A OSTENTAÇÃO DOS SUPLÍCIOS

1.4K 12 0
                                    

A ordenação de 1670 regeu, até à Revolução, as formas gerais da prática penal.Eis a hierarquia dos castigos por ela descritos:A morte, a questão com reserva de provas, as galeras, o açoite, a confissão pública,o banimento.As penas físicas tinham, portanto, uma parte considerável. Os costumes, anatureza dos crimes, o status dos condenados as faziam variar ainda mais.A pena de morte natural compreende todos os tipos de morte: uns podem sercondenados à forca, outros a ter a mão ou a língua cortada ou furada e ser enforcados emseguida; outros, por crimes mais graves, a ser arrebentados vivos e expirar na roda depoisde ter os membros arrebentados; outros a ser arrebentados até a morte natural, outros aser estrangulados e em seguida arrebentados, outros a ser queimados vivos, outros a serqueimados depois de estrangulados; outros a ter a língua cortada ou furada, e em seguidaqueimados vivos; outros a ser puxados por quatro cavalos, outros a ter a cabeça cortada,outros enfim a ter a cabeça quebrada.1 [E Soulatges, de passagem, acrescenta que hátambém penas leves, de que a Ordenação não fala]. satisfação à pessoa ofendida,admoestação, repreensão, prisão temporária, abstenção de um lugar, e enfim as penaspecuniárias - muitas ou confiscação.Não devemos no entanto nos enganar. Entre esse arsenal de horror e a práticacotidiana da penalidade, a margem era grande. Os suplícios não constituíam as penasmais freqüentes, longe disso. Sem dúvida para nossos olhos atuais a proporção deveredictos de morte, na penalidade da era clássica, pode parecer considerável: asdecisões do Châtelet durante o período de 1755 a 1785 comportam 9 a 10% de penascapitais - roda, forca ou fogueira2; em 260 sentenças, o Parlamento de Flandrespronunciou 39 condenações à morte, de 1721 a 1730 (e 26 em 500 entre 1781 e1790).3 Mas não se deve esquecer que os tribunais encontravam muitos meios deabrandar os rigores da penalidade regular, seja recusando-se a levar adianteprocessos quando as infrações eram exageradamente castigadas, seja modificando a qualificação do crime; às vezes também o próprio poder real indicava não aplicarestritamente tal ordenação particularmente severa.4 De qualquer modo, a maior partedas condenações era banimento ou multa: numa jurisprudência como a do Châtelet(que só conhecia delitos relativamente graves) o banimento representou, entre 1755e 1785, mais da metade das penas aplicadas. Ora, grande parte dessas penas nãocorporais era acompanhada a título acessório de penas que comportavam umadimensão de suplício: exposição, roda, coleira de ferro, açoite, marcação comferrete; era a regra para todas as condenações às galeras ou ao equivalente para asmulheres - a reclusão no hospital; o banimento era muitas vezes precedido pelaexposição e pela marcação com ferrete; a multa, às vezes, era acompanhada deaçoite. Não só nas grandes e solenes execuções, mas também nessa forma anexa éque o suplício manifestava a parte significativa que tinha na penalidade; qualquerpena um pouco séria devia incluir alguma coisa do suplício.Que é um suplício?Pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz [dizia Jaucourt]; e acrescentava: é umfenômeno inexplicável a extensão da imaginação dos homens para a barbárie e acrueldade.5Inexplicável, talvez, mas certamente não irregular nem selvagem. O suplício éuma técnica e não deve ser equiparado aos extremos de uma raiva sem lei. Umapena, para ser um suplício, deve obedecer a três critérios principais: em primeirolugar, produzir uma certa quantidade de sofrimento que se possa, se não medirexatamente, ao menos apreciar, comparar e hierarquizar; a morte é um suplício namedida em que ela não é simplesmente privação do direito de viver, mas a ocasião eo termo final de uma graduação calculada de sofrimentos: desde a decapitação -que reduz todos os sofrimentos a um só gesto e num só instante: o grau zero dosuplício - até o esquartejamento que os leva quase ao infinito, através doenforcamento, da fogueira e da roda, na qual se agoniza muito tempo; a mortesuplícioé a arte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em "mil mortes" eobtendo, antes de cessar a existência, the most exquisite agonies.6 O suplício repousana arte quantitativa do sofrimento. Mas não é só: esta produção é regulada. Osuplício faz correlacionar o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, otempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas. Há um código jurídico da dor; a pena, quando é supliciante,não se abate sobre o corpo ao acaso ou em bloco; ela é calculada de acordo comregras detalhadas: número de golpes de açoite, localização do ferrete em brasa,tempo de agonia na fogueira ou na roda (o tribunal decide se é o caso de estrangularo paciente imediatamente, em vez de deixá-lo morrer, e ao fim de quanto tempo essegesto de piedade deve intervir), tipo de mutilação a impor (mão decepada, lábios oulíngua furados). Todos esses diversos elementos multiplicam as penas e secombinam de acordo com os tribunais e os crimes: "A poesia de Dante posta emleis", dizia Rossi; um longo saber físico-penal, em todo caso. Além disso, o suplíciofaz parte de um ritual. É um elemento na liturgia punitiva, e que obedece a duasexigências. Em relação à vítima, ele deve ser marcante: destina-se, ou pela cicatrizque deixa no corpo, ou pela ostentação de que se acompanha, a tornar infame aqueleque é sua vítima; o suplício, mesmo se tem como função "purgar" o crime, nãoreconcilia; traça em tomo, ou melhor, sobre o próprio corpo do condenado sinais quenão devem se apagar; a memória dos homens, em todo caso, guardará a lembrançada exposição, da roda, da tortura ou do sofrimento devidamente constatados. E pelolado da justiça que o impõe, o suplício deve ser ostentoso, deve ser constatado portodos, um pouco como seu triunfo. O próprio excesso das violências cometidas éuma das peças de sua glória: o fato de o culpado gemer ou gritar com os golpes nãoconstitui algo de acessório e vergonhoso, mas é o próprio cerimonial da justiça quese manifesta em sua força. Por isso sem dúvida é que os suplícios se prolongamainda depois da morte: cadáveres queimados, cinzas jogadas ao vento, corposarrastados na grade, expostos à beira das estradas. A justiça persegue o corpo alémde qualquer sofrimento possível.O suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal: é uma produçãodiferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para a marcação das vítimas e amanifestação do poder que pune: não é absolutamente a exasperação de uma justiçaque, esquecendo seus princípios, perdesse todo o controle. Nos "excessos" dossuplícios, se investe toda a economia do poder.* O corpo supliciado se insere em primeiro lugar no cerimonial judiciário quedeve trazer à luz a verdade do crime.Na França, como na maior parte dos países europeus - com a notável exceçãoda Inglaterra - todo o processo criminal, até à sentença, permanecia secreto: ou sejaopaco não só para o público mas para o próprio acusado. O processo se desenrolavasem ele. ou pelo menos sem que ele pudesse conhecer a acusação, as imputações, osdepoimentos, as provas. Na ordem da justiça criminal, o saber era privilégioabsoluto da acusação. "O mais diligente e o mais secretamente que se puder fazer",dizia, a respeito da instrução, o edito de 1498. De acordo com a ordenação de 1670,que resumia, e em alguns pontos reforçava, a severidade da época precedente, eraimpossível ao acusado ter acesso às peças do processo, impossível conhecer aidentidade dos denuncia-dores, impossível saber o sentido dos depoimentos antes derecusar as testemunhas, impossível fazer valer, até os últimos momentos doprocesso, os fatos justificativos, impossível ter um advogado, seja para verificar aregularidade do processo, seja para participar da defesa. Por seu lado, o magistradotinha o direito de receber denúncias anônimas, de esconder ao acusado a natureza dacausa, de interrogá-lo de maneira capciosa, de usar insinuações.7 Ele constituía,sozinho e com pleno poder, uma verdade com a qual investia o acusado; e essaverdade, os juízes a recebiam pronta, sob a forma de peças e de relatórios escritos;para eles, esses documentos sozinhos comprovavam; só encontravam o acusado umavez para interrogá-lo antes de dar a sentença. A forma secreta e escrita do processoconfere com o principio de que em matéria criminal o estabelecimento da verdadeera para o soberano e seus juizes um direito absoluto e um poder exclusivo. Ayrault supunha que esse procedimento (jáestabelecida no que tange ao essencial no século XVI) tinha por origemo medo dos tumultos, das gritarias e aclamações que o povo normalmente faz, o medo deque houvesse desordem, violência e impetuosidade contra as partes talvez ate mesmocontra os juizes;o rei quereria mostrar com isso que a "força soberana" de que se origina o direito depunir não pode em caso algum pertencer à "multidão".8Diante da justiça do soberano, todas as vozes devem-se calar.Mas o segredo não impedia que, para estabelecer a verdade, se devesseobedecer a certas regras. O segredo implicava mesmo na definição rigorosa de ummodelo de demonstração penal. Toda uma tradição, que remontava ao meioambiente medieval, mas que os juristas da Renascença haviam largamentedesenvolvido, prescrevia o que deviam ser a natureza e a eficácia das provas. Aindano século XVIII encontravam-se regularmente distinções como as seguintes: asprovas verdadeiras, diretas ou legítimas (os testemunhos por exemplo) e as provasindiretas, conjeturais, artificiais (por argumento); ou ainda as provas manifestas, asprovas consideráveis, as provas imperfeitas ou ligeiras9; ou ainda: as provas"urgentes e necessárias" que não permitem duvidar da verdade do fato (são provas"plenas": assim duas testemunhas irrepreensíveis que a afirmassem ter visto oacusado com uma espada nua e ensangüentada na mão, a sair do lugar onde, algumtempo depois, foi encontrado o corpo do morto marcado por golpes de espada): osindícios próximos ou provas semiplenas. que se podem considerar verdadeirasenquanto o acusado não as destruir com uma prova contrária (prova "semiplena",como uma só testemunha ocular, ou ameaças de morte que precedem umassassinato); enfim os indícios longínquos ou "adminículos" que consistem apenasno parecer dos homens (opinião pública, fuga do suspeito, sua perturbação ao serinterrogado, etc.).10 Ora. essas distinções não são simplesmente sutilezas teóricas.Elas têm uma função operatória. Em primeiro lugar, porque cada um desses indícios,tomado em si mesmo e se permanece isolado, pode ter um tipo definido de efeitojudiciário: as provas plenas podem acarretar qualquer condenação; as semiplenas podem acarretar penas físicas infamantes. mas nunca a morte; os indíciosimperfeitos e leves bastam para fazer "decretar" o suspeito, para fazer contra eleinvestigações mais aprofundadas ou para lhe impor uma multa. Em segundo lugar,porque se combinam entre si de acordo com regras precisas de cálculo: duas provassemiplenas podem fazer uma prova completa: adminículos, desde que sejam vários econcordem, podem combinar-se para formar uma meia-prova: mas sozinhos, pornumerosos que sejam, não podem equivaler a uma prova completa. Temos entãouma aritmética penal meticulosa em muitos pontos, mas que deixa ainda margem amuitas discussões: podemos apoiar-nos, para dar uma sentença capital, numa únicaprova plena ou é preciso que ela seja acompanhada de outros indícios mais ligeiros?Dois indícios próximos são sempre equivalentes a uma prova plena? Não serianecessário admitir três deles ou combiná-los com os indícios longínquos? Háelementos que só podem ser indícios para certos crimes, em certas circunstâncias eem relação a certas pessoas (assim um testemunho é anulado se provém de umvagabundo; é, ao contrário, reforçado, se se trata "de uma pessoa de consideração"ou de um patrão a respeito de um delito doméstico). Aritmética modulada por umacasuística, que tem por função definir como se pode construir uma prova judicial.Por um lado esse sistema das "provas legais" faz da verdade no campo penal oresultado de uma arte complexa; obedece a regras que só os especialistas podemconhecer; e conseqüentemente reforça o princípio do segredo. "Não basta que o juiztenha a convicção que qualquer homem razoável pode ter... Nada mais errado queessa maneira de julgar que, na verdade, não passa de uma opinião mais ou menosfundamentada". Mas por outro lado ele cerceia o magistrado severamente; sem essaregularidade qualquer julgamento de condenação seria temerário, e pode-se dizer decerta maneira que é injusto mesmo se, na verdade, o acusado fosse culpado.11Chegará o dia em que a singularidade dessa verdade judicial parecerá escandalosa:como se a justiça não tivesse que obedecer às regras da verdade comum: "Que sediria de uma meia-prova nas ciências demonstráveis? Que seria uma meia-provageométrica ou algébrica?"12 Mas não devemos esquecer que essas exigênciasformais da prova jurídica eram um modo de controle interno do poder absoluto eexclusivo de saber.A informação penal escrita, secreta, submetida, para construir suas provas, a regras rigorosas, é uma máquina que pode produzir a verdade na ausência doacusado. E por essa mesma razão, embora no estrito direito isso não seja necessário,esse procedimento vai necessariamente tender à confissão. Por duas razões: emprimeiro lugar, porque esta constitui uma prova tão forte que não há nenhumanecessidade de acrescentar outras, nem de entrar na difícil e duvidosa combinaçãodos indícios; a confissão, desde que feita na forma correta, quase desobriga oacusador do cuidado de fornecer outras provas (em todo caso, as mais difíceis). Emseguida, a única maneira para que esse procedimento perca tudo o que tem deautoridade unívoca, e se torne efetivamente uma vitória conseguida sobre o acusado,a única maneira para que a verdade exerça todo o seu poder, é que o criminoso tomesobre si o próprio crime e ele mesmo assine o que foi sábia e obscuramenteconstruído pela informação.Não é bastante [como dizia Ayrault que não gostava nem um pouco dessesprocessos secretos) que os maus sejam justamente punidos. É preciso, se possível, queeles mesmos se julguem e se condenem.13No interior do crime reconstituído por escrito, o criminoso que confessa vemdesempenhar o papel de verdade viva. A confissão, ato do sujeito criminoso,responsável e que fala, é a peça complementar de uma informação escrita e secreta.Daí a importância dada à confissão por todo esse processo de tipo inquisitorial.Daí também as ambigüidades de seu papel. Por um lado, tenta-se fazê-lo entrarno cálculo geral das provas; ressalta-se que ela não passa de uma delas; ela não é aevidentia rei; assim como a mais forte das provas, ela sozinha não pode levar àcondenação, deve ser acompanhada de indícios anexos, e de presunções; pois jáhouve acusados que se declararam culpados de crimes que não tinham cometido; ojuiz deverá então fazer pesquisas complementares, se só estiver de posse daconfissão regular do culpado. Mas, por outro lado, a confissão ganha qualquer outraprova. Até certo ponto ela as transcende; elemento no cálculo da verdade, ela étambém o ato pelo qual o acusado aceita a acusação e reconhece que esta é bemfundamentada; transforma uma afirmação feita sem ele em uma afirmaçãovoluntária. Pela confissão, o próprio acusado toma lugar no ritual de produção deverdade penal. Como já dizia o direito medieval, a confissão torna a coisa notória emanifesta. A esta primeira ambigüidade se sobrepõe uma segunda: investiga-se de novo a confissão como prova particularmente forte, que exige para levar àcondenação apenas alguns indícios suplementares, que reduzem ao mínimo otrabalho de informação e a mecânica de demonstração; todas as formas possíveis decoerção serão utilizadas para obtê-la. Mas embora ela deva ser, no processo, acontrapartida viva e oral da informação escrita, a réplica desta, e como que suaautenticação por parte do acusado, será cercada de garantias e formalidades. Elaconserva alguma coisa de uma transação; por isso exige-se que seja "espontânea",que seja formulada diante do tribunal competente, que seja feita com todaconsciência, que não trate de coisas impossíveis, etc.14 Pela confissão, o acusado secompromete em relação ao processo; ele assina a verdade da informação.Essa dupla ambigüidade da confissão (elemento de prova e contrapartida dainformação; efeito de coação e transação semivoluntária) explica os dois grandesmeios que o direito criminal clássico utiliza para obtê-la: o juramento que se pede aoacusado antes do interrogatório (ameaça por conseguinte de ser perjuro diante dajustiça dos homens e diante da de Deus; e ao mesmo tempo, ato ritual decompromisso); a tortura (violência física para arrancar uma verdade que, dequalquer maneira, para valer como prova, tem que ser em seguida repetida, diantedos juizes, a título de confissão "espontânea"). No fim do século XVIII, a torturaserá denunciada como resto das barbáries de uma outra época: marca de umaselvageria denunciada como "gótica". É verdade que a prática da tortura remonta àInquisição, é claro, e mais longe ainda do que os suplícios dos escravos. Mas ela nãofigura no direito clássico como sua característica ou mancha. Ela tem seu lugarestrito num mecanismo penal complexo em que o processo de tipo inquisitorial temum lastro de elementos do sistema acusatório; em que a demonstração escrita precisade um correlato oral; em que as técnicas da prova administrada pelos magistrados semisturam com os procedimentos de provas que eram desafios ao acusado; em quelhe é pedido - se necessário pela coação mais violenta - que desempenhe noprocesso o papel do parceiro voluntário; em que se trata em suma de produzir averdade por um mecanismo de dois elementos - o do inquérito conduzido emsegredo pela autoridade judiciária e o do ato realizado ritualmente pelo acusado. Ocorpo do acusado, corpo que fala e, se necessário, sofre, serve de engrenagem aosdois mecanismos; é por isso que, enquanto o sistema punitivo clássico não for totalmente reconsiderado, haverá muito poucas críticas radicais da tortura.15 Commuito mais freqüência, simples conselhos de prudência:O interrogatório é um meio perigoso de chegar ao conhecimento da verdade; porisso os juizes não devem recorrer a ela sem refletir. Nada é mais equívoco. Há culpadosque têm firmeza suficiente para esconder um crime verdadeiro...; e outros, inocentes, aquem a força dos tormentos fez confessar crimes de que não eram culpados.16Pode-se a partir daí encontrar o funcionamento do interrogatório como suplícioda verdade. Em primeiro lugar, o interrogatório não é uma maneira de arrancar averdade a qualquer preço; não é absolutamente a louca tortura dos interrogatóriosmodernos; é cruel, certamente, mas não selvagem. Trata-se de uma práticaregulamentada, que obedece a um procedimento bem definido, com momentos,duração, instrumentos utilizados, comprimentos das cordas, peso dos chumbos,número de cunhas, intervenções do magistrado que interroga, tudo segundo osdiferentes hábitos, cuidadosamente codificado.17 A tortura é um jogo judiciárioestrito. E a esse título, mais longe do que às técnicas da Inquisição, ela se liga àsantigas provas que se utilizavam nos processos acusatórios: ordálias, duelosjudiciais, julgamentos divinos. Entre o juiz que ordena a tortura e o suspeito que étorturado, há ainda como uma espécie de justa: o "paciente" - é o termo pelo qual édesignado o supliciado - é submetido a uma série de provas, de severidadegraduada e que ele ganha "agüentando", ou perde confessando.18 Mas o juiz nãoimpõe a tortura sem, por seu lado, correr riscos (e não é só o perigo de ver morrer osuspeito); ele põe alguma coisa em jogo no torneio, que são os elementos de provaque já reuniu; pois a regra diz que, se o condenado "agüenta" e não confessa, omagistrado é obrigado a abandonar as acusações. O supliciado ganhou. Daí o hábito,que se introduzira para os casos mais graves, de impor suplício do interrogatório"com reserva de provas": nesse caso o juiz podia continuar, depois das torturas, afazer valer as presunções reunidas; o suspeito não era inocentado por sua resistência;mas pelo menos devia ele à sua vitória não mais poder ser condenado à morte. O juizconservava todas as cartas, menos a principal. Omnia citra mortem. Daí arecomendação que se faz