e de qualquer relação interior ou exterior); períodode trabalho (isolamento mas trabalho que depois da fase de ociosidade forçada seriaacolhido como um benefício); regime de moralização ("conferências" mais oumenos freqüentes com os diretores e os visitantes oficiais); período de trabalho emcomum.48 Se o princípio da pena é sem dúvida uma decisão de justiça, sua gestão,sua qualidade e seus rigores devem pertencer a um mecanismo autônomo quecontrola os efeitos da punição no próprio interior do aparelho que os produz. Todoum regime de punições e de recompensas que não é simplesmente uma maneira defazer respeitar o regulamento da prisão, mas de tornar efetiva a ação da prisão sobreos detentos. Acontece que a própria autoridade judiciária o reconheça:Não devemos, dizia a Corte de Cassação, consultada a respeito do projeto de leisobre as prisões, nos espantar com a idéia de conceder recompensas que poderãoconsistir seja num pecúlio maior, seja num melhor regime alimentar, seja mesmo emabreviações de pena. Se alguma coisa há que possa despertar no espírito doscondenados as noções de bem e de mal, levá-los a considerações morais e elevá-los umpouco a seus próprios olhos, é a possibilidade de conseguir alguma recompensa.49E para todos esses atos que retificam a pena, à medida que ela se desenrola, éforçoso admitir que as instâncias judiciárias não podem ter autoridade imediata.Trata-se com efeito de medidas que por definição só poderiam intervir depois dojulgamento e só podem agir sobre as coisas que não sejam infrações. Autonomiaindispensável, por conseguinte, do pessoal que gere a detenção quando importaindividualizar e variar a aplicação da pena; fiscais, um diretor de estabelecimento,um sacerdote ou um professor são mais capazes de exercer essa função corretiva queos detentores do poder penal. É seu julgamento (entendido como constatação,diagnóstico, caracterização, precisão, classificação diferencial) e não mais umveredicto em forma de determinação de culpa, que deve servir de suporte a essamodulação interna da pena — a sua atenuação ou mesmo a sua interrupção. QuandoBonneville em 1846 apresentou seu projeto de liberdade condicional, ele a definiucomoo direito que teria a administração, com opinião favorável da autoridade judiciária, de pôrem liberdade provisória depois de um tempo suficiente de expiação e mediante certascondições o condenado completamente regenerado, com a possibilidade de reintegrá-lo àprisão à mínima queixa fundamentada.50Todo aquele "arbitrário" que, no antigo regime penal, permitia aos juizesmodular a pena e aos príncipes eventualmente dar fim a ela, todo aquele arbitrárioque os códigos modernos retiraram do poder judiciário, vemo-lo se reconstituir,progressivamente, do lado do poder que gere e controla a punição. Soberania sábiado guardião:Verdadeiro magistrado chamado a reinar soberanamente na casa... e que deve, para nãoestar abaixo de sua missão, unir à mais eminente virtude uma ciência profunda doshomens.51E chegamos, formulado claramente por Charles Lucas, a um princípio que bempoucos juristas ousariam hoje admitir sem reticências, se bem que ele marque adireção essencial do funcionamento penal moderno; chamemo-lo a Declaração deIndependência carcerária — que reivindica o direito de ser um poder que tem nãosomente sua autonomia administrativa, mas como que uma parte da soberaniapunitiva. Essa afirmação dos direitos da prisão coloca em princípio: que ojulgamento criminal é uma unidade arbitrária; que tem que ser decomposta; que os redatores dos códigos já tiveram razão de distinguir o nível legislativo (queclassifica os atos e lhes atribui as penas), e o nível do julgamento (que exara assentenças); que a tarefa hoje é analisar por sua vez esse último nível; que é precisodistinguir nele o que é propriamente judiciário (apreciar menos os atos que osagentes, medir "as intencionalidades que dão aos atos humanos tantas moralidadesdiversas", e portanto retificar, se possível, as avaliações do legislador); e darautonomia ao "julgamento penitenciário", o que é talvez o mais importante; emrelação a ele, a avaliação do tribunal não passa de uma "maneira de prejulgar", poisa moralidade do agente só pode ser apreciada quando "posta à prova. O juiz precisaportanto, por sua vez, de um controle necessário e retificativo de suas avaliações; e éesse controle que a prisão penitenciária deve fornecer"52. Pode-se portanto falar deum excesso ou de uma série de excessos do encarceramento em relação à detençãolegal do "carcerário" em relação ao "judiciário". Ora, esse excesso é desde muitocedo constatado, desde o nascimento da prisão, seja sob a forma de práticas reais,seja sob a forma de projetos. Ele não veio, em seguida, como um efeito secundário.A grande maquinaria carcerária está ligada ao próprio funcionamento da prisão.Podemos bem ver o sinal dessa autonomia nas violências "inúteis" dos guardas ouno despotismo de uma administração que tem os privilégios das quatro paredes. Suaraiz está em outra parte: no fato, justamente, de que se pede à prisão que seja "útil",no fato de que a privação de liberdade — essa retirada jurídica sobre um bem ideal— teve, desde o início, que exercer um papel técnico positivo, realizartransformações nos indivíduos. E para essa operação o aparelho carcerário recorreua três grandes esquemas: o esquema político-moral do isolamento individual e dahierarquia; o modelo econômico da força aplicada a um trabalho obrigatório; omodelo técnico-médico da cura e da normalização. A cela, a oficina, o hospital. Amargem pela qual a prisão excede a detenção é preenchida de fato por técnicas detipo disciplinar. E esse suplemento disciplinar em relação ao jurídico, é a isso, emsuma, que se chama o "penitenciário".* Este acréscimo não foi aceito sem problemas. Questão que foi primeiro deprincípio: a pena não deve ser mais nada além da privação da liberdade; comonossos atuais governantes, Decazes o dizia, mas com o brilho de sua linguagem: "Alei deve seguir o culpado à prisão onde o levou".53 Mas rapidamente — e isso é umfato característico — esses debates se tornarão batalha para a apropriação docontrole desse "suplemento" penitenciário; os juizes pedirão direito de vista sobre osmecanismos carcerários:A moralização dos detentos exige numerosos cooperadores; só com visitas deinspeção, comissões de fiscalização, sociedades patrocinadoras ela pode se realizar.Precisa então de auxiliares e é a magistratura que deve fornecê-los.54Desde aquela época, a ordem penitenciária adquiria consistência bastante paraque se pudesse procurar não desfazê-la, mas tomá-la a seu cargo. Eis então o juizassaltado pelo desejo da prisão. Disso nascerá, um século depois, um filho bastardo,e entretanto disforme: o juiz da aplicação das penas.Mas se o penitenciário, em seu "excesso" em relação à detenção, pôde de fatose impor, bem mais, apanhar toda a justiça penal e trancar os próprios juizes, éporque ele conseguiu introduzir a justiça criminal em relações de saber que agora setornaram para ela seu labirinto infinito.A prisão, local de execução da pena, é ao mesmo tempo local de observaçãodos indivíduos punidos. Em dois sentidos. Vigilância, é claro. Mas tambémconhecimento de cada detento, de seu comportamento, de suas disposiçõesprofundas, de sua progressiva melhora; as prisões devem ser concebidas como umlocal de formação para um saber clínico sobre os condenados;o sistema penitenciário não pode ser uma concepção a priori; é uma indução do estadosocial. Há doenças morais assim como acidentes da saúde em que o tratamento dependedo foco e da direção do mal.55O que implica em dois dispositivos essenciais. É preciso que o prisioneiropossa ser mantido sob um olhar permanente; é preciso que sejam registradas econtabilizadas todas as anotações que se possa tomar sobre eles. O tema doPanóptico — ao mesmo tempo vigilância e observação, segurança e saber,individualização e totalização, isolamento e transparência — encontrou na prisão seu local privilegiado de realização. Se é verdade que os processos panópticos, comoformas concretas de exercício do poder, tiveram, pelo menos em estado disperso,larga difusão, foi só nas instituições penitenciárias que a utopia de Bentham pôde,num bloco, tomar forma material. O Panóptico tornou-se, por volta