capítulo X - contas

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FABIANO recebia na partilha a quarta parte dos bezerros e a
terça dos cabritos. Mas como não tinha roça e apenas se
limitava a semear na vazante uns punhados de feijão e milho,
comia da feira, desfazia-se dos animais, não chegava a ferrar
um bezerro ou assinar a orelha de um cabrito.
Se pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a
cabeça. Forjara planos. Tolice, quem é do chão não se trepa.
Consumidos os. legumes, roídas as espigas de milho, recorria
a gaveta do amo, cedia por preço baixo o produto das
sortes, Resmungava, rezingava, numa aflição,
tentando espichar os recursos minguados, engasgava-se,
engolia em seco. Transigindo com outro, não seria roubado tão
descaradamente. Mas receava ser expulso da fazenda. E rendiase:
Aceitava o cobre e ouvia conselhos. Era bom pensar no
futuro, criar juízo. Ficava de boca aberta, vermelho, o
pescoço inchando. De repente estourava - Conversa. Dinheiro
anda num cavalo e ninguém pode viver sem comer. Quem é do
chão não se trepa.
Pouco a pouco o ferro do proprietário queimava os bichos de
Fabiano. E quando não tinha mais nada para vender, o
sertanejo endividava-se. Ao chegar a partilha, estava
encalacrado, e na hora das contas davam-lhe uma ninharia.
Ora, daquela vez, como das outras, Fabiano ajustou o gado,
arrependeu-se, enfim deixou a transação meio apalavrada e
foi consultar a mulher. Sinha Vitória mandou os meninos para
o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-se, distribuiu
no chão sementes de várias espécies, realizou somas e
diminuições. No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao
fechar o negócio notou que as operações de Sinha Vitória,
como de costume, diferiam das do patrão. Reclamou e obteve a
explicação habitual: a diferença era proveniente de juros.
Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim
senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher
tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco.
Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar
a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de
mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e
nunca arranjar carta de alforria!
O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o
vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda.
Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem. Não era
preciso barulho não. Se havia dito palavra à-toa, pedia
desculpa. Era bruto, não fora ensinado. Atrevimento não
tinha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar questão
com gente rica? Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os
homens. Devia ser ignorância da mulher, provavelmente devia
ser ignorância da mulher. Até estranhara as contas dela.
Enfim, como não sabia ler (um bruto, sim senhor), acreditara
na sua velha. Mas pedia desculpa e jurava não cair noutra.
O amo abrandou, e Fabiano saiu de costas, o chapéu
varrendo o tijolo. Na porta, virando-se, enganchou as rosetas
das esporas, afastou-se tropeçando, os sapatões de couro cru
batendo no chão como cascos.
Foi até a esquina, parou, tomou fôlego. Não deviam tratá-lo
assim. Dirigiu-se ao quadro lentamente. Diante da bodega de
seu Inácio virou o rosto e fez uma curva larga. Depois que
acontecera aquela miséria, temia passar ali. Sentou-se numa
calçada, tirou do bolso o dinheiro, examinou-o, procurando
adivinhar quanto lhe tinham furtado. Não podia dizer em voz
alta que aquilo era um furto, mas era. Tomavam-lhe o gado
quase de graça e ainda inventavam juro. Que juro! O que havia
era safadeza.
- Ladroeira.
Nem lhe permitiam queixas. Porque reclamara, achara a coisa
uma exorbitância, o branco se levantara furioso, com quatro
pedras na mão. Para que tanto espalhafato?
- Hum! hum!
Recordou-se do que lhe sucedera anos atrás, antes da seca,
longe. Num dia de apuro recorrera ao porco magro que não
queria engordar no chiqueiro e estava reservado às despesas
do Natal: matara-o antes de tempo e fora vendê-lo na cidade.
Mas o cobrador da prefeitura chegara com o recibo e
atrapalhara-o. Fabiano fingira-se desentendido : não
compreendia nada, era bruto. Como o outro lhe explicasse que,
para vender o porco, devia pagar imposto, tentara convencê-lo
de que ali não havia porco, havia quartos de porco, pedaços
de carne. O agente se aborrecera, insultara-o, e Fabiano se
encolhera. Bem, bem. Deus o livrasse de história com o
governo. Julgava que podia dispor dos seus troços. Não
entendia de imposto.
- Um bruto, está percebendo?
Supunha que o cevado era dele. Agora se a prefeitura tinha
uma parte, estava acabado. Pois ia voltar para casa e comer a
carne. Podia comer a carne? Podia ou não podia? O funcionário
batera o pé agastado e Fabiano se desculpara, o chapéu de
couro na mão, o espinhaço curvo: - Quem foi que disse que
eu queria brigar? O melhor é a gente acabar com isso.
Despedira-se, metera a carne no saco e fora vendê-la noutra
rua, escondido. Mas, atracado pelo cobrador, gemera no
imposto e na multa. Daquele dia em diante não criara mais
porcos. Era perigoso criá-los.
Olhou as cédulas arrumadas na palma, os níqueis e as
pratas, suspirou, mordeu os beiços. Nem lhe restava o direito
de protestar. Baixava a crista. Se não baixasse, desocuparia
a terra, largar-se-ia com a mulher, os filhos pequenos e os
cacarecos. Para onde? Hem? Tinha para onde levar a mulher e
os meninos? Tinha nada!
Espalhou a vista pelos quatro cantos. Além dos telhados,
que lhe reduziam o horizonte, a campina se estendia, seca e
dura. Lembrou-se da marcha penosa que fizera através dela,
com a família, todos esmolambados e famintos.
Haviam escapado, e isto lhe parecia um milagre. Nem sabia
como tinham escapado.
Se pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam.
Aparentemente resignado, sentia um ódio imenso a qualquer
coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os
soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade
era contra ele. Estava acostumado, tinha a casca muito
grossa, mas às vezes se arreliava. Não havia paciência que
suportasse tanta coisa.
- Um dia um homem faz besteira e se desgraