capítulo IV - Sinha Vitória

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ACOCORADA junto às pedras que serviam de trempe, a saia de
ramagens entalada entre as coxas, Sinha Vitória soprava o
fogo. Uma nuvem de cinza voou dos tições e cobriu-lhe a cara,
a fumaça inundou-lhe os olhos, o rosário de contas brancas e
azuis desprendeu-se do cabeção e bateu na panela. Sinha
Vitória limpou as lágrimas com as costas das mãos,
encarquilhou as pálpebras, meteu o rosário no seio e
continuou a soprar com vontade, enchendo muito as bochechas.
Labaredas lamberam as achas de angico, esmoreceram,
tornaram a levantar-se e espalharam-se entre as pedras. Sinha
Vitória aprumou o espinhaço e agitou o abano. Uma chuva de
faíscas mergulhou num banho luminoso a cachorra Baleia, que
se enroscava no calor e cochilava embalada pelas emanações da
comida.
Sentindo a deslocação do ar e a crepitação dos gravetos,
Baleia despertou, retirou-se prudentemente, receosa de
sapecar o pêlo, e ficou observando maravilhada as estrelinhas
vermelhas que se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com
um movimento de cauda aquele fenômeno e desejou expressar a
sua admiração à dona. Chegou-se a ela em saltos curtos,
ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras, imitando gente. Mas
Sinha Vitória não queria saber de elogios.
- Arreda!
Deu um pontapé na cachorra, que se afastou humilhada e com
sentimentos revolucionários.
Sinha Vitória tinha amanhecido nos seus azeites. Fora de
propósito, dissera ao marido umas inconveniências a respeito
da cama de varas. Fabiano, que não esperava semelhante
desatino, apenas grunhira: - "Hum! hum!" E amunhecara, porque
realmente mulher é bicho difícil de entender, deitara-se na
rede e pegara no sono. Sinha Vitória andara para cima e para
baixo, procurando em que desabafar. Como achasse tudo em
ordem, queixara-se da vida. E agora vingava-se em Baleia,
dando-lhe um pontapé.
Avizinhou-se da janela baixa da cozinha, viu os meninos,
entretidos no barreiro, sujos de lama, fabricando bois de
barro, que secavam ao sol, sob o pé de turco, e não encontrou
motivo para repreendê-los. Pensou de novo na cama de varas e
mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinham-se
acostumado, mas seria mais agradável dormirem numa cama de
lastro de couro, como outras pessoas.
Fazia mais de um ano que falava nisso ao marido. Fabiano a
princípio concordara com ela, mastigara cálculos, tudo
errado. Tanto para o couro, tanto para a armação. Bem.
Poderiam adquirir o móvel necessário economizando na roupa e
no querosene. Sinha Vitória respondera que isso era
impossível, porque eles vestiam mal, as crianças andavam
nuas, e recolhiam-se todos ao anoitecer. Para bem dizer, não
se acendiam candeeiros na casa. Tinham discutido, procurando
cortar outras despesas. Como não se entendessem, Sinha
Vitória aludira, bastante azeda, ao dinheiro gasto pelo
marido na feira, com jogo e cachaça. Ressentido, Fabiano
condenara os sapatos de verniz que ela usava nas festas,
caros e inúteis. Calçada naquilo, trôpega, mexia-se como um
papagaio, era ridícula. Sinha Vitória ofendera-se gravemente
com a comparação, e se não fosse o respeito que Fabiano lhe
inspirava, teria despropositado. Efetivamente os sapatos
apertavam-lhe os dedos, faziam-lhe calos. Equilibrava-se mal,
tropeçava, manquejava, trepada nos saltos de meio palmo.
Devia ser ridícula, mas a opinião de Fabiano entristecera-a
muito. Desfeitas essas nuvens, curtidos os dissabores, a
cama de novo lhe aparecera no horizonte acanhado.
Agora pensava nela de mau humor. Julgava-a inatingível e
misturava-a às obrigações da casa. Foi a sala, passou por
baixo do punho da rede onde Fabiano roncava, tirou do caritó
o cachimbo e uma pele de fumo, saiu para o copiar. O chocalho
da vaca laranja tilintou para os lados do rio. Fabiano era
capaz de se ter esquecido de curar a vaca laranja. Quis
acordá-lo e perguntar, mas distraiu-se olhando os xiquexiques
e os mandacarus que avultavam na campina.