dos anos 1830-1840, o programa arquitetural da maior parte dos projetos de prisão. Era a maneiramais direta de traduzir "na pedra a inteligência da disciplina"56; de tornar aarquitetura transparente à gestão do poder57; de permitir que a força ou as coaçõesviolentas fossem substituídas pela eficácia suave de uma vigilância sem falha; deordenar o espaço segundo a recente humanização dos códigos e a nova teoriapenitenciária:A autoridade, por um lado, e o arquiteto, por outro, têm que saber se as prisões devem sercombinadas no sentido da suavização das penas ou num sistema de regeneração dosculpados, e em conformidade com uma legislação que, remontando à origem dos vícios dopovo, se torna um princípio regenerador das virtudes que este deve praticar.58No total, constituir uma prisão-máquina59 com uma cela de visibilidade onde odetento se encontrará preso como "na casa de vidro do filósofo grego"60 e um pontocentral de onde um olhar permanente possa controlar ao mesmo tempo osprisioneiros e o pessoal. Em torno dessas duas exigências, muitas variaçõespossíveis: o Panóptico benthamiano em sua forma estrita, ou em semicírculo, ou emforma de cruz, ou a disposição em estrela.61 No meio de todas essas discussões, oministro do Interior em 1841 lembra os princípios fundamentais:A sala central de inspeção é o eixo do sistema. Sem ponto central de inspeção, avigilância deixa de ser assegurada, contínua e geral; pois é impossível ter inteira confiançana atividade, no zelo e na inteligência do preposto que vigia imediatamente as celas... Oarquiteto deve então colocar toda a sua atenção nesse objeto; há aí ao mesmo tempo umaquestão de disciplina e de economia. Quanto mais for exata e fácil a vigilância, menos seránecessário procurar na força dos edifícios garantias contra as tentativas de evasão econtra as comunicações dos detentos entre si. Ora, a vigilância será perfeita se de umasala central o diretor ou o preposto em chefe, sem mudar de lugar, vê sem ser visto não sóa entrada de todas as celas e até o interior do maior número de celas quando a porta estátoda aberta, mas ainda os vigias destacados à guarda dos prisioneiros em todos osandares... com a fórmula das prisões circulares ou semicirculares, seria aparentementepossível ver de um centro único todos os prisioneiros em suas celas, e os guardas nasgalerias de vigilância.62Mas o Panóptico penitenciário é também um sistema de documentaçãoindividualizante e permanente. No mesmo ano em que se recomendava as variantesdo sistema benthamiano para construir as prisões, tornava-se obrigatório o sistemade "conta moral": boletim individual de modelo uniforme em todas as prisões, e noqual o diretor ou o chefe dos guardas, o sacerdote, o professor são chamados ainscrever suas observações a respeito de cada detento:É de certo modo a vade-mécum da administração da prisão, que lhe dá condiçõesde avaliar cada caso, cada circunstância, e de tornar claro em conseqüência o tratamentoa ser aplicado a cada prisioneiro individualmente.63Muitos outros sistemas de registro, bem mais completos, foram projetados outentados.64 Trata-se de qualquer maneira de fazer da prisão um local de constituiçãode um saber que deve servir de princípio regulador para o exercício da práticapenitenciária. A prisão não tem só que conhecer a decisão dos juizes e aplicá-la emfunção dos regulamentos estabelecidos: ela tem que coletar permanentemente dodetento um saber que permitirá transformar a medida penal em uma operaçãopenitenciária; que fará da pena tornada necessária pela infração uma modificação dodetento, útil para a sociedade. A autonomia do regime carcerário e o saber que elatorna possível permitem multiplicar essa utilidade da pena que o código colocara noprincípio de sua filosofia punitiva:Quanto ao diretor, ele não pode perder nenhum detento de vista, porque emqualquer setor que se encontre o detento, esteja ele entrando, esteja ele saindo, ou quefique, o diretor deve igualmente justificar os motivos de sua manutenção em tal classe oude sua passagem para tal outra. É um verdadeiro contador. Cada detento é para ele, naesfera da educação individual, um capital