A COMPOSIÇÃO DAS FORÇAS

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  "Comecemos destruindo o antigo preconceito segundo o qual pensava-se aumentara força de uma tropa aumentando-lhe a profundidade. Todas as leis físicas sobre omovimento tornam-se quimeras quando queremos adaptá-las à tática.46Desde o fim do século XVII, o problema técnico da infantaria foi de libertar-se do modelo físico da massa. Armada de lanças e mosquetões — lentos, imprecisos,que não permitiam ajustar um alvo e mirar — uma tropa era usada ou como umprojétil, ou como um muro ou uma fortaleza: "a temível infantaria do exército daEspanha"; a repartição dos soldados nessa massa era feita principalmente segundosua antigüidade e valentia; no centro, encarregados de fazer peso e volume, de dardensidade ao corpo, os mais novatos; na frente, nos ângulos ou pelos lados, ossoldados mais corajosos ou reputados os mais hábeis. Passou-se no decorrer daépoca clássica a um jogo de articulações minuciosas. A unidade — regimento,batalhão, seção, mais tarde "divisão"47 — torna-se uma espécie de máquina de peçasmúltiplas que se deslocam em relação umas às outras para chegar a umaconfiguração e obter um resultado específico. As razões dessa mudança? Algumassão econômicas: tornar útil cada indivíduo e rentável a formação, a manutenção, oarmamento das tropas; dar a cada soldado, unidade preciosa, um máximo deeficiência. Mas essas razões econômicas só puderam se tornar determinantes a partirde uma transformação técnica: a invenção do fuzil48: mais preciso, mais rápido que omosquete, valorizava a habilidade do soldado; mais capaz de atingir um alvodeterminado, permitia explorar a potência de fogo ao nível individual; einversamente fazia de cada soldado um alvo possível, exigindo pela mesma razãomaior mobilidade; e assim ocasionava o desaparecimento de uma técnica das massasem proveito de uma arte que distribuía as unidades e os homens ao longo de linhasextensas, relativamente flexíveis e móveis. Daí a necessidade de encontrar umaprática calculada das localizações individuais e coletivas, dos deslocamentos degrupos ou de elementos isolados, das mudanças de posição, de passagem de umadisposição a outra; enfim, de inventar uma maquinaria cujo princípio não seja mais amassa móvel ou imóvel, mas uma geometria de segmentos divisíveis cuja unidadede base é o soldado móvel com seu fuzil49; e, acima do próprio soldado, os gestosmínimos, os tempos elementares de ação, os fragmentos de espaços ocupados oupercorridos.Mesmos problemas ao se constituir uma força produtiva cujo efeito deve sersuperior à soma das forças elementares que a compõem:Que o dia de trabalho combinado adquira essa produtividade superior multiplicandoa potência mecânica do trabalho, estendendo sua ação no espaço ou diminuindo o campo de produção em relação à sua escala, mobilizando nos momentos críticos grandesquantidades de trabalho... a força específica do dia combinado, é uma força social dotrabalho ou uma força do trabalho social. Nasce da própria cooperação.50Surge assim uma exigência nova a que a disciplina tem que atender: construiruma máquina cujo efeito será elevado ao máximo pela articulação combinada daspeças elementares de que ela se compõe. A disciplina não é mais simplesmente umaarte de repartir os corpos, de extrair e acumular o tempo deles, mas de compor forçaspara obter um aparelho eficiente. Essa exigência se traduz de várias maneiras.1) O corpo singular torna-se um elemento, que se pode colocar, mover,articular com outros. Sua coragem ou força não são mais as variáveis principais queo definem; mas o lugar que ele ocupa, o intervalo que cobre, a regularidade, a boaordem segundo as quais opera seus deslocamentos. O homem de tropa é antes detudo um fragmento de espaço móvel, antes de ser uma coragem ou uma honra.Caracterização do soldado por Guibert:Quando está sob as armas, ocupa dois pés em seu maior diâmetro, ou seja,tomando-o de um extremo ao