muitas vezes aos juizes de não submeter a suplício dointerrogatório um suspeito contra o qual há convicção suficiente dos crimes maisgraves, pois se ele viesse a resistir à tortura, o juiz não teria mais o direito de lhe infligir a pena de morte, que ele merece, entretanto; nessa justa, a justiça perderia: seas provas são suficientespara condenar tal culpado à morte [não se deve] arriscar a condenação ao destino e aodesenlace de um suplício de interrogatório provisório que não leva a nada; pois afinal épara o bem-estar e o interesse público castigar para escarmento os crimes graves, atrozese capitais.19Sob a aparente pesquisa intensa de uma verdade urgente, encontramos natortura clássica o mecanismo regulamentado de uma prova; um desafio físico quedeve decidir sobre a verdade; se o paciente é culpado, os sofrimentos impostos pelaverdade não são injustos; mas ela é também uma prova de desculpa se ele forinocente. Sofrimento, confronto e verdade estão ligados uns aos outros na prática datortura; trabalham em comum o corpo do paciente. A investigação da verdade pelosuplício do "interrogatório" é realmente uma maneira de fazer aparecer um indício, omais grave de todos - a confissão do culpado; mas é também a batalha, é a vitóriade um adversário sobre o outro que "produz" ritualmente a verdade. A tortura parafazer confessar tem alguma coisa de inquérito, mas tem também de duelo.Do mesmo modo misturam-se aí um ato de instrução e um elemento depunição. E esse não é um de seus menores paradoxos. Com efeito, ela é definidacomo uma maneira de completar a demonstração quando "não há penas suficientesno processo". E é classificada entre as penas; e uma pena tão grave que, nahierarquia das punições, a Ordenação de 1670 a insere logo depois da morte. Comopode uma pena ser utilizada como um meio, se perguntará mais tarde. Como se podefazer valer a título de castigo o que deveria ser um processo de demonstração? Arazão está na maneira como, na época clássica, a justiça criminal fazia funcionar ademonstração da verdade. As diferentes partes da prova não constituíam outrostantos elementos neutros; não lhes cabia serem reunidas num feixe único para darema certeza final da culpa. Cada indício trazia consigo um grau de abominação. Aculpa não começava uma vez reunidas todas as provas: peça por peça, ela eraconstituída por cada um dos elementos que permitiam reconhecer um culpado.Assim, uma meia-prova não deixava inocente o suspeito enquanto não fossecompletada: fazia dele um meio-culpado; o indício, apenas leve, de um crime grave,marcava alguém como "um pouco" criminoso. Enfim, a demonstração em matéria penal não obedecia a um sistema dualista; verdadeiro ou falso; mas um princípio degradação contínua: um grau atingido na demonstração já formava um grau de culpae implicava conseqüentemente num grau de punição. O suspeito, enquanto tal,merecia sempre um certo castigo; não se podia ser inocentemente objeto de suspeita.A suspeita implicava, ao mesmo tempo, da parte do juiz um elemento dedemonstração, da parte do acusado a prova de uma certa culpa, e da parte da puniçãouma forma limitada de pena. Um suspeito que continuasse suspeito não estavainocentado por isso, mas era parcialmente punido. Quando se chegava a um certograu de presunção, podia-se então legitimamente executar uma prática que tinha umduplo papel: começar a punir em razão das indicações já reunidas; e servir-se desteinício de pena para extorquir o resto de verdade que ainda faltava. A torturajudiciária, no século XVIII, funciona nessa estranha economia em que o ritual queproduz a verdade caminha a par com o ritual que impõe a punição. O corpointerrogado no suplício constitui o ponto de aplicação do castigo e o lugar deextorsão da verdade. E do mesmo modo que a presunção é solidariamente umelemento de inquérito e um fragmento de culpa, o sofrimento regulado da tortura éao mesmo tempo uma medida para punir e um ato de instrução.*Ora, curiosamente, essa engrenagem dos dois rituais através do corpo continua,feita a prova e formulada a sentença, na própria execução da pena. E o corpo docondenado é novamente uma peça essencial no cerimonial do castigo público. Cabeao culpado levar à luz do dia sua condenação e a verdade do crime que cometeu. Seucorpo mostrado, passeado, exposto, supliciado, deve ser como o suporte público deum processo que ficara, até então, na sombra; nele, sobre ele, o ato de justiça devesetornar legível para todos. Essa manifestação atual e brilhante da verdade naexecução pública das penas toma, no século XVIII, vários aspectos:1) Fazer em primeiro lugar do culpado o arauto de sua própria condenação. Eleé encarregado, de algum modo, de proclamá-la e dessa maneira de atestar a verdade do que lhe foi reprovado: passeio pelas ruas, cartaz que lhe é pendurado nas costas,no peito ou na cabeça para lembrar a sentença; paradas em vários cruzamentos,leitura do documento de condenação, confissão pública à porta das igrejas, durante aqual o condenado reconhece solenemente seu crime:Descalço, de camisola, levando uma tocha, de joelhos dizer e declarar que com maldade,horrivelmente, traidoramente e com intenção premeditada, ele havia cometido o crimedetestável, etc.;exposição junto ao poste onde são lembrados os fatos e a sentença; mais umavez leitura da condenação ao pé do patíbulo; quer se trate simplesmente dopelourinho ou da fogueira e da roda, o condenado publica seu crime e a justiça queele é obrigado a fazer a si mesmo, levando-os fisicamente sobre o corpo.2) Prosseguir uma vez mais a cena da confissão. Dublar a proclamação forçadada confissão pública com um reconhecimento espontâneo e público. Estabelecer osuplício como momento da verdade. Fazer com que esses últimos instantes em que oculpado não tem mais nada a perder sejam ganhos para a luz plena da verdade. Otribunal podia mesmo decidir, depois da condenação, uma nova tortura para arrancaro nome dos eventuais cúmplices. Estava também previsto que no momento de subirao cadafalso o condenado podia pedir um tempo para fazer novas revelações. Opúblico esperava essa nova peripécia da verdade. Muitos aproveitavam isso paraganhar um pouco de tempo, como Michel Barbier, culpado de ataque a mão armada:Olhou desafiadoramente o cadafalso dizendo que não era para ele que tinhamerguido, já que era inocente; pediu primeiro para subir ao quarto onde apenas ficou adivagar durante meia hora, querendo sempre se justificar; depois, levado ao suplício, sobeao patíbulo decididamente, mas quando se vê despojado das vestes e preso na cruz,pronto a receber os golpes de barra, pede para subir uma segunda vez ao quarto e láfinalmente confessa o crime e declara mesmo que era culpado de outro assassinato.20O verdadeiro suplício tem por função fazer brilhar a verdade; e nisso elecontinua, até sob os olhos do público, o trabalho do suplício do interrogatório. Eleopõe à condenação a assinatura daquele que sofre. Um suplício bem sucedidojustifica a justiça, na medida em que publica a verdade do crime no próprio corpo dosupliciado. Exemplo do bom condenado foi François Billiard, caixa-geral do correio,que em 1772 havia assassinado a mulher; o carrasco queria esconder-lhe o rosto para defendê-lo dos insultos:Não me infligiram, disse ele, essa pena que mereci para não ser visto pelo público...Usava ainda o traje de luto pela mulher... calçava escarpins novos, tinha frisado os cabelose aplicara pó branco à pele, caminhava numa atitude tão modesta e imponente que aspessoas que haviam podido contemplá-lo mais de perto diziam que ele tinha que ser ou ocristão mais perfeito ou o maior de todos os hipócritas. O cartaz que levava no peito estavatorto, notaram que ele mesmo o arrumava, sem dúvida para que pudesse ser lido maisfacilmente.21A cerimônia penal, se cada um dos atores desempenha bem seu papel, tem aeficácia de uma longa confissão pública.3) Prender o suplício no próprio crime; estabelecer de um para o outro relaçõesdecifráveis. Exposição do cadáver do condenado no local do crime, ou num doscruzamentos mais próximos. Execução no próprio local em que o crime foracometido - como aquele estudante que em 1723 matara várias pessoas e para quemo tribunal de Nantes decidiu erguer um cadafalso em frente à porta do albergue ondeele cometera os assassinatos.22 Utilização de suplícios "simbólicos", em que a formada execução faz lembrar a natureza do crime: fura-se a língua dos blasfemadores,queimam-se os impuros, corta-se o punho que matou; às vezes faz-se o condenadoostentar o instrumento de seu crime - como Damiens, com a famosa faquinha quefoi coberta com enxofre e amarrada à mão culpada para queimar ao mesmo tempoque ele. Como dizia Vico, essa velha jurisprudência foi "toda uma poética".Enfim, encontramos às vezes a reprodução quase teatral do crime na execuçãodo culpado: mesmos instrumentos, mesmos gestos. Aos olhos de todos, a justiça fazos suplícios repetirem o crime, publicando-o em sua verdade e anulando-o aomesmo tempo na morte do culpado. Ainda no final do século XVIII, em 1772,encontram-se sentenças como a seguinte:Uma criada de Cambrai, que matara sua senhora, é condenada a ser levada aolugar do suplício numa carroça usada para retirar as imundícies em todas asencruzilhadas; lá haverá uma forca a cujo pé será colocada a mesma poltrona onde estavasentada a senhora Laleu, sua patroa, quando foi assassinada; e sendo colocada lá, oexecutor da alta justiça lhe cortará a mão direita e em sua presença a jogará ao fogo, e lhedará imediatamente depois quatro facadas com a faca utilizada por ela para assassinar asenhora Laleu, a primeira e a segunda na cabeça, a terceira no antebraço esquerdo, e a quarta no peito; feito o que, será pendurada e estrangulada na dita forca até à morte; edepois de duas horas seu cadáver será retirado, e a cabeça separada ao pé da dita forcasobre o dito cadafalso, com a mesma faca que ela utilizou para assassinar sua senhora, ea cabeça exposta sobre uma figura de vinte pés fora da porta da dita Cambrai, junto aocaminho que leva a Douai, e o resto do corpo posto num saco, e enterrado perto do ditoposte, a dez pés de profundidade.234) Enfim, a lentidão do suplício, suas peripécias, os gritos e o sofrimento docondenado