capítulo VII - Inverno

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A FAMÍLIA estava reunida em torno do fogo, Fabiano sentado
no pilão caído, Sinha Vitória de pernas cruzadas, as coxas
servindo de travesseiros aos filhos. A cachorra Baleia, com o
traseiro no chão e o resto do corpo levantado, olhava as
brasas que se cobriam de cinza.
Estava um frio medonho, as goteiras pingavam lá fora, o
vento sacudia os ramos das catingueiras, e o barulho do rio
era como um trovão distante.
Fabiano esfregou as mãos satisfeito e empurrou os tições
com a ponta da alpercata. As brasas estalaram, a cinza caiu,
um círculo de luz espalhou-se em redor da trempe de pedras,
clareando vagamente os pés do vaqueiro, os joelhos da mulher
e os meninos deitados. - De quando em quando estes se mexiam,
porque o lume era fraco e apenas aquecia pedaços deles.
Outros pedaços esfriavam recebendo o ar que entrava pelas
rachaduras das paredes e pelas gretas da janela. Por isso não
podiam dormir. Quando iam pegando no sono, arrepiavam-se,
tinham precisão de virar-se, chegavam-se à trempe e ouviam a
conversa dos pais. Não era propriamente conversa, eram frases
soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. As vezes
uma interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na
verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro:
iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito, e as
imagens sucediam-se, deformavam-se, não havia meio de
dominá-las. Como os recursos de expressão eram minguados,
tentavam remediar a deficiência falando alto.
Fabiano tornou a esfregar as mãos e iniciou uma história
bastante confusa, mas como só estavam iluminadas as
alpercatas dele, o gesto passou despercebido. O menino mais
velho abriu os ouvidos, atento. Se pudesse ver o rosto do
pai, compreenderia talvez uma parte da narração, mas assim no
escuro a dificuldade era grande. Levantou-se, foi a um
canto da cozinha, trouxe de lá uma braçada de lenha. Sinha
Vitória aprovou este ato com um rugido, mas Fabiano condenou
a interrupção, achou que o procedimento do filho revelava
falta de respeito e estirou o braço para castigá-lo. O
pequeno escapuliu-se, foi enrolar-se na saia da mãe, que se
pôs francamente do lado dele.
- Hum! hum! Que brabeza!
Aquele homem era assim mesmo, tinha o coração perto da
goela.
- Estourado.
Remexeu as brasas com o cabo da quenga de coco, arrumou
entre as pedras achas de angico molhado, procurou acendê-las.
Fabiano ajudou-a: suspendeu a tagarelice, pôs-se de quatro
pés e soprou os carvões, enchendo muito as bochechas. Uma
fumarada invadiu a cozinha, as pessoas tossiram, enxugaram os
olhos. Sinha Vitória manejou o abano, e passado um minuto as
labaredas espirraram entre as pedras.
O círculo de luz aumentou, agora as figuras surgiam na
sombra, vermelhas. Fabiano, visível da barriga para baixo,
ia-se tornando indistinto daí para cima, era um negrume que
vagos clarões cortavam. Desse negrume saiu novamente a
parolagem mastigada.
Fabiano estava de bom humor. Dias antes a enchente havia
coberto as marcas postas no fim da terra de aluvião,
alcançava as catingueiras, que deviam estar submersas.
Certamente só apareciam as folhas, a espuma subia, lambendo
ribanceiras que se desmoronavam.
Dentro em pouco o despotismo de água ia acabar, mas Fabiano
não pensava no futuro. Por enquanto a inundação crescia,
matava bichos, ocupava grotas e várzeas. Tudo muito bem. E
Fabiano esfregava as mãos. Não havia o perigo da seca
imediata, que aterrorizara a família durante meses. A catinga
amarelecera, avermelhara-se, o gado principiara a emagrecer e
horríveis visões de pesadelo tinham agitado o sono das
pessoas. De repente um traço ligeiro rasgara o céu para os
lados da cabeceira do rio, outros surgiram mais claros, o
trovão roncara perto, na escuridão da meia-noite rolaram
nuvens cor de sangue. A ventania arrancara sucupiras e
imburanas, houvera relâmpagos em demasia - e Sinha Vitória se
escondera na camarinha com os filhos, tapando as orelhas,
enrolando-se nas cobertas. Mas aquela brutalidade findara de
chofre, a chuva caíra, a cabeça da cheia aparecera arrastando
troncos e animais mortos. A água tinha subido, alcançado a
ladeira, estava com vontade de chegar aos juazeiros do fim do
pátio. Sinha Vitória andava amedrontada. Seria possível que a
água topasse os juazeiros? Se isto acontecesse, a casa seria
invadida, os moradores teriam de subir o morro, viver uns
dias no morro, como preás.
