capítulo XI- o soldado amarelo

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FABIANO meteu-se na vereda que ia desembocar na lagoa seca,
torrada, coberta de catingueiras e capões de mato. Ia pesado,
o alo cheio a tiracolo, muitos látegos e chocalhos
pendurados num braço. O facão batia nos tocos. Espiava o chão
como de costume, decifrando rastos. Conheceu os da égua ruça
e da cria, marcas de cascos grandes e pequenos. A égua ruça,
com certeza. Deixara pêlos brancos num tronco de angico.
Urinara na areia e o mijo desmanchara as pegadas, o que não
aconteceria se se tratasse de um cavalo.
Fabiano ia desprecatado, observando esses sinais e outros
que se cruzavam, de viventes menores. Corcunda, parecia
farejar o solo - e a catinga deserta animava-se, os bichos
que ali tinham passado voltavam, apareciam-lhe diante dos
olhos miúdos.
Seguiu a direção que ~a égua havia tomado. Andara cerca de
cem braças quando o cabresto de cabelo que trazia no ombro se
enganchou num pé de quipá. Desembaraçou o cabresto, puxou o
facão, pôs-se a cortar as quipás e as palmatórias que
interrompiam a passagem.
Tinha feito um estrago feio, a terra se cobria de palmas
espinhosas. Deteve-se percebendo rumor de garranchos, voltouse
e deu de cara com o soldado amarelo que, um ano antes, o
levara a cadeia, onde ele agüentara uma surra e passara a
noite. Baixou a arma. Aquilo durou um segundo.
Menos: durou uma fração de segundo. Se houvesse durado mais
tempo, o amarelo teria caído esperneando na poeira, com o
quengo rachado. Como o impulso que moveu o braço de Fabiano
foi muito forte, o gesto que ele fez teria sido bastante para
um homicídio se outro impulso não lhe dirigisse o braço em
sentido contrário. A lâmina parou de chofre, junto à cabeça
do intruso, bem em cima do boné vermelho. A princípio o
vaqueiro não compreendeu nada. Viu apenas que estava ali um
inimigo. De repente notou que aquilo era um homem e, coisa
mais grave, uma autoridade. Sentiu um choque violento,
deteve-se, o braço ficou irresoluto, bambo, inclinando-se
para um lado e para outro.
O soldado, magrinho, enfezadinho, tremia. E Fabiano tinha
vontade de levantar o facão de novo. Tinha vontade, mas os
músculos afrouxavam. Realmente não quisera matar um cristão:
procedera como quando, a montar brabo, evitava galhos e
espinhos. Ignorava os movimentos que fazia na sela. Alguma
coisa o empurrava para a direita ou para a esquerda. Era essa
coisa que ia partindo a cabeça do amarelo. Se ela tivesse
demorado um minuto, Fabiano seria um cabra valente. Não
demorara. A certeza do perigo surgira - e ele estava
indeciso, de olho arregalado, respirando com dificuldade, um
espanto verdadeiro no rosto barbudo coberto de suor, o cabo
do facão mal seguro entre os dois dedos úmidos.
Tinha medo e repetia que estava em perigo, mas isto lhe
pareceu tão absurdo que se pôs a rir. Medo daquilo? Nunca
vira uma pessoa tremer assim. Cachorro. Ele não era dunga na
cidade? Não pisava os pés dos matutos, na feira?
Não botava gente na cadeia? Sem-vergonha, mofino.
Irritou-se. Porque seria que aquele safado batia os dentes
como um caititu? Não via que ele era incapaz de vingar-se?
Não via? Fechou a cara. A idéia do perigo ia-se sumindo. Que
perigo? Contra aquilo nem precisava facão, bastavam as unhas.
Agitando os chocalhos e os látegos, chegou a mão esquerda,
grossa e cabeluda, à cara do polícia, que recuou e se
encostou a uma catingueira. Se não fosse a catingueira, o
infeliz teria caído.
Fabiano pregou nele os olhos ensangüentados, meteu o facão
na bainha. Podia matá-lo com as unhas. Lembrou-se da surra
que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo
ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas.
Estava certo? O rosto de Fabiano contraía-se, medonho, mais
feio que um focinho. Hem? Estava certo? Bulir com as
pessoas que não fazem mal a ninguém. Porque? Sufocava-se, as
rugas da testa aprofundavam-se, os pequenos olhos azuis
abriam-se demais, numa interrogação dolorosa.
O soldado encolhia-se, escondia-se por detrás da árvore. E
Fabiano cravava as unhas nas palmas calosas. Desejava ficar
cego outra vez. Impossível readquirir aquele instante de
inconsciência. Repetia que a arma era desnecessária, mas
tinha a certeza de que não conseguiria utilizá-la - e apenas
queria enganar-se. Durante um minuto a cólera que sentia por
se considerar impotente foi tão grande que recuperou a força
e avançou para o inimigo.
A raiva cessou, os dedos que feriam a palma descerraram-se
- e Fabiano estacou desajeitado, como um pato, o corpo
amolecido.
Grudando-se à catingueira, o soldado apresentava apenas um
braço, uma perna e um pedaço da cara, mas esta banda de homem
começava a crescer aos olhos do vaqueiro. E a outra parte, a
que estava escondida, devia ser maior. Fabiano tentou afastar
a idéia absurda: - Como a gente pensa coisas bestas!