têm, ao termo do ritual judiciário, o papel de uma derradeira prova.Como qualquer agonia, a que se desenrola no cadafalso diz uma certa verdade: mascom mais intensidade, na medida em que é pressionada pela dor; com mais rigor,pois está exatamente no ponto de junção do julgamento dos homens com o de Deus;com mais ostentação, pois se desenrola em público. O sofrimento do suplícioprolonga o da tortura preparatória; nesta, entretanto, o jogo não estava feito e a vidapodia ser salva; agora a morte é certa, trata-se de salvar a alma. O jogo eterno jácomeçou; o suplício antecipa as penas do além; mostra o que são elas; ele é o teatrodo inferno; os gritos do condenado, sua revolta, suas blasfêmias já significam seudestino irremediável. Mas as dores deste mundo podem valer também comopenitência para aliviar os castigos do além; um martírio desses, se é suportado comresignação, Deus não deixará de levar em conta. A crueldade da punição terrestre éconsiderada como dedução da pena futura; nela se esboça a promessa do perdão.Mas pode-se dizer ainda: um sofrimento tão vivo não seria sinal de que Deusabandonou o culpado nas mãos dos homens? E longe de garantir uma futuraabsolvição, ele representa a danação iminente; enquanto que, se o condenado morrerápido, sem agonia prolongada, não é isso a prova de que Deus quis protegê-lo eimpedir que ele caísse no desespero? Portanto, ambigüidade desse sofrimento quepode do mesmo modo significar a verdade do crime ou o erro dos juizes, a bondadeou a maldade do criminoso, a coincidência ou a divergência entre o julgamento doshomens e o de Deus. Daí essa extraordinária curiosidade que leva os espectadores ase comprimirem em torno do cadafalso e do sofrimento que este exibe; lêem-se aí ocrime e a inocência, o passado e o futuro, este mundo e o eterno. Momento deverdade que todos os espectadores interrogam: cada palavra, cada grito, a duração daagonia, o corpo que resiste, a vida que não quer ser arrancada, tudo isso vale por umsinal: o homem que viveu "seis horas na roda, não querendo que o executor, que o consolava e o encorajava sem dúvida por sua iniciativa, o deixasse um só instante";o que morre com os sentimentos mais cristãos, e demonstra o mais sinceroarrependimento; o que "expira na roda uma hora depois de lá ter sido posto; dizemque os espectadores de seu suplício ficaram comovidos com suas demonstraçõesexteriores de religião e de arrependimento"; o que revelara os mais claros sinais decontrição durante todo o trajeto até o cadafalso, e que, colocado vivo na roda, nãocessa de "dar gritos pavorosos"; ou ainda a mulher que "conservara o sangue frio atéo momento da leitura do julgamento, mas cuja cabeça começou então a ficarperturbada; e completamente louca, ao ser enforcada".24O ciclo está fechado: da tortura à execução, o corpo produziu e reproduziu averdade do crime. Ou melhor, ele constitui o elemento que, através de todo um jogode rituais e de provas, confessa que o crime aconteceu, que ele mesmo o cometeu,mostra que o leva inscrito em si e sobre si, suporta a operação do castigo e manifestaseus efeitos da maneira mais ostensiva. O corpo várias vezes supliciado sintesa arealidade dos fatos e a verdade da informação, dos atos de processo e do discurso docriminoso, do crime e da punição. Peça essencial, conseqüentemente, numa liturgiapenal em que deve constituir o parceiro de um processo organizado em torno dosdireitos formidáveis do soberano, do inquérito e do segredo.*O suplício judiciário deve ser compreendido também como um ritual político.Faz parte, mesmo num modo menor, das cerimônias pelas quais se manifesta opoder.A infração, segundo o direito da era clássica, além do dano que podeeventualmente produzir, além mesmo da regra que infringe, prejudica o direito doque faz valer a lei:Mesmo supondo que não haja prejuízo nem injúria ao indivíduo, se foi cometidaalguma coisa proibida por lei, é um delito que exige reparação, porque o direito do superioré violado e é injuriar a dignidade de seu caráter.25O crime, além de sua vítima imediata, ataca o soberano; ataca-o pessoalmente,pois a lei vale como a vontade do soberano; ataca-o fisicamente, pois a força da lei éa força do príncipe. Poispara que uma lei pudesse vigorar neste reino, era preciso necessariamente que emanassediretamente do soberano, ou pelo menos que fosse confirmada com o selo de suaautoridade.26A intervenção do soberano não é portanto uma arbitragem entre doisadversários; é mesmo muito mais que uma ação para fazer respeitar os direitos decada um; é uma réplica direta àquele que a ofendeu.O exercício do poder soberano na punição dos crimes é sem dúvida uma das partesessenciais na administração da justiça.27O castigo então não pode ser identificado nem medido como reparação dodano; deve haver sempre na punição pelo menos uma parte, que é a do príncipe; emesmo quando se combina com a reparação prevista, ela constitui o elemento maisimportante da liquidação penal do crime. Ora, essa parte que toca ao príncipe, em simesma, não é simples: ela implica, por um lado, na reparação do prejuízo que foitrazido ao reino (a desordem instaurada, o mau exemplo dado, são prejuízosconsideráveis que não têm comparação como o que é sofrido por um particular); masimplica também em que o rei procure a vingança de uma afronta feita à sua pessoa.O direito de punir será então como um aspecto do direito que tem o soberanode guerrear seus inimigos: castigar provém dessedireito de espada, desse poder absoluto de vida ou de morte de que trata o direito romanoao se referir ao merum imperium, direito em virtude do qual o príncipe faz executar sua leiordenando a punição do crime.28Mas o castigo é também uma maneira de buscar uma vingança pessoal epública, pois na lei a força físico-política do soberano está de certo modo presente:Vemos pela própria definição da lei que ela tende não só a defender mas também avingar o desprezo de sua autoridade com a punição daqueles que vierem a violar suasdefesas.29Na execução da pena mais regular, no respeito mais exato das formas jurídicas,reinam as forças ativas da vindita. O suplício tem então uma função jurídico-política. É um cerimonial parareconstituir a soberania lesada por um instante. Ele a restaura manifestando-a emtodo o seu brilho. A execução pública, por rápida e cotidiana que seja, se insere emtoda a série dos grandes rituais do poder eclipsado e restaurado (coroação, entradado rei numa cidade conquistada, submissão dos súditos revoltados): por cima docrime que desprezou o soberano, ela exibe aos olhos de todos uma força invencível.Sua finalidade é menos de estabelecer um equilíbrio que de fazer funcionar, até umextremo, a dissimetria entre o súdito que ousou violar a lei e o soberano todopoderosoque faz valer sua força. Se a reparação do dano privado ocasionado pelodelito deve ser bem proporcionada, se a sentença deve ser justa, a execução da penaé feita para dar não o espetáculo da medida, mas do desequilíbrio e do excesso; devehaver, nessa liturgia da pena, uma afirmação enfática do poder e de suasuperioridade intrínseca. E esta superioridade não é simplesmente a do direito, mas ada força física do soberano que se abate sobre o corpo de seu adversário e o domina:atacando a lei, o infrator lesa a própria pessoa do príncipe: ela - ou pelo menosaqueles a quem ele delegou sua força - se apodera do corpo do condenado paramostrá-lo marcado, vencido, quebrado. A cerimônia punitiva é "aterrorizante". Osjuristas do século XVIII, ao entrarem em polêmica com os reformadores, darão umainterpretação restritiva e "modernista" da crueldade física das penas: se sãonecessárias penas severas, é porque o exemplo deve ficar profundamente inscrito nocoração dos homens. Na realidade, entretanto, o que até então sustentara essa práticados suplícios não era a economia do exemplo, no sentido em que isso será entendidona época dos ideólogos (de que a representação da pena é mais importante do que ointeresse pelo crime), mas a política do medo: tornar sensível a todos, sobre o corpodo criminoso, a presença encolerizada do soberano. O suplício não restabelecia ajustiça; reativava o poder. No século XVII, e ainda no começo do XVIII, ele não era,com todo o seu teatro de terror, o resíduo ainda não extinto de uma outra época.Suas crueldades, sua ostentação, a violência corporal, o jogo desmesurado de forças,o cerimonial cuidadoso, enfim todo o seu aparato se engrenava no funcionamentopolítico da penalidade.Pode-se compreender a partir daí certas características da liturgia dos suplícios.E, antes de mais nada, a importância de um ritual que devia exibir seu fausto em público. Nada devia ser escondido desse triunfo da lei. Os episódios eramtradicionalmente os mesmos e no entanto as sentenças não deixavam de enumerá-los, de tal modo eles eram importantes no mecanismo penal; desfiles, paradas noscruzamentos, permanência à porta das igrejas, leitura pública da sentença, ajoelharse,declarações em voz alta de arrependimento pela ofensa feita a Deus e ao rei. Asquestões de precedência e etiqueta eram muitas vezes reguladas pelo própriotribunal:Os oficiais irão a cavalo segundo a ordem abaixo: a saber, à frente os dois sargentosde polícia; em seguida o paciente: depois deste, Bonfort e Le Corre caminharão juntos àsua esquerda, e darão lugar ao escrivão que os seguirá e desta maneira irão à praçapública do grande mercado em que será executado o julgamento.30Ora, esse cerimonial meticuloso é, de uma maneira muito explícita, não sójudicial mas militar. A justiça do rei mostra-se como uma justiça armada. O gládioque pune o culpado é também o que destrói os inimigos. Todo um aparato militarcerca o suplício: sentinelas, arqueiros, policiais, soldados. Pois importa,evidentemente, impedir qualquer evasão ou ato de violência; importa prevenirtambém, da parte do povo, um movimento de simpatia para salvar os condenados,ou uma onda de indignação para matá-los imediatamente: importa igualmentelembrar que em todo crime há uma espécie de sublevação contra a lei e que ocriminoso é um inimigo do príncipe. Todas essas razões - quer sejam de precauçãonuma determinada conjuntura, ou de função no desenrolar de um ritual - fazem daexecução pública