Um mormaço levantava-se da terra queimada. Estremeceu
lembrando-se da seca, o rosto moreno desbotou, os olhos
pretos arregalaram-se. Diligenciou afastar a recordação,
temendo que ela virasse realidade. Rezou baixinho uma avemaria,
já tranqüila, a atenção desviada para um buraco que
havia na cerca do chiqueiro das cabras. Esfarelou a pele de
fumo entre as palmas das mãos grossas, encheu o cachimbo de
barro, foi consertar a cerca. Voltou, circulou a casa
atravessando o cercadinho do oitão, entrou na cozinha.
- É capaz de Fabiano ter-se esquecido da vaca laranja.
Agachou-se, atiçou o fogo, apanhou uma brasa com a colher,
acendeu o cachimbo, pôs-se a chupar o canudo de taquari cheio
de sarro. Jogou longe uma cusparada, que passou por cima da
janela e foi cair no terreiro. Preparou-se para cuspir
novamente. Por uma extravagante associação, relacionou esse
ato com a lembrança da cama. Se o cuspo alcançasse o
terreiro, a cama seria comprada antes do fim do ano. Encheu a
boca de saliva, inclinou-se - e não conseguiu o que esperava.
Fez várias tentativas, inutilmente. O resultado foi secar a
garganta. Ergueu-se desapontada. Besteira, aquilo não valia.
Aproximou-se do canto onde o pote se erguia numa forquilha
de três pontas, bebeu um caneco de água. Água salobra.
- Iche!
Isto lhe sugeriu duas imagens quase simultâneas, que se
confundiram e neutralizaram: panelas e bebedouros. Encostou o
fura-bolos à testa, indecisa. Em que estava pensando? Olhou o
chão, concentrada, procurando recordar-se, viu os pés chatos,
largos, os dedos separados. De repente as duas idéias
voltaram: o bebedouro secava, a panela não tinha sido
temperada.
Foi levantar o testo, recebeu na cara vermelha uma baforada
de vapor. Não é que ia deixando a comida esturrar? Pôs água
nela e remexeu-a com a quenga preta de coco. Em seguida
provou o caldo. Insosso, nem parecia bóia de cristão. Chegouse
ao jirau onde se guardavam cumbucos e mantas de carne,
abriu a mochila de sal, tirou um punhado, jogou-o na panela.
Agora pensava no bebedouro, onde havia um líquido escuro
que bicho enjeitava. Só tinha medo da seca.
Olhou de novo os pés espalmados. Efetivamente não se
acostumava a calçar sapatos, mas o remoque de Fabiano
molestara-a. Pés de papagaio. Isso mesmo, sem dúvida, matuto
anda assim. Para que fazer vergonha à gente? Arreliava-se
com a comparação.
Pobre do papagaio. Viajar com ela, na gaiola que balançava
em cima do baú de folha. Gaguejava: - "Meu louro." Era o que
sabia dizer. Fora isso, aboiava arremedando Fabiano e latia
como Baleia. Coitado. Sinha Vitória nem queria lembrar-se
daquilo. Esquecera a vida antiga, era como se tivesse nascido
depois que chegara à fazenda. A referência aos sapatos
abrira-lhe uma ferida - e a viagem reaparecera. As alpercatas
dela tinham sido gastas nas pedras. Cansada, meio morta de
fome, carregava o filho mais novo, o baú e a gaiola do
papagaio. Fabiano era ruim.
- Mal-agradecido.
Olhou os pés novamente. Pobre do louro. Na beira do rio
matara-o por necessidade, para sustento da família. Naquele
momento ele estava zangado, fitava na cachorrinha as pupilas
sérias e caminhava aos tombos, como os matutos em dias de
festa. Para que Fabiano fora despertar-lhe aquela recordação?
Chegou à porta, olhou as folhas amarelas das catingueiras.