Alguns minutos antes não pensava em nada, mas agora suava
frio e tinha lembranças insuportáveis. Era um sujeito
violento, de coração perto da goela. Não, era um cabra que se
arreliava algumas vezes - e quando isto acontecia, sempre se
dava mal. Naquela tarde, por exemplo, se não tivesse perdido
a paciência e xingado a mãe da autoridade, não teria dormido
na cadeia depois de agüentar zinco no lombo. Dois
excomungados tinham-lhe caído em cima, um ferro batera-lhe no
peito, outro nas costas, ele se arrastara tiritando como um
frango molhado. Tudo porque se esquentara e dissera uma
palavra inconsideradamente. Falta de criação. Tinha lá culpa?
O sarapatel se formara, o cabo abrira caminho entre os
feirantes que se apertavam em redor: - "Toca pra frente".
Depois surra e cadeia, por causa de uma tolice. Ele, Fabiano,
tinha sido provocado. Tinha ou não tinha? Salto de reiúna em
cima da alpercata. Impacientara-se e largara o palavrão.
Natural, xingar a mãe de uma pessoa não vale nada, porque
todo o mundo vê logo que a gente não tem a intenção de
maltratar ninguém. Um ditério sem importância. O amarelo
devia saber isso. Não sabia. Saíra-se com quatro pedras
– figura.
na mão, apitara. E Fabiano comera da banda podre. -
"Desafasta".
Deu um passo para a catingueira. Se ele gritasse agora
"desafasta", que faria o polícia? Não se afastaria, ficaria
colado ao pé de pau. Uma lazeira, a gente podia xingar a mãe
dele. Mas então ... Fabiano estirava o beiço e
rosnava. Aquela coisa arriada e achacada metia as pessoas na
cadeia, dava-lhes surra. Não entendia. Se fosse uma criatura
de saúde e muque, estava certo. Enfim apanhar do governo não
é desfeita, e Fabiano até sentiria orgulho ao recordar-se da
aventura. Mas aquilo... Soltou uns grunhidos. Porque motivo o
governo aproveitava gente assim? Só se ele tinha receio de
empregar tipos direitos. Aquela cambada só servia para morder
as pessoas inofensivas. Ele, Fabiano, seria tão ruim se
andasse fardado? Iria pisar os pés dos trabalhadores e
dar pancada neles? Não iria.
Aproximou-se lento, fez uma volta, achou-se em frente do
polícia, que embasbacou, apoiado ao tronco, a pistola e o
punhal inúteis. Esperou que ele se mexesse. Era uma lazeira,
certamente, mas vestia farda e não ia ficar assim, os olhos
arregalados, os beiços brancos, os dentes chocalhando como
bilros. Ia bater o pé, gritar, levantar a espinha, plantarlhe
o salto da reiúna em cima da alpercata. Desejava que ele
fizesse isso. A idéia de ter sido insultado, preso, moído por
uma criatura mofina era insuportável. Mirava-se
naquela covardia, via-se mais lastimoso e miserável que
o outro.
Baixou a cabeça, coçou os pêlos ruivos do queixo. Se o
soldado não puxasse o facão, não gritasse, ele, Fabiano,
seria um vivente muito desgraçado.
Devia sujeitar-se àquela tremura, àquela amarelidão? Era um
bicho resistente, calejado. Tinha nervo, queria brigar,
metera-se em espalhafatos e saíra de crista levantada.
Recordou-se de lutas antigas, em danças com fêmea e cachaça.
Uma vez, de lambedeira em punho, espalhara a negrada. Aí
Sinha Vitória começara a gostar dele. Sempre fora reimoso.
Iria esfriando com a idade? Quantos anos teria? Ignorava, mas
certamente envelhecia e fraquejava. Se possuísse espelhos,
veria rugas e cabelos brancos. Arruinado, um caco. Não
sentira a transformação, mas estava-se acabando.
O suor umedeceu-lhe as mãos duras. Então? Suando com medo
de uma peste que se escondia tremendo? Não era uma
infelicidade grande, a maior das infelicidades? Provavelmente
não se esquentaria nunca mais, passaria o resto da vida assim
mole e ronceiro. Como a gente muda! Era. Estava mudado. Outro
indivíduo, muito diferente do Fabiano que levantava poeira
nas salas de dança. Um Fabiano bom para agüentar facão no
lombo e dormir na cadeira.
Virou a cara, enxergou o facão de rasto. Aquilo nem era
facão, não servia para nada. Ora não servia!
- Quem disse que não servia?
Era um facão verdadeiro, sim senhor, movera-se como um raio
cortando palmas de quipá. E estivera a pique de rachar o
quengo de um sem-vergonha. Agora dormia na bainha rota, era
um troço inútil, mas tinha sido uma arma. Se aquela coisa
tivesse durado mais um segundo, o polícia estaria morto.
Imaginou-o assim, caído, as pernas abertas, os bugalhos
apavorados, um fio de sangue empastando-lhe os cabelos,
formando um riacho entre os seixos da vereda. Muito bem! Ia
arrastá-lo para dentro da catinga, entregá-lo aos urubus.
E não sentiria remorso. Dormiria com a mulher, sossegado, na
cama de varas. Depois gritaria aos meninos, que precisavam
criação. Era um homem, evidentemente.
Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do polícia, que se
desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o
resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que
suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para
baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que
vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava,
não valia a pena inutilizar-se. Guardava a sua força.
Vacilou e coçou a testa. Havia muitos bichinhos assim
ruins, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins.
Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o
soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o
caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro.
- Governo é governo.
Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao
soldado amarelo.

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