Suspirava atiçando o fogo com o cabo da quenga de coco.
Deus não permitiria que sucedesse tal desgraça.
- An!
A casa era forte.
- An!
Os esteios de aroeira estavam bem fincados no chão duro. Se
o rio chegasse ali, derrubaria apenas os torrões que formavam
o enchimento das paredes de taipa. Deus protegeria a família.
- An!
As varas estavam bem amarradas com cipós nos esteios de
aroeira. O arcabouço da casa resistiria à fúria das águas. E
quando elas baixassem, a família regressaria. Sim, viveriam
todos no mato, como preás. Mas voltariam quando as águas
baixassem, tirariam do barreiro terra para vestir o esqueleto
da casa.
- An!
Sinha Vitória moveu o abano com força para não ouvir a
barulho do rio, que se aproximava. Seria que ele estava com
intenção de progredir? O abano zumbia, e o rumor da
enchente era um sopro, um sopro que esmorecia para lá dos
juazeiros.
Fabiano contava façanhas. Começara moderadamente, mas
excitara-se pouco a pouco e agora via os acontecimentos com
exagero e otimismo, estava convencido de que praticara feitos
notáveis. Necessitava esta convicção. Algum tempo antes
acontecera aquela desgraça: o soldado amarelo provocara-o na
feira, dera-lhe uma surra de facão e metera-o na cadeia.
Fabiano passara semanas capiongo, fantasiando vinganças,
vendo a criação definhar na catinga torrada. Se a seca
chegasse, ele abandonaria mulher e filhos, coseria a facadas
o soldado amarelo, depois mataria o juiz, o promotor e o
delegado. Estivera uns dias assim murcho, pensando na seca e
roendo a humilhação. Mas a trovoada roncara, viera a cheia, e
agora as goteiras pingavam, o vento entrava pelos buracos das
paredes.
Fabiano estava contente e esfregava as mãos. Como o frio
era grande, aproximou-as das labaredas. Relatava um fuzuê
terrível, esquecia as pancadas e a prisão, sentia-se capaz de
atos importantes.
O rio subia a ladeira, estava perto dos juazeiros. Não
havia notícia de que os houvesse atingido - e Fabiano,
seguro, baseado nas informações dos mais velhos, narrava uma
briga de que saíra vencedor. A briga era sonho, mas Fabiano
acreditava nela.
As vacas vinham abrigar-se junto à parede da casa, pegada
ao curral, a chuva fustigava-as, os chocalhos batiam. Iriam
engordar com o pasto novo, dar crias. O pasto cresceria no
campo, as árvores se enfeitariam, o gado se multiplicaria.
Engordariam todos, ele Fabiano, a mulher, os dois filhos e a
cachorra Baleia. Talvez Sinha Vitória adquirisse uma cama de
lastro de couro. Realmente o jirau de varas onde se
espichavam era incômodo.
Fabiano gesticulava. Sinha Vitória agitava o abano para
sustentar as labaredas no angico molhado. Os meninos,
sentindo frio numa banda e calor na outra, não podiam dormir
e escutavam as lorotas do pai. Começaram a discutir em voz
baixa uma passagem obscura da narrativa. Não conseguiram
entender-se, arengaram azedos, iam se atracando. Fabiano
zangou-se com a impertinência deles e quis puni-los. Depois
moderou-se, repisou o trecho incompreensível utilizando
palavras diferentes.
O menino mais novo bateu palmas, olhou as mãos de Fabiano,
que se agitavam por cima das labaredas, escuras e vermelhas.