colocado no interesse penitenciário.65A prática penal, tecnologia sábia, rentabiliza o capital investido no sistemapenal e a construção das pesadas prisões.Correlatamente, o delinqüente torna-se indivíduo a conhecer. Esta exigência desaber não se insere, em primeira instância, no próprio ato jurídico, para melhorfundamentar a sentença e determinar na verdade a medida da culpa. É comocondenado, e a título de ponto de aplicação de mecanismos punitivos, que o infratorse constitui como objeto de saber possível. Mas isso implica em que o aparelho penitenciário, com todo o programatecnológico de que é acompanhado, efetue uma curiosa substituição: das mãos dajustiça ele recebe um condenado; mas aquilo sobre que ele deve ser aplicado, não é ainfração, é claro, nem mesmo exatamente o infrator, mas um objeto um poucodiferente, e definido por variáveis que pelo menos no início não foram levadas emconta na sentença, pois só eram pertinentes para uma tecnologia corretiva. Esseoutro personagem, que o aparelho penitenciário coloca no lugar do infratorcondenado, é o delinqüente.O delinqüente se distingue do infrator pelo fato de não ser tanto seu ato quantosua vida o que mais o caracteriza. A operação penitenciária, para ser uma verdadeirareeducação, deve totalizar a existência do delinqüente, tornar a prisão uma espéciede teatro artificial e coercitivo onde é preciso refazê-la totalmente. O castigo legal serefere a um ato; a técnica punitiva a uma vida; cabe-lhe por conseguinte reconstituiro ínfimo e o pior na forma do saber; cabe-lhe modificar seus efeitos ou preenchersuas lacunas, através de uma prática coercitiva. Conhecimento da biografia, etécnica da existência retreinada. A observação do delinqüentedeve remontar não só às circunstâncias, mas às causas de seu crime; procurá-las nahistória de sua vida, sob o triplo ponto de vista da organização, da posição social e daeducação, para conhecer e constatar as inclinações perigosas da primeira, aspredisposições nocivas da segunda e os maus antecedentes da terceira. Esse inquéritobiográfico é parte essencial da instrução judiciária para a classificação das penalidadesantes de se tornar uma condição do sistema penitenciário para a classificação dasmoralidades. Deve acompanhar o detento do tribunal à prisão, onde o ofício do diretor énão somente recolher, mas também completar, controlar e retificar seus elementos nodecorrer da detenção.66Por trás do infrator a quem o inquérito dos fatos pode atribuir a responsabilidadede um delito, revela-se o caráter delinqüente cuja lenta formaçãotransparece na investigação biográfica. A introdução do "biográfico" é importante nahistória da penalidade. Porque ele faz existir o "criminoso" antes do crime e, numraciocínio-limite, fora deste. E porque a partir daí uma causalidade psicológica vai,acompanhando a determinação jurídica da responsabilidade, confundir-lhe osefeitos. Entramos então no dédalo "criminológico" de que estamos bem longe de tersaído hoje em dia: qualquer causa que, como determinação, só pode diminuir a responsabilidade, marca o autor da infração com uma criminalidade ainda maistemível e que exige medidas penitenciárias ainda mais estritas. À medida que abiografia do criminoso acompanha na prática penal a análise das circunstâncias,quando se trata de medir o crime, vemos os discursos penal e psiquiátricoconfundirem suas fronteiras; e aí, em seu ponto de junção, forma-se aquela noção deindivíduo "perigoso" que permite estabelecer uma rede de causalidade na escala deuma biografia inteira e estabelecer um veredicto de punição-correção.67O delinqüente se distingue também do infrator pelo fato de não somente ser oautor de seu ato (autor responsável em função de certos critérios da vontade livre econsciente), mas também de estar amarrado a seu delito por um feixe de fioscomplexos (instintos, pulsões, tendências, temperamento). A técnica penitenciária seexerce não sobre a relação de autoria mas sobre a afinidade do criminoso com seucrime. O delinqüente, manifestação singular de um fenômeno global decriminalidade, se distribui em classes quase naturais, dotadas cada uma de suascaracterísticas