mais uma manifestação de força do que uma obra de justiça; ouantes, é a justiça como força física, material e temível do soberano que é exibida. Acerimônia do suplício coloca em plena luz a relação de força que dá poder à lei.Como ritual da lei armada, em que o príncipe se mostra ao mesmo tempo, e demaneira indissociável, sob o duplo aspecto de chefe de justiça e chefe de guerra, aexecução pública tem duas faces: uma de vitória, outra de luta. De um lado, ela é odesfecho entre o criminoso e o soberano, cujo resultado é conhecidoantecipadamente; ela deve manifestar o poder sem medidas do soberano sobreaqueles que ele reduziu à impotência. A dissimetria, o irreversível desequilíbrio dasforças faziam parte das funções do suplício. Um corpo liquidado, reduzido à poeira ejogado ao vento, um corpo destruído parte por parte pelo poder infinito do soberano, constitui o limite não só ideal mas real do castigo. Atesta esse fato o famoso suplíciode la Massola, aplicado em Avignon, e que foi um dos primeiros a excitar aindignação dos contemporâneos: suplício aparentemente paradoxal, pois sedesenrola quase inteiramente depois da morte, e a justiça não faz outra coisa queestender sobre um cadáver seu teatro magnífico, a louvação ritual de suas forças: ocondenado é amarrado a um poste, com os olhos vendados; em toda a volta, sobre ocadafalso, estacas com ganchos de ferro.O confessor fala com o paciente ao ouvido, e depois que ele lhe dá a bênção,imediatamente o executor, com uma maça de ferro, das que são usadas nos matadouros,descarrega um golpe com toda a força na têmpora do infeliz, que cai morto: no mesmoinstante, o mortis exactor lhe corta o pescoço com uma grande faca, banhando-se desangue: num espetáculo horrível para os olhos; corta-lhe os nervos até os doscalcanhares, e em seguida abre-lhe o ventre de onde tira o coração, o fígado, o baço, ospulmões pendurando-os num gancho de ferro, e o corta e disseca em pedaços que põeem outros ganchos à medida que vai cortando, assim como se faz com os de um animal.Quem puder que olhe uma coisa dessas.31Na forma lembrada explicitamente do açougue, a destruição infinitesimal docorpo equivale aqui a um espetáculo: cada pedaço é exposto no balcão.O suplício se realiza num grandioso cerimonial de triunfo: mas comportatambém, como núcleo dramático em seu desenrolar monótono, uma cena deconfronto de inimigos: é a ação imediata e direta do carrasco sobre o corpo do"paciente". Ação codificada, é claro, pois o costume, e muitas vezes de maneiraexplícita, a sentença, prescrevem os principais episódios. Esta ação, no entanto,conserva alguma coisa da batalha. O executor não é simplesmente aquele que aplicaa lei, mas o que exibe a força; é o agente de uma violência aplicada à violência docrime, para dominá-la. Desse crime ele é o adversário material e físico. Adversárioora digno de piedade, ora encarniçado. Damhoudère se queixava, bem como muitoscontemporâneos seus, de que os carrascos praticavamtoda espécie de crueldade para com os pacientes malfeitores, maltratando-os, comempurrões e pontapés e matando-os como se tivessem animais sob suas mãos.32E durante muito tempo esse hábito persistirá.33 Há também alguma coisa dedesafio e de justa na cerimônia do suplício. Se o carrasco triunfa, se consegue fazer saltar com um golpe a cabeça que lhe mandaram abater, ele a mostra ao povo, põenano chão e saúda em seguida o público que o ovaciona muito, batendo palmas.34Ao contrário, se ele fracassa, se não consegue matar como devia, é passível depunição. Foi o caso do carrasco de Damiens, que, como não soubesse esquartejá-lode acordo com as regras, teve que cortá-lo com a faca; confiscaram, em proveito dospobres, os cavalos do suplício que lhe tinham sido prometidos. Alguns anos maistarde, o carrasco de Avignon fizera sofrer demais os três bandidos, aliás temíveis,que devia enforcar; os espectadores se aborrecem; denunciam-no; para puni-lo etambém para subtraí-lo à vindita popular, é preso.35 E, por trás dessa punição docarrasco inábil, encontramos uma tradição, ainda bem próxima: ela dizia que ocondenado seria perdoado se a execução fracassasse. Era um costume claramenteestabelecido em certas regiões.36 Muitas vezes o povo esperava que tal tradição fosseaplicada, e às vezes protegia um condenado que dessa maneira acabava escapando àmorte. Para fazer desaparecer tanto o costume quanto a expectativa, foi precisolembrar o adágio: "a força não perde sua presa"; foi necessário o cuidado deintroduzir nas sentenças capitais instruções explícitas: "pendurado e estrangulado atéa morte", "até à extinção da vida". E jurista como Serpillon ou Blackstone insistemem pleno século XVIII no fato de que o fracasso do carrasco não deve significar queo condenado salvou a vida.37 Havia algo da prova e do julgamento de Deus queainda se podia perceber na cerimônia da execução. Em sua confrontação com ocondenado, o executor era um pouco como o campeão do rei. Campeão entretantonão condenável e condenado: a tradição dizia, parece, que quando as cartas docarrasco haviam sido lacradas, não eram postas na mesa, mas jogadas à terra.Conhecem-se todas as proibições que cercam esse "ofício muito necessário", mas"contrário à natureza".38 Apesar de o carrasco ser, em certo sentido, o gládio do rei,partilhava da infâmia do adversário. O poder soberano que o obrigava a matar, e queagia através dele, não estava presente nele: não se identificava com sua fúria. Ejustamente nunca aparecia com tanta ostentação do que ao sustar eventualmente comuma carta de indulto o gesto do executor. O pouco tempo que comumente separava asentença da execução (muitas vezes algumas horas) fazia com que geralmente aremissão interviesse no último momento. Mas a cerimônia, com a lentidão de seuslances, havia sido organizada para permitir essa eventualidade.39 Os condenados a esperavam e, para fazer durar as coisas, pretendiam ainda, ao pé do cadafalso, terrevelações a fazer. O povo, quando a desejava, lembrava-a aos gritos, procurandoretardar o último momento, observando se o mensageiro vinha trazer a carta comlacre de cera verde, e, se necessário, sugeriam que ele estava chegando (foi o queaconteceu no momento em que eram executados os condenados por sublevaçãopopular ocasionada por raptos de crianças, em 3 de agosto de 1750). O soberano estápresente à execução, não só como o poder que vinga a lei, mas como o poder que écapaz de suspender tanto a lei quanto a vingança. Só ele como senhor deve decidirse lava as mãos ou as ofensas que lhe foram feitas; embora tenha conferido aostribunais o cuidado de exercer seu poder de justiça, ele não o alienou; conserva-ointegralmente para suspender a pena ou fazê-la valer.Deve-se conceber o suplício, tal como é ritualizado ainda no século XVIII,como um agente político. Ele entra logicamente num sistema punitivo, em que osoberano, de maneira direta ou indireta, exige, resolve e manda executar os castigos,na medida em que ele, através da lei, é atingido pelo crime. Em toda infração há umcrimen majestatis, e no menor dos criminosos um pequeno regicida em potencial. Eo regicida, por sua vez, não é nem mais nem menos que o criminoso total e absoluto,pois em vez de atacar, como qualquer delinqüente, uma decisão ou uma vontadeparticular do poder soberano ele ataca seu princípio na pessoa física do príncipe. Apunição do regicida deveria ser soma de todos os suplícios possíveis. Seria avingança infinita: as leis francesas, em todo caso, não previam pena fixa para essaespécie de monstruosidade. Foi preciso inventar a de Ravaillac combinando entre sias mais cruéis que tinham sido praticadas na França. Queriam imaginar ainda maisatrozes para Damiens. Houve projetos, mas foram considerados menos perfeitos.Retomou-se então a cena de Ravaillac. E temos que reconhecer que forammoderados, comparados com os suplícios que em 1584 o assassino de Guilherme deOrange teve que suportar, entregue a uma vingança sem fim.No primeiro dia, ele foi levado à praça onde encontrou uma caldeira d'água fervente,onde foi enfiado o braço com o qual desferira o golpe. No dia seguinte, o braço foi cortado,e, tendo caído a seus pés, chutou-o lá de cima do cadafalso sem pestanejar; no terceiro,foi atenazado, na frente, nos mamilos e na parte dianteira do braço; no quarto, foiigualmente atenazado nos braços por trás e nas nádegas; e assim consecutivamente, esse homem foi martirizado pelo espaço de dezoito dias. [No último, foi posto na roda eatado. Ao fim de seis horas ainda pedia água, que não lhe deram]. Finalmente pediram aomagistrado que autorizasse liquidá-lo por estrangulamento para que sua alma nãodesesperasse e se perdesse.40*Não há dúvida de que a existência dos suplícios se ligava a alguma coisa bemdiferente dessa organização interna. Rusche e Kirchheimer têm razão de ver aí oefeito de um regime e produção em que as forças de trabalho, e portanto o corpohumano, não têm a utilidade nem o valor de mercado que lhes serão conferidosnuma sociedade de tipo industrial. É certo também que o "desprezo" pelo corpo serefere a uma atitude geral em relação à morte; e nessa atitude, poder-se-ia tanto osvalores próprios ao cristianismo quanto uma situação demográfica e de certo modobiológica: as devastações da doença e da fome, os morticínios periódicos dasepidemias, a enorme mortalidade infantil, a precariedade dos equilíbriosbioeconômicos - tudo isso tornava a morte familiar e provocava em torno delarituais para integrá-la, torná-la aceitável e dar sentido à sua agressão permanente.Seria necessário também, para analisar esse longo período de legalidade dossuplícios, referir-se a fatos de conjuntura; não devemos esquecer que a ordenação de1670, que regulou a justiça criminal até às vésperas da Revolução, agravara aindaem certos pontos o rigor dos antigos editos: Pussort, que, entre os comissáriosencarregados de preparar os textos, representava as intenções do rei, a impuseradessa maneira, apesar de certos magistrados como Lamoignon: a multiplicidade dassublevações ainda no meio da era clássica, a ameaça de iminentes guerras civis, avontade do rei de fazer valer seu poder em prejuízo dos parlamentos explicam emgrande parte a persistência de um regime penal "duro".Para