outro, e cerca de um pé em sua maior espessura, tomada dopeito aos ombros, a que se deve acrescentar um pé de intervalo real entre ele e o homemseguinte; o que dá dois pés em todos os sentidos por soldado e indica que uma tropa deinfantaria em batalha ocupa, seja numa frente seja em profundidade, tantos passosquantas filas tem.51Redução funcional do corpo. Mas também inserção desse corpo-segmento emtodo um conjunto com o qual se articula. O soldado cujo corpo foi treinado parafuncionar peça por peça para operações determinadas deve por sua vez formarelemento num mecanismo de outro nível. Os soldados serão instruídosum a um, depois dois a dois, depois em maior número... Será observado para o manejodas armas, quando os soldados tiverem sido instruídos separadamente, fazê-los executá-lo dois a dois, e fazê-los trocar de lugar alternadamente para que o da esquerda aprenda ase regular pelo da direita.52O corpo se constitui como peça de uma máquina multissegmentar.2) São também peças as várias séries cronológicas que a disciplina devecombinar para formar um tempo composto. O tempo de uns deve-se ajustar aotempo de outros de maneira que se possa extrair a máxima quantidade de forças de cada um e combiná-la num resultado ótimo. Servan sonhava assim com um aparelhomilitar que cobriria todo o território da nação e em que cada um estaria ocupado seminterrupção mas de maneira diferente segundo o segmento evolutivo, a seqüênciagenética em que se encontrasse. A vida militar começaria na mais tenra idade,quando se ensinaria às crianças, em "moradas militares", o ofício das armas; elaterminaria nessas mesmas moradas, quando os veteranos, até seu último dia,ensinariam as crianças, mandariam os recrutas fazer manobras, presidiriam aosexercícios dos soldados, os fiscalizariam quando executassem obras de interessepúblico, e enfim fariam reinar a ordem no país, enquanto a tropa se batia nasfronteiras. Não há um só momento da vida de que não se possa extrair forças, desdeque se saiba diferenciá-lo e combiná-lo com outros. Da mesma maneira nas grandesoficinas apela-se para as crianças e os velhos; pois eles têm certas capacidadeselementares para as quais não é necessário utilizar operários que têm várias outrasaptidões; além disso constituem mão-de-obra barata; enfim, se trabalham, não sãodependentes de ninguém:A humanidade laboriosa, dizia um recebedor de impostos a respeito de umaempresa de Angers, pode encontrar nessa manufatura, da idade de dez anos até àvelhice, recursos contra a ociosidade e a miséria que é conseqüência desta.53Mas é sem dúvida no ensino primário que esse ajustamento das cronologiasdiferentes será mais útil. Do século XVII até a introdução, no começo do XIX, dométodo Lancaster, o mecanismo complexo da escola mútua se construirá umaengrenagem depois da outra: confiaram-se primeiro aos alunos mais velhos tarefasde simples fiscalização, depois de controle do trabalho, em seguida, de ensino; eentão no fim das contas, todo o tempo de todos os alunos estava ocupado sejaensinando seja aprendendo. A escola torna-se um aparelho de aprender onde cadaaluno, cada nível e cada momento, se estão combinados como deve ser, sãopermanentemente utilizados no processo geral de ensino. Um dos grandespartidários da escola mútua dá a medida desse progresso:Numa escola de 360 crianças, o professor que quisesse instruir cada aluno por suavez durante uma sessão de três horas só poderia dar meio minuto a cada um. Pelo novométodo, todos os 360 alunos escrevem, lêem ou contam durante duas horas e meia cadaum.543) Essa combinação cuidadosamente medida das forças exige um sistemapreciso de comando. Toda a atividade do indivíduo disciplinar deve ser repartida esustentada por injunções cuja eficiência repousa na brevidade e na clareza; a ordemnão tem que ser explicada, nem mesmo formulada; é necessário e suficiente queprovoque o comportamento desejado. Do mestre de disciplina àquele que lhe ésujeito, a relação é de