definidas e a cada uma cabendo um tratamento específico, como oque Marquet-Wasselot chamava em 1841 de Ethnographie des prisons:Os condenados são... outro povo num mesmo povo: que tem seus hábitos, seusinstintos, seus costumes à parte.68Estamos aí ainda muito próximos das descrições "pitorescas" do mundo dosmalfeitores — velha tradição que remonta longe e se revigora na primeira metade doséculo XIX, no momento em que a percepção de outra forma de vida vem searticular sobre a de outra classe e outra espécie humana. Uma zoologia dassubespécies sociais, uma etnologia das civilizações de malfeitores, com seus ritos elíngua, se esboçam numa forma de paródia. Mas aí se manifesta entretanto otrabalho de constituição de uma nova objetividade onde o criminoso pertence a umatipologia ao mesmo tempo natural e desviante. A delinqüência, desvio patológico daespécie humana, pode ser analisada como síndromes mórbidas ou como grandesformas teratológicas. Com a classificação de Ferrus, temos uma das primeirasconversões da velha "etnografia" do crime em uma tipologia sistemática dosdelinqüentes. É uma análise rápida, é verdade, mas nela vemos funcionar claramenteo princípio de que a delinqüência deve ser especificada menos em função da lei queda norma. Três tipos de condenados: Há os que são dotados "de recursos intelectuais superiores à média de inteligênciaque estabelecemos", mas que se tornam perversos quer pelas "tendências de suaorganização" e "predisposição inata"; quer por uma "lógica perniciosa", por uma "moraliníqua", por uma "perigosa apreciação dos deveres sociais". Para esses seria necessário oisolamento de dia e de noite, o passeio solitário, e quando for preciso mantê-los emcontato com os outros, usar "uma máscara leve em tela metálica, parecida com as que seusam para cortar pedras ou na esgrima". A segunda categoria é feita de condenados"viciosos, limitados, embrutecidos ou passivos que são arrastados ao mal por indiferençapela vergonha como pelo bem, por covardia, por preguiça, digamos, e falta de resistênciaàs más incitações": o regime que lhes convém é mais de educação do que de repressão, ese possível de educação mútua: isolamento de noite, trabalho em comum de dia,conversas permitidas, só em voz alta, leituras em comum, seguidas de interrogaçõesrecíprocas, sancionadas por recompensas. Enfim, há os condenados "inaptos ouincapazes" que uma organização incompleta torna impróprios para qualquer ocupação queexija esforços pensados e força de vontade, que se encontram então na impossibilidadede sustentar a concorrência do trabalho com os operários inteligentes, e não tendo neminstrução bastante para conhecer os deveres sociais, nem inteligência bastante paracompreendê-los e combater seus instintos pessoais, são levados ao crime por sua própriaincapacidade. Para esses, a solidão só serviria para fomentar a inércia; devem portantoviver em comum, mas de maneira a formar grupos pouco numerosos, sempre estimuladospor ocupações coletivas, e submetidos a uma vigilância rígida.69Assim se estabelece progressivamente um conhecimento "positivo" dosdelinqüentes e de suas espécies, muito diferente da qualificação jurídica dos delitos ede suas circunstâncias: mas distinto também do conhecimento médico que permiteressaltar a loucura do indivíduo e apagar, conseqüentemente, o caráter delituoso doato. Ferrus enuncia claramente o princípio:Os criminosos considerados em massa são apenas loucos; haveria injustiça paracom esses últimos, se os confundíssemos com homens coincidentemente perversos.Nesse novo saber importa qualificar "cientificamente" o ato enquanto delito eprincipalmente o indivíduo enquanto delinqüente. Surge a possibilidade de umacriminologia.O correlativo da justiça penal é o próprio infrator, mas o do aparelhopenitenciário é outra pessoa; é o delinqüente, unidade biográfica, núcleo de"periculosidade", representante de um tipo de anomalia. E se é verdade que à detenção privativa de liberdade que o direito definira a prisão acrescentou o"suplemento" do penitenciário, este por sua vez introduziu um personagem a mais,que se meteu entre aquele que a lei condena e