explicar o emprego do suplício como penalidade, não faltam razões geraise de algum modo externas, que esclarecem a possibilidade e a longa persistência daspenas físicas, a fraqueza e o caráter bastante isolado dos protestos feitos. Mas, sobreesse fundo, é preciso fazer aparecer sua função precisa. O suplício se inseriu tão fortemente na prática judicial, porque é revelador da verdade e agente do poder. Elepromove a articulação do escrito com o oral, do secreto com o público, do processode inquérito com a operação de confissão; permite que o crime seja reproduzido evoltado contra o corpo visível do criminoso; faz com que o crime, no mesmo horror,se manifeste e se anule. Faz também do corpo do condenado o local de aplicação davindita soberana, o ponto sobre o qual se manifesta o poder, a ocasião de afirmar adissimetria das forças. Veremos mais adiante que a relação verdade-poder éessencial a todos os mecanismos de punição, e se encontra nas práticascontemporâneas da penalidade - mas com uma forma totalmente diversa e comefeitos muito diferentes. O iluminismo logo há de desqualificar os suplíciosreprovando-lhes a "atrocidade". Termo pelo qual os suplícios eram muitas vezescaracterizados sem intenção crítica pelos próprios juristas. Talvez a noção de"atrocidade" seja uma das que melhor designam a economia do suplício na antigaprática penal. A atrocidade é em primeiro lugar um caráter próprio a certos grandescrimes: ela se refere ao número de leis naturais e positivas, divinas ou humanas queeles violam, à ostentação escandalosa ou ao contrário à esperteza secreta com queforam cometidos, ao nível social e ao status dos que são seus autores e vítimas, àdesordem que implicam ou ocasionam, ao horror que suscitam. Mas, na medida emque a punição põe em cena, aos olhos de todos, o crime em toda a sua severidade,deve assumir essa atrocidade: deve trazê-la à luz por meio de confissões, discursos,inscrições que a tornem pública; deve reproduzi-la em cerimônias que a apliquem aocorpo do culpado sob forma de humilhação e de sofrimento. A atrocidade é essaparte do crime que o castigo torna em suplício para fazer brilhar em plena luz: figurainerente ao mecanismo que produz, no próprio coração da punição, a verdade visíveldo crime. O suplício faz parte do procedimento que estabelece a realidade do que épunido. Mas não é só: a atrocidade de um crime é também a violência do desafiolançado ao soberano: é o que vai provocar da parte dele uma réplica que tem porfunção ir mais longe que essa atrocidade, dominá-la, vencê-la por um excesso que aanula. A atrocidade que paira sobre o suplício desempenha portanto um duplo papel:sendo princípio da comunicação do crime com a pena, ela é por outro lado aexasperação do castigo em relação ao crime. Realiza ao mesmo tempo a ostentaçãoda verdade e do poder; é o ritual do inquérito que termina e da cerimônia onde triunfa o soberano. E ela os une no corpo supliciado. A prática punitiva do séculoXIX procurará pôr o máximo de distância possível entre a pesquisa "serena" daverdade e a violência que não se pode eliminar inteiramente da punição. Será feito opossível para marcar a heterogeneidade que separa o crime que deve ser sancionadoe o castigo imposto pelo poder público. Entre a verdade e a punição só deverá haveragora uma relação de conseqüência legítima. Que o poder que sanciona não semacule mais por um crime maior que o que ele quis castigar. Que fique inocente dapena que inflige. "Tratemos de proscrever tais suplícios. Eram dignos só dosmonstros coroados que governaram os romanos".41 Mas de acordo com a práticapenal da época anterior, a proximidade do crime e do soberano no crime, a misturaque se fazia entre a "demonstração" e o castigo, não provinham de uma confusãobárbara: o que então se realizava era o mecanismo da atrocidade e suas ligaçõesnecessárias. A atrocidade da expiação organizava a redução ritual da infâmia pelotodo-poderoso.Que o erro e a punição se intercomuniquem e se liguem sob a forma deatrocidade, não era a conseqüência de uma lei de talião obscuramente admitida. Erao efeito, nos ritos punitivos, de uma certa mecânica do poder: de um poder que nãosó não se furta a se exercer diretamente sobre os corpos, mas se exalta e se reforçapor suas manifestações físicas; de um poder que se afirma como poder armado, ecujas funções de ordem não são inteiramente desligadas das funções de guerra; deum poder que faz valer as regras e as obrigações como laços pessoais cuja rupturaconstitui uma ofensa e exige vingança; de um poder para o qual a desobediência éum ato de hostilidade, um começo de sublevação, que não é em seu princípio muitodiferente da guerra civil; de um poder que não precisa demonstrar por que aplicasuas leis, mas quem são seus inimigos, e que forças descontroladas os ameaçam; deum poder que, na falta de uma vigilância ininterrupta, procura a renovação de seuefeito no brilho de suas manifestações singulares; de um poder que se retemperaostentando ritualmente sua realidade de superpoder.* Ora, entre todas as razões pelas quais os castigos que reivindicarão a honra deser "humanos" substituirão as penas que não tinham vergonha de ser "atrozes", háuma que devemos analisar imediatamente, pois é inerente ao próprio suplício: aomesmo tempo elemento de seu funcionamento e princípio de sua perpétua desordem.Nas cerimônias do suplício, o personagem principal é o povo, cuja presençareal e imediata é requerida para sua realização. Um suplício que tivesse sidoconhecido, mas cujo desenrolar houvesse sido secreto, não teria sentido. Procuravasedar o exemplo não só suscitando a consciência de que a menor infração corriasério risco de punição; mas provocando um efeito de terror pelo espetáculo do podertripudiando sobre o culpado:Em matéria criminal, o ponto mais difícil é a imposição da pena: é o objetivo e o fimdo processo, e o único fruto, pelo exemplo e pelo terror, quando é bem aplicada aoculpado.42Mas nessa cena de terror o papel do povo é ambíguo. Ele é chamado comoespectador: é convocado para assistir às exposições, às confissões públicas; ospelourinhos, as forcas e os cadafalsos são erguidos nas praças públicas ou à beirados caminhos; os cadáveres dos supliciados muitas vezes são colocados bem emevidência perto do local de seus crimes. As pessoas não só têm que saber, mastambém ver com seus próprios olhos. Porque é necessário que tenham medo; mastambém porque devem ser testemunhas e garantias da punição, e porque até certoponto devem tomar parte nela. Ser testemunhas é um direito que eles têm ereivindicam; um suplício escondido é um suplício de privilegiado, e muitas vezessuspeita-se que não se realize em toda a sua severidade. Todos protestam quando noúltimo instante se retira a vítima aos olhares dos espectadores. O caixa-geral docorreio, exposto porque matara a mulher, é em seguida subtraído à multidão;fazem-no subir numa carruagem de praça; se não estivesse bem escoltado, teria sidodifícil defendê-lo dos maus tratos da populaça que queria justiçá-lo.43Quando a mulher Lescombat é enforcada, tiveram a cautela de lhe esconder orosto com uma "espécie de coifa"; ela leva um "lenço sobre o colo e a cabeça, o quefaz o público murmurar muito e dizer que não era a Lescombat".44 O povo reivindicaseu direito de constatar o suplício e quem é supliciado.45 Tem direito também de tomar parte. O condenado, depois de ter andado muito tempo, exposto, humilhado,várias vezes lembrado do horror de seu crime, é oferecido aos insultos, às vezes aosataques dos espectadores. Na vingança do soberano, a do povo era chamada a seinsinuar. Não que esta seja o fundamento daquela e que o rei deva à sua maneiratraduzir a vindita do povo; é antes o povo que deve trazer sua participação ao reiquando este vai se "vingar de seus inimigos", até e principalmente quando essesinimigos estão no meio do povo. Há um tal qual "serviço de cadafalso" que o povodeve à vingança do rei. "Serviço" que fora previsto pelas velhas ordenações; o editode 1347 sobre os blasfemadores previa que seriam expostos no pelourinhodesde a primeira hora da manhã até à da morte. E se poderá lhes jogar nos olhos lama eoutras sujeiras, sem pedra ou outra coisa que fira... Na segunda vez, em caso dereincidência, queremos que seja posto no pelourinho em dia de mercado solene, e que olábio superior seja tendido e que apareçam os dentes.Sem dúvida, na época clássica, essa forma de participação ao suplício já não émais que uma tolerância, que se procura limitar: por causa das barbaridades queprovoca e da usurpação que faz do poder de punir. Mas ela pertencia muitointimamente à economia geral dos suplícios e não podia por isso ser totalmentereprimida. Ainda se vêem no século XVIII cenas como a do suplício de Montigny;enquanto o carrasco executava o condenado, as peixeiras de La Halle andavam comum boneco ao qual decepavam a cabeça.46 E várias vezes foi preciso "proteger" damultidão os criminosos que eram obrigados a desfilar lentamente no meio dela - aomesmo tempo para escarmento e alvo, ameaça eventual e presa prometida e aomesmo tempo proibida. O soberano, ao chamar a multidão para a manifestação deseu poder, tolerava um instante as violências que ele permitia como sinal defidelidade, mas às quais opunha imediatamente os limites de seus própriosprivilégios.Ora é nesse ponto que o povo, atraído a um espetáculo feito para aterrorizá-lo,pode precipitar sua recusa do poder punitivo, e às vezes sua revolta. Impedir umaexecução que se considera injusta, arrancar um condenado às mãos do carrasco,obter à força seu perdão, eventualmente perseguir e assaltar os executores, dequalquer maneira maldizer os juizes e fazer tumulto contra a sentença, isso tudo fazparte das práticas populares que contrariam, perturbam e desorganizam muitas vezes o ritual dos suplícios. Claro, isto sucede com freqüência, quando as condenaçõessancionam revoltas; foi o que sucedeu aos seqüestras de crianças quando a multidãoqueria impedir a execução de três supostos amotinados, condenados à forca nocemitério Saint-Jean porque há menos saídas e desfiladeiros para guardar47; ocarrasco amedrontado soltou um dos condenados; os arqueiros atiraram. Foi o casodepois da sublevação dos trigos