sinalização: o que importa não é compreender a injunção, masperceber o sinal, reagir logo a ele, de acordo com um código mais ou menosartificial estabelecido previamente. Colocar os corpos num pequeno mundo de sinaisa cada um dos quais está ligada uma resposta obrigatória e só uma: técnica dotreinamento queexclui despoticamente em tudo a menor representação, e o menor murmúrio; o soldadodisciplinado começa a obedecer ao que quer que lhe seja ordenado; sua obediência épronta e cega; a aparência de indocilidade, o menor atraso seria um crime.55O treinamento das escolares deve ser feito da mesma maneira; poucaspalavras, nenhuma explicação, no máximo um silêncio total que só seriainterrompido por sinais — sinos, palmas, gestos, simples olhar do mestre, ou aindaaquele pequeno aparelho de madeira que os Irmãos das Escolas Cristãs usavam; erachamado por excelência o "Sinal" e devia significar em sua brevidade maquinai aomesmo tempo a técnica do comando e a moral da obediência.O primeiro e principal uso do sinal é atrair de uma só vez todos os olhares dosescolares para o mestre e fazê-los ficar atentos ao que ele lhes quer comunicar. Assim,toda vez que este quiser chamar a atenção das crianças e fazer parar qualquer exercício,baterá uma vez. Um bom escolar, toda vez que ouvir o ruído do sinal pensará ouvir a vozdo mestre ou antes a voz de Deus mesmo que o chame pelo nome. Entrará então nossentimentos do jovem Samuel, dizendo com ele no fundo de sua alma: Senhor, eis-meaqui.O aluno deverá aprender o código dos sinais e atender automaticamente a cadaum deles.Feita a oração, o mestre dará uma pancada de sinal, olhando a criança que quermandar ler, lhe fará sinal de começar. Para fazer parar o que está lendo, dará umapancada de sinal... Para fazer sinal ao que está lendo de se corrigir, quando pronuncioumal uma letra, uma sílaba ou uma palavra, dará duas pancadas sucessivamente eseguidas. Se, após se ter corrigido, ele não recomeça na palavra que pronunciou mal, porque leu várias depois dela, o mestre dará três pancadas sucessivamente uma emseguida da outra para lhe fazer sinal de recuar de algumas palavras e continuará a fazeresse sinal, até o escolar chegar à sílaba ou à palavra que pronunciou mal.56A escola mútua levará ainda mais longe esse controle dos comportamentospelo sistema dos sinais a que se tem que reagir imediatamente. Até as ordens verbaisdevem funcionar como sinalização:Entrem em seus bancos. À palavra Entrem, as crianças colocam com ruído a mãodireita sobre a mesa e ao mesmo tempo passam a perna para dentro do banco; àspalavras em seus bancos, eles passam a outra perna e se sentam diante das lousas...Pegar-lousas, à palavra pegar, as crianças levam a mão direita ao barbante que servepara suspender a lousa ao prego que está diante deles, e com a esquerda pegam a lousapelo meio; à palavra lousas, eles a soltam e a colocam sobre a mesa.57Em resumo, pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos corpos quecontrola, quatro tipos de individualidade, ou antes uma individualidade dotada dequatro características: é celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pelacodificação das atividades), é genética (pela acumulação do tempo), é combinatória(pela composição das forças). E, para tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constróiquadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinaçãodas forças, organiza "táticas". A tática, arte de construir, com os corpos localizados,atividades codificadas e as aptidões formadas, aparelhos em que o produto dasdiferentes forças se encontra majorado por sua combinação calculada é sem dúvida aforma mais elevada da prática disciplinar. Nesse saber, os teóricos do século XVIIIviam o fundamento geral de toda a prática militar, desde o controle e o exercício doscorpos individuais, até à utilização das forças específicas às multiplicidades maiscomplexas. Arquitetura, anatomia, mecânica, economia do corpo disciplinar;aos