As costas ficavam na sombra, mas as palmas estavam iluminadas
e cor de sangue. Era como se Fabiano tivesse esfolado um
animal. A barba ruiva e emaranhada estava invisível, os olhos
azulados e imóveis fixavam-se nos tições, a fala dura e rouca
entrecortava-se de silêncios. Sentado no pilão, Fabiano
derreava-se, feio e bruto, com aquele jeito de bicho lerdo
que não se agüenta em dois pés.
O menino mais velho estava descontente. Não podendo
perceber as feições do pai, cerrava os olhos para entendê-lo
bem. Mas surgira uma dúvida. Fabiano modificara a história -
e isto reduzia-lhe a verossimilhança. Um desencanto. Estirouse
e bocejou. Teria sido melhor a repetição das palavras.
Altercaria com o irmão procurando interpretá-las. Brigaria
por causa das palavras - e a sua convicção encorparia.
Fabiano devia tê-las repetido. Não. Aparecera uma variante, o
herói tinha-se tornado humano e contraditório. O menino mais
velho recordou-se de um brinquedo antigo, presente de seu
Tomás da bolandeira. Fechou os olhos, reabriu-os, sonolento.
O ar que entrava pelas rachas das paredes esfriava-lhe uma
perna, um braço, todo o lado direito. Virou-se, os pedaços de
Fabiano sumiram-se. O brinquedo se quebrara, o pequeno
entristecera vendo as peças inúteis. Lembrou-se dos currais
feitos de seixos miúdos, sob as catingueiras.
Agora a lagoa estava cheia, tinha coberto os currais que
ele construíra. O barreiro também se enchera, atingia a
parede da cozinha, as águas dele juntavam-se às da lagoa.
Para ir ao quintal onde havia craveiros e panelas de losna,
Sinha Vitória saía pela porta da frente, descia o copiar e
atravessava a porteira de baraúna. Atrás da casa, as cercas,
o pé de turco e as catingueiras estavam dentro da água. As
goteiras pingavam, os chocalhos das vacas tiniam, os sapos
cantavam. O som dos chocalhos era familiar, mas a cantiga dos
sapos e o rumor das goteiras causavam estranheza. Tudo estava
mudado. Chovia o dia inteiro, a noite inteira. As moitas e
capões de mato onde viviam seres misteriosos tinham sido
violados. Havia lá sapos. E a cantiga deles subia e descia,
uma toada lamentosa enchia os arredores. Tentou contar as
vozes, atrapalhou-se. Eram muitas, com certeza havia uma
infinidade de sapos nas moitas e nos capões. Que estariam
fazendo? Por que gritavam a cantoria gorgolejada e
triste? Nunca vira um deles, confundia-os com os habitantes
invisíveis da terra e dos bancos de macambira. Enrolou-se,
acomodou-se, adormeceu, uma banda aquecida pelo fogo, a outra
banda protegida pelas nádegas de Sinha Vitória.
O abano agitava-se, a madeira úmida chiava, o vulto de
Fabiano iluminava-se e escurecia.
Baleia, imóvel, paciente, olhava os carvões e esperava que
a família se recolhesse. Enfastiava-a o barulho que Fabiano
fazia. No campo, seguindo uma rês, se esgoelava demais.
Natural. Mas ali, a beira do fogo, para 'que tanto grito?
Fabiano estava-se cansando à toa. Baleia se enjoava,
cochilava e não podia dormir. Sinha Vitória devia retirar os
carvões e a cinza, varrer o chão, deitarse na cama de varas
com Fabiano. Os meninos se arrumariam na esteira, por baixo
do caritó, na sala. Era bom que a deixassem em paz. O dia
todo espiava os movimentos das pessoas, tentando adivinhar
coisas incompreensíveis. Agora precisava dormir, livrar-se
das pulgas e daquela vigilância a que a tinham habituado.
Varrido o chão com vassourinha, escorregaria entre as pedras,
enroscar-se-ia, adormeceria no calor, sentindo o cheiro das
cabras molhadas e ouvindo rumores desconhecidos, o tiquetaque
das pingueiras, a cantiga dos sapos, o sopro do rio
cheio. Bichos miúdos e sem dono iriam visitá-la.

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