em 1775; ou ainda em 1786, quando ostrabalhadores diaristas, depois de ter marchado sobre Versalhes, começaram alibertar os seus que tinham sido presos. Mas fora desses casos, em que o processo deagitação é provocado anteriormente e por razões que não se referem a uma medidade justiça penal, encontramos muitos exemplos em que a agitação é provocadadiretamente por um veredicto e uma execução. Pequenas mas inúmeras "emoções decadafalso".Em suas formas mais elementares, essas agitações começam com osencorajamentos, as aclamações às vezes, que acompanham o condenado até aexecução. Durante toda a sua longa caminhada, ele é sustentado pela compaixão dosque têm coração sensível, e os aplausos, a admiração, a inveja dos que são cruéis eduros.48 Se a multidão se comprime em torno do cadafalso, não é simplesmente paraassistir ao sofrimento do condenado ou excitar a raiva do carrasco: é também paraouvir aquele que não tem mais nada a perder maldizer os juizes, as leis, o poder, areligião. O suplício permite ao condenado essas saturnais de um instante, em quenada mais é proibido nem punível. Ao abrigo da morte que vai chegar, o criminosopode dizer tudo, e os assistentes aclamá-lo.Se houvesse anais para registrar escrupulosamente as últimas palavras dossupliciados, e se tivesse a coragem de percorrê-los, se se perguntasse a essa vilpopulação reunida por uma curiosidade cruel em torno dos cadafalsos, ela responderiaque não há culpado amarrado à roda que não morra acusando o céu da miséria que olevou ao crime, reprovando a barbárie de seus juizes, maldizendo o ministério dos altaresque os acompanha e blasfemando contra Deus de que ele é o instrumento.49Há nessas acusações, que só deveriam mostrar o poder aterrorizante dopríncipe, todo um aspecto de carnaval em que os papéis são invertidos, os poderesridicularizados e os criminosos transformados em heróis. A infâmia se transforma nocontrário; a coragem deles, seus gritos e lamentos só podem preocupar a lei. Fielding observa com pesar:Quando se vê tremer um condenado, não se pensa na vergonha. E menos ainda seele é arrogante.50Para o povo que aí está e olha, sempre existe, mesmo na mais extremadavingança do soberano, pretexto para uma revanche.Ainda mais se a condenação é considerada injusta. E se vê levar à morte umhomem do povo, por um crime que teria custado, a alguém mais bem nascido oumais rico, uma pena relativamente leve. Parece que certas práticas da justiça penalnão eram mais suportadas no século XVIII - e talvez desde há muito tempo -pelas camadas profundas da população. O que facilmente dava lugar pelo menos acomeços de agitação. Já que os mais pobres - observa um magistrado - não têmpossibilidade de ser ouvidos na justiça51, eles podem intervir fisicamente, onde querque ela se manifeste publicamente, onde quer que eles sejam chamados comotestemunhas e quase coadjutores dessa justiça, entrando violentamente nomecanismo punitivo e redistribuindo os efeitos dele; repetindo em outro sentido aviolência dos rituais punitivos. Agitação contra a diferença das penas segundo asclasses sociais: em 1781, o cura de Champré foi morto pelo senhor do local, quemuitos querem fazer passar por louco;os camponeses furiosos, porque eram extremamente ligados ao seu pastor, pareceramprimeiro dispostos a ir aos últimos excessos contra seu senhor, cujo castelo ameaçaramincendiar... Todo mundo reclamava com razão contra a indulgência do ministério queretirava à justiça os meios de punir um crime tão abominável.52Agitação também contra as penas excessivamente pesadas para os delitosfreqüentes e considerados pouco graves (latrocínio com arrombamento); ou contracastigos que punem certas infrações ligadas a condições sociais, como o furtodoméstico; a pena de morte para esse crime provocava muito descontentamento,porque os criados eram numerosos, e era difícil para eles, nesse assunto, provar suainocência, podiam ser facilmente vítimas da maldade dos patrões e a indulgência decertos senhores que fechavam os olhos tornava mais iníqua a sorte dos servidoresacusados, condenados e enforcados. A execução desses criados muitas vezes davalugar a protestos.53 Houve uma pequena revolta em Paris em 1761 por causa de uma criada que roubara um pedaço de tecido do patrão. Apesar da restituição, apesar dassúplicas, este não quis retirar a queixa: no dia da execução, o pessoal do bairroimpede o enforcamento, invade a loja do comerciante, e a saqueia; a empregada éfinalmente perdoada; mas uma mulher, que quase picotara a agulhadas o mau patrão,é banida por três anos.54No século XVIII recordam-se os grandes casos judiciais em que a opinião daspessoas esclarecidas intervém junto com a dos filósofos e certos magistrados: Calas,Sirven, o cavaleiro de La Barre. Mas fala-se menos de todas essas agitaçõespopulares em torno da prática punitiva. Raramente com efeito elas ultrapassaram oâmbito de uma cidade, às vezes de um bairro. Tiveram entretanto real importância.Porque esses movimentos, partindo de baixo, se propagaram, chamaram a atençãode gente mais bem colocada, que, ao chamar a atenção para eles, lhes deram umanova dimensão (assim, nos anos que precederam a Revolução, os casos de CatherineEspinas falsamente acusada de parricídio em 1785; os três condenados à roda deChaumont para quem Dupaty, em 1786, escrevera sua famosa memória, ou daquelaMarie Françoise Salmon que o parlamento de Rouen em 1782 condenara à fogueira,como envenenadora, mas que em 1786 continuava sem ser executada). E tambémporque essas agitações conservaram em torno da justiça penal e de suasmanifestações, que deveriam ter sido exemplares, uma inquietação permanente.Quantas vezes, para manter a calma em volta dos cadafalsos, foi necessário tomarprovidências "penosas para o povo" e precauções "humilhantes para a autoridade"?55Via-se bem que o grande espetáculo das penas corria o risco de retornar através dosmesmos a quem se dirigia. O pavor dos suplícios na realidade acendia focos deilegalismo: nos dias de execução, o trabalho era interrompido, as tabernas ficavamcheias, lançavam-se injúrias ou pedras ao carrasco, aos policiais e aos soldados;procurava-se apossar do condenado, para salvá-lo ou para melhor matá-lo; brigavase,e os ladrões não tinham ocasião melhor que o aperto e a curiosidade em torno docadafalso.56 Mas principalmente - e aí é que esses inconvenientes se tornavam umperigo político - em nenhuma outra ocasião do que nesses rituais, organizados paramostrar o crime abominável e o poder invencível, o povo se sentia mais próximo dosque sofriam a pena; em nenhuma outra ocasião ele se sentia mais ameaçado, comoeles, por uma violência legal sem proporção nem medida. A solidariedade de toda uma camada da população com os que chamaríamos pequenos delinqüentes -vagabundos, falsos mendigos, maus pobres, batedores de carteira, receptadores,passadores - se manifestou com muita continuidade; atestam esse fato a resistênciaao policiamento, a caça aos denunciantes, os ataques contra as sentinelas ou osinspetores.57 E era a ruptura dessa solidariedade que visava sempre mais a repressãopenal e policial. Muito mais do que o poder soberano podia essa solidariedade sairreforçada da cerimônia dos suplícios, dessa festa incerta onde a violência erainstantaneamente reversível. E os reformadores do século XVIII e XIX nãoesquecerão que as execuções, no fim das contas, simplesmente não assustavam opovo. Um de seus primeiros apelos foi exigir a suspensão delas.Para definir o problema político trazido pela intervenção popular na ação dosuplício, basta citar duas cenas. Uma data do fim do século XVII: situa-se emAvignon. Aí encontramos os principais elementos do teatro do tormento:confrontação física do carrasco e do condenado, a inversão da justa: o executorperseguido pelo povo, o condenado salvo pelos revoltosos e a violenta reviravolta damaquinaria penal. Ia ser enforcado um assassino chamado Pierre du Fort: váriasvezes ele "prendeu os pés nos degraus" e não pôde ficar suspenso no vazio.Vendo isso o carrasco lhe cobriu o rosto com seu gibão e lhe batia por baixo dojoelho, sobre o estômago e a barriga. Vendo o povo que ele o fazia sofrer demais epensando mesmo que o degolava com uma baioneta - tomado de compaixão pelopaciente e de fúria contra o carrasco, jogou pedras contra ele; enquanto isto, o carrascoabriu as duas escadas e jogou a vitima para baixo, saltando-lhe sobre os ombros episando-a enquanto a mulher do dito carrasco o puxava pelos pés por baixo da forca.Fizeram-lhe sair sangue da boca. Mas a chuva de pedras contra ele aumentou, houve atéalgumas que atingiram o enforcado na testa, o que obrigou o carrasco a subir a escada, deonde desceu com tanta precipitação que caiu no meio dela, e deu com a cabeça no chão.E a multidão se lançou sobre ele. Este se levantou com uma baioneta na mão, ameaçandomatar quem se aproximasse; mas, depois de cair e se levantar várias vezes, apanhoumuito do povo que o emporcalhou e o afogou no riacho, arrastando-o em seguida comgrande paixão e fúria até à Universidade e de lá até o cemitério dos Cordeliers. Seu criado,igualmente surrado, com a cabeça e o corpo machucados, foi levado ao hospital ondemorreu alguns dias depois. Entretanto alguns forasteiros e desconhecidos subiram aescada e cortaram a corda do enforcado, enquanto outros o recebiam por baixo depois deter ficado pendurado o tempo maior que um grande Miserere. E, ao mesmo tempo, quebraram a forca, e o povo fez em pedaços a escada do carrasco... As crianças atirarama forca com grande precipitação no Ródano. [Quanto ao supliciado, foi transportado paraum cemitério] para não ser apanhado pela justiça e de lá para a Igreja de Saint-Antoine. [Oarcebispo lhe concedeu o perdão, mandou transportá-lo para o hospital e recomendou aosoficiais que tomassem com ele um cuidado todo especial. Enfim, acrescenta o redator daata], mandamos fazer uma roupa nova, dois pares de meias, sapatos, vestimo-lo de novoda cabeça aos pés. Os nossos confrades lhe deram camisas, calções, luvas, e umaperuca.58A outra cena se situa em Paris, um século mais tarde. Foi em 1775, logo depoisda revolta sobre os trigos. A tensão, muito forte no povo, faz com que se deseje umaexecução "limpa". Entre o cadafalso e o público, cuidadosamente mantido àdistância, uma dupla fileira de soldados vigia, de um lado a execução iminente, deoutro a revolta possível. O contato está rompido: suplício público, mas onde a partedo espetáculo é neutralizada, ou melhor, reduzida à intimidação abstrata. Ao abrigodas armas, numa praça vazia, a justiça sobriamente executa. Se ela mostra a morteque dá, é de cima e de longe:Só às três horas da tarde tinham sido colocadas as duas forcas, de 18 pés de alturae sem dúvida para maior exemplo. Desde as duas horas, a praça de Grève e todos osarredores tinham sigo guarnecidos por destacamentos das diferentes tropas, tanto a péquanto a cavalo; os suíços e as guardas francesas continuavam suas patrulhas nas ruasadjacentes. Não foi permitida a entrada de ninguém na Grève durante a execução, e emtoda a volta se via uma dupla fileira de soldados, com a baioneta no fuzil, enfileirados decostas uns para os outros, de maneira que uns olhassem o exterior e outros o interior dapraça; os dois infelizes... gritavam ao longo do caminho que eram inocentes, econtinuavam a protestar da mesma maneira subindo na escada.59No abandono da liturgia dos suplícios, que papel tiveram os sentimentos dehumanidade para com os condenados? Houve de todo modo, de parte do poder, ummedo político diante do efeito desses rituais ambíguos.