olhos da maior parte dos militares, a tática não passa de um ramo da vasta ciência daguerra; aos meus, ela é a base dessa ciência; ela é a própria ciência, pois ensina aconstituir as tropas, a ordená-las, a movê-las, a mandá-las combater; pois só ela podecompletar o número e manejar a multidão; ela incluirá enfim o conhecimento dos homens,das armas, das tensões, das circunstâncias, pois são todos esses conhecimentos reunidosque devem determinar esses movimentos.58 [Ou ainda]: Esse termo (tática)... dá a idéia daposição respectiva dos homens que compõem uma tropa, das diversas tropas quecompõem um exército, de seus movimentos e ações, das relações que têm entre si.59É possível que a guerra como estratégia seja a continuação da política. Masnão se deve esquecer que a "política" foi concebida como a continuação senão exatae diretamente da guerra, pelo menos do modelo militar como meio fundamental paraprevenir o distúrbio civil. A política, como técnica da paz e da ordem internas,procurou pôr em funcionamento o dispositivo do exército perfeito, da massadisciplinada, da tropa dócil e útil, do regimento no acampamento e nos campos, namanobra e no exercício. Nos grandes Estados do século XVIII, o exército garante apaz civil sem dúvida porque é uma força real, uma espada sempre ameaçadora, mastambém porque é uma técnica e um saber que podem projetar seu esquema sobre ocorpo social. Se há uma série guerra-política que passa pela estratégia, há uma sérieexército-política que passa pela tática. É a estratégia que permite compreender aguerra como uma maneira de conduzir a guerra entre os Estados; é a tática quepermite compreender o exército como um princípio para manter a ausência de guerrana sociedade civil. A era clássica viu nascer a grande estratégia política e militarsegundo a qual as nações defrontam suas forças econômicas e demográficas; masviu nascer também a minuciosa tática militar e política pela qual se exerce nosEstados o controle dos corpos e das forças individuais. "O" militar — a instituiçãomilitar, o personagem do militar, a ciência militar, tão diferentes do quecaracterizava antes o "homem de guerra" — se especifica, durante esse período, noponto de junção entre a guerra e os ruídos da batalha por um lado, a ordem e osilêncio obediente da paz por outro. O sonho de uma sociedade perfeita é facilmenteatribuído pelos historiadores aos filósofos e juristas do século XVIII; mas hátambém um sonho militar da sociedade; sua referência fundamental era não aoestado de natureza, mas às engrenagens cuidadosamente subordinadas de umamáquina, não ao contrato primitivo, mas às coerções permanentes, não aos direitosfundamentais, mas aos treinamentos indefinidamente progressivos, não à vontadegeral mas à docilidade automática.Dever-se-ia tomar a disciplina nacional [dizia Guibert].O Estado que eu idealizo terá uma administração simples, sólida, fácil de governar.Parecerá com essas imensas máquinas, que com molas pouco complicadas produzemgrandes efeitos; a força desse Estado nascerá de sua força, sua prosperidade de suaprosperidade. O tempo que destrói tudo aumentará sua potência. Ele desmentirá esse preconceito vulgar que leva a imaginar que os impérios estão submetidos a uma leiimperiosa de decadência e ruína.60O regime napoleônico não está longe e com ele essa forma de Estado que lhesubsistirá e que não se deve esquecer que foi preparado por juristas mas também porsoldados, conselheiros de Estado e oficiais baixos, homens de lei e homens deacampamento. A referência romana que acompanha essa formação inclui claramenteesse duplo índice: os cidadãos e os legionários, a lei e a manobra. Enquanto osjuristas procuravam no pacto um modelo primitivo para a construção ou areconstrução do corpo social, os militares e com eles os técnicos da disciplinaelaboravam processos para a coerção individual e coletiva dos corpos.   

Vigiar e Punir -  Michel FoucaultOnde histórias criam vida. Descubra agora