aquela que executa essa lei. Ondedesapareceu o corpo marcado, recortado, queimado, aniquilado do supliciado,apareceu o corpo do prisioneiro, acompanhado pela individualidade do"delinqüente", pela pequena alma do criminoso, que o próprio aparelho do castigofabricou como ponto de aplicação do poder de punir e como objeto do que aindahoje se chama a ciência penitenciária. Dizem que a prisão fabrica delinqüentes; éverdade que ela leva de novo, quase fatalmente, diante dos tribunais aqueles que lheforam confiados. Mas ela os fabrica no outro sentido de que ela introduziu no jogoda lei e da infração, do juiz e do infrator, do condenado e do carrasco, a realidadeincorpórea da delinqüência que os liga uns aos outros e, há um século e meio, ospega todos juntos na mesma armadilha.*A técnica penitenciária e o homem delinqüente são de algum modo irmãosgêmeos. Ninguém creia que foi a descoberta do delinqüente por uma racionalidadecientífica que trouxe para as velhas prisões o aperfeiçoamento das técnicaspenitenciárias. Nem tampouco que a elaboração interna dos métodos penitenciáriosterminou trazendo à luz a existência "objetiva" de uma delinqüência que a abstraçãoe a inflexibilidade judiciárias não podiam perceber. Elas apareceram as duas juntas eno prolongamento uma da outra como um conjunto tecnológico que forma e recortao objeto a que aplica seus instrumentos. E é essa delinqüência, formada nossubterrâneos do aparelho judiciário, ao nível das "obras vis" de que a justiça desviaos olhos, pela vergonha que sente de punir os que condena, é ela que se faz presenteagora nos tribunais serenos e na majestade das leis; ela é que tem que ser conhecida,avaliada, medida, diagnosticada, tratada, quando se proferem sentenças, é ela agora,essa anomalia, esse desvio, esse perigo inexorável, essa doença, essa forma deexistência, que deverão ser considerados ao se reelaborarem os códigos. Adelinqüência é a vingança da prisão contra a justiça. Revanche tão temível que pode fazer calar o juiz. É então que os criminologistas se impõem.Mas devemos não esquecer que a prisão, figura concentrada e austera de todasas disciplinas, não é um elemento endógeno no sistema penal definido entre osséculos XVIII e XIX. O tema de uma sociedade punitiva e de uma semiotécnicageral da punição que sustentou os códigos "ideológicos" — beccarianos oubenthamianos — não fazia apelo ao uso universal da prisão. Essa prisão vem deoutro lugar — dos mecanismos próprios a um poder disciplinar. Ora, apesar dessaheterogeneidade, os mecanismos e os efeitos da prisão se difundiram ao longo detoda a justiça criminal moderna; a delinqüência e os delinqüentes a infestaram toda.Será necessário procurar a razão dessa temível "eficácia" da prisão. Mas já podemosanotar uma coisa: a justiça penal definida no século XVIII pelos reformadorestraçava duas linhas de objetivação possíveis do criminoso, mas duas linhasdivergentes: uma era a série dos "monstros", morais ou políticos, caídos do pactosocial; outra, a do sujeito jurídico requalificado pela punição. Ora, o "delinqüente"permite justamente unir as duas linhas e constituir com a caução da medicina, dapsicologia ou da criminologia, um indivíduo no qual o infrator da lei e o objeto deuma técnica científica se superpõem — aproximadamente. Que o enxerto da prisãono sistema penal não tenha acarretado reação violenta de rejeição se deve semdúvida a muitas razões. Uma delas é que, ao fabricar delinqüência, ela deu à justiçacriminal um campo unitário de objetos, autentificado por "ciências" e que assim lhepermitiu funcionar num horizonte geral de "verdade".A prisão, essa região mais sombria do aparelho de justiça, é o local onde opoder de punir, que não ousa mais se exercer com o rosto descoberto, organizasilenciosamente um campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar emplena luz como terapêutica e a sentença se inscrever entre os discursos do saber.Compreende-se que a justiça tenha adotado tão facilmente uma prisão que não foraentretanto filha de seus pensamentos. Ela lhe era agradecida por isso.   

Vigiar e Punir -  Michel FoucaultOnde histórias criam vida. Descubra agora