Suspirou. Deus não havia de permitir outra desgraça. Agitou a
cabeça e procurou ocupações para entreter-se. Tomou a cuia
grande, encaminhou-se ao barreiro, encheu de água o caco das
galinhas, endireitou o poleiro. Em seguida foi ao
quintalzinho regar os craveiros e as panelas de losna. E
botou os filhos para dentro de casa, que tinham barro até nas
meninas dos olhos. Repreendeu-os: - Safadinhos! porcos!
sujos como... Deteve-se. Ia dizer que eles estavam sujos
como papagaios.
Os pequenos fugiram, foram enrolar-se na esteira da sala,
por baixo do caritó, e Sinha Vitória voltou para junto da
trempe, reacendeu o cachimbo. A panela chiava; um vento morno
e empoeirado sacudia as teias de aranha e as cortinas
de pucumã do teto; Baleia, sob o jirau, coçava-se com os
dentes e pegava moscas. Ouviam-se distintamente os roncos de
Fabiano, compassados, e o ritmo deles influiu nas idéias de
Sinha Vitória. Fabiano roncava com segurança. Provavelmente
não havia perigo, a seca devia estar longe.
Outra vez Sinha Vitória pôs-se a sonhar com a cama de
lastro de couro. Mas o sonho se ligava à recordação do
papagaio, e foi-lhe preciso um grande esforço para isolar o
objeto de seu desejo.
Tudo ali era estável, seguro. O sono de Fabiano, o fogo que
estalava, o toque dos chocalhos, até o zumbido das moscas
davam-lhe sensação de firmeza e repouso. Tinha de passar a
vida inteira dormindo em varas? Bem no meio do catre havia um
nó, um calombo grosso na madeira. E ela se encolhia num
canto, o marido no outro, não podiam estirar-se no centro. A
princípio não se incomodara. Bamba, moída de trabalhos,
deitar-se-ia em pregos. Viera, porém, um começo de
prosperidade. Corriam, engordavam. Não possuíam nada: se
retirassem, levariam a roupa, a espingarda, o baú de folha e
troças miúdos. Mas iam vivendo, na graça de Deus, o patrão
confiava neles - e eram quase felizes. Só faltava uma cama.
Era o que aperreava Sinha Vitória. Como já não se estazava em
serviços pesados, gastava um pedaço da noite parafusando. E o
costume de encafuar-se ao escurecer não estava certo, que
ninguém é galinha.
Nesse ponto as idéias de Sinha Vitória seguiram outro
caminho, que pouco depois foi desembocar no primeiro. Não era
que a raposa tinha passado no rabo a galinha pedrês? Logo a
pedrês, a mais gorda. Decidiu armar um mundéu perto do
poleiro. Encolerizou-se. A raposa pagaria a galinha pedrês.
- Ladrona.
Pouco a pouco a zanga se transferiu. Os roncos de Fabiano
eram insuportáveis. Não havia homem que roncasse tanto. Era
bom levantar-se e procurar uma vara para substituir aquele
pau amaldiçoado que não deixava uma pessoa virar-se. Porque
não tinham removido aquela vara incômoda? Suspirou. Não
conseguiam tomar resolução. Paciência. Era melhor esquecer o
nó e pensar numa cama igual à de seu Tomás da bolandeira. Seu
Tomás tinha uma cama de verdade, feita pelo carpinteiro, um
estrado de sucupira alisado a enxó, com as juntas abertas a
formão, tudo embutido direito, e um couro cru em cima, bem
esticado e bem pregado. Ali podia um cristão estirar os
ossos.
Se vendesse as galinhas e a marrã? Infelizmente a
excomungada raposa tinha comido a pedrês, a mais gorda.
Precisava dar uma lição à raposa. Ia armar o mundéu junto do
poleiro e quebrar o espinhaço daquela sem-vergonha.
Ergueu-se, foi a camarinha procurar qualquer coisa, voltou
desanimada e esquecida. Onde tinha a cabeça?
Sentou-se na janela baixa da cozinha, desgostosa. Venderia
as galinhas e a marrã, deixaria de comprar querosene. Inútil
consultar Fabiano, que sempre se entusiasmava, arrumava
projetos. Esfriava logo - e ela franzia a testa, espantada;
certa de que o marido se satisfazia com a idéia de possuir
uma cama. Sinha Vitória desejava uma cama real, de couro e
sucupira, igual à de seu Tomás da bolandeira.

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