*Tal equívoco aparece claramente no que se poderia chamar "discurso de cadafalso". O rito da execução previa que o próprio condenado proclamasse suaculpa reconhecendo-a publicamente de viva voz, pelo cartaz que levava, e tambémpelas declarações que sem dúvida era obrigado a fazer. No momento da execuçãoparece que lhe deixavam além disso tomar a palavra, não para clamar sua inocência,mas para atestar seu crime e a justiça de sua condenação. As crônicas reportam umbom número de discursos desse gênero. Discursos reais? Sem dúvida, num certonúmero de casos. Discursos fictícios que em seguida se faziam circular paraexemplo e exortação? Foi sem dúvida ainda o caso mais freqüente. Que crédito darao que se conta, por exemplo, da morte de Marion Le Goff, famosa chefe dequadrilha na Bretanha em meados do século XVIII? Ela teria gritado do alto docadafalso:Pai e mãe que me ouvem, guardai e ensinai bem vossos filhos; fui em minha infânciamentirosa e preguiçosa; comecei roubando uma faquinha de seis réis... depois assalteimascates, mercadores de gado; enfim comandei uma quadrilha de ladrões e por issoestou aqui. Dizei isso a vossos filhos e que ao menos lhes sirva de exemplo.60Tal discurso se parece demais, até nos termos, da moral tradicionalmenteencontrada nos folhetins, nos pasquins e na literatura popular, para que não sejaapócrifo. Mas a existência do gênero "últimas palavras de um condenado" é em simesma significativa. A justiça precisava que sua vítima autenticasse de algum modoo suplício que sofria. Pedia-se ao criminoso que consagrasse ele mesmo sua própriapunição proclamando o horror de seus crimes; faziam-no dizer, como JeanDominiqueLanglade, três vezes assassino:Escutai todos minha ação horrível, infame e lamentável, cometida na cidade deAvignon, onde minha lembrança é execrável, ao violar sem humanidade os direitossagrados da amizade.61De um certo ponto de vista, o folhetim e o canto do morto são a continuaçãodo processo; ou, antes, eles continuam o mecanismo pelo qual o suplício fazia passara verdade secreta e escrita do processo para o corpo, para o gesto e as palavras docriminoso. A justiça precisava desses apócrifos para se fundamentar na verdade.Suas decisões eram assim cercadas de todas essas "provas" póstumas. Aconteciatambém que eram publicadas narrativas de crimes e de vidas infames, a título depura propaganda, antes da qualquer processo e para forçar a mão de uma justiça que se suspeitava de ser excessivamente tolerante. A fim de desacreditar oscontrabandistas, a "Compagnie des Fermes" publicava "boletins" contando oscrimes deles: em 1768, contra um certo Montagne que estava à frente de um bando,ela distribui folhetins de que diz o próprio redator:Foram-lhe atribuídos alguns roubos cuja verdade é bastante incerta...;representaram Montagne como uma besta fera, uma segunda hiena que tinha que sercaçada; como as cabeças no Auvergne andavam quentes, a idéia pegou.62Mas o efeito e o uso dessa literatura eram equívocos. O condenado se tornavaherói pela enormidade de seus crimes largamente propalados, e às vezes pelaafirmação de seu arrependimento tardio. Contra a lei, contra os ricos, os poderosos,os magistrados, a polícia montada ou a patrulha, contra o fisco e seus agentes, eleaparecia como alguém que tivesse travado um combate em que todos sereconheciam facilmente. Os crimes proclamados elevavam à epopéia lutasminúsculas que as trevas acobertavam todos os dias. Se o condenado era mostradoarrependido, aceitando o veredicto, pedindo perdão a Deus e aos homens por seuscrimes, era visto purificado; morria, à sua maneira, como um santo. Mas até suairredutibilidade lhe dava grandeza: não cedendo aos suplícios, mostrava uma forçaque nenhum poder conseguia dobrar:No dia da execução, poucos acreditarão nisto: viram-me sem emoção afazerconfissão pública, sentei-me enfim sobre a cruz sem mostrar nenhum temor.63Herói negro ou criminoso reconciliado, defensor do verdadeiro direito ou forçaindomável, o criminoso dos folhetins, das novelas, dos almanaques, das bibliotecasazuis64, representa sob a moral aparente do exemplo que não deve ser seguido todauma memória de lutas e confrontos. Já houve condenado que, depois da morte, setornaram uma espécie de santos, de memória venerada e túmulo respeitado.65 Algunspassaram quase inteiramente para o lado do herói positivo. Para outros a glória e aabominação não estavam dissociadas, mas coexistiam muito tempo ainda, numafigura reversível. Em toda essa literatura de crimes, que prolifera em torno dealgumas grandes silhuetas66, não se deve ver certamente nem uma "expressãopopular" em estado puro, nem tampouco uma ação combinada de moralização epropaganda, vinda de cima; era um lugar em que se encontravam dois investimentosda prática penal - uma espécie de frente de luta em torno do crime, de sua punição e lembrança. Se esses relatos podem ser impressos e postos em circulação, écertamente porque se esperam deles efeitos de controle ideológico67, fábulasverídicas da pequena história. Mas se são recebidos com tanta atenção, se fazemparte das leituras de base das classes populares, é porque elas aí encontram não sólembranças mas pontos de apoio; o interesse de "curiosidade" é também uminteresse político. De modo que esses textos podem ser lidos como discursos comduas faces nos fatos que contam, na divulgação que dão a eles e na glória queconferem a esses criminosos designados como "ilustres", e sem dúvida nas própriaspalavras que empregam seria preciso estudar o uso de categorias como as de"desgraça", "abominações", ou os qualificativos de "famoso", "lamentável", emrelatos como "História da vida, grandes roubos e espertezas de Guilleri e seuscompanheiros e seu fim lamentável e desgraçado".68É preciso sem dúvida aproximar dessa literatura as "emoções de cadafalso"onde se defrontavam através do corpo do supliciado o poder que condenava e o povoque era testemunha, participante, a vítima eventual e "eminente" daquela execução.A seqüência de uma cerimônia que canalizava mal as relações de poder quepretendia ritualizar. Foi invadido por uma massa de discursos, que continuava omesmo confronto; a proclamação póstuma dos crimes justificava a justiça, mastambém glorificava o criminoso. Por isso os reformadores do sistema penal logopediram a supressão desses folhetins.69 Por isso houve, no meio do povo, um tãogrande interesse por aquilo que desempenhava um pouco o papel da epopéia menore cotidiana das ilegalidades. Por isso eles perderam importância à medida que semodificou a função política da ilegalidade popular.E desapareceram à medida que se desenvolveu uma literatura do crimetotalmente diferente: uma literatura em que o crime é glorificado, mas porque é umadas belas-artes, porque só pode ser obra de seres de exceção, porque revela amonstruosidade dos fortes e dos poderosos, porque a perversidade é ainda umamaneira de ser privilegiado: do romance negro a Quincey, ou do Château d'Otrantea Baudelaire, há toda uma reescrita estética do crime, que é também a apropriaçãoda criminalidade sob formas aceitáveis. É, aparentemente, a descoberta da beleza eda grandeza do crime; na realidade é a afirmação de que a grandeza também temdireito ao crime e se torna mesmo privilégio dos que são realmente grandes. Os belos assassinatos não são para os pobres coitados de ilegalidade. Quanto à literaturapolicial, a partir de Gaboriau, ela dá seqüência a esse primeiro deslocamento: porsuas astúcias, sutilezas e extrema vivacidade de sua inteligência, o criminoso tornouseinsuspeitável; e a luta entre dois puros espíritos - o de assassino e o detetive -constituirá a forma essencial do confronto. Estamos muito longe daqueles relatosque detalhavam a vida e as más ações do criminoso, que o faziam confessar elemesmo seus crimes e que contavam com minúcias, o suplício sofrido: passou-se daexposição dos fatos ou da confissão ao lento processo da descoberta; do momento dosuplício à fase do inquérito; do confronto físico com o poder à luta intelectual entreo criminoso e o inquisidor. Não são simplesmente os folhetins que desaparecem aonascer a literatura policial; é a glória do malfeitor rústico, e é a sombria heroicizaçãopelo suplício. O homem do povo agora é simples demais para ser protagonista dasverdades sutis. Nesse novo gênero, não há mais heróis populares nem grandesexecuções; os criminosos são maus, mas inteligentes; e se há punição, não hásofrimento. A literatura policial transpõe para outra classe social aquele brilho deque o criminoso fora cercado. São os jornais que trarão à luz nas colunas dos crimese ocorrências diárias a mornidão sem epopéia dos delitos e punições. Está feita adivisão: que o povo se despoje do antigo orgulho de seus crimes: os grandesassassinatos tornaram-se o jogo silencioso dos sábios.



Vigiar e Punir -  Michel FoucaultOnde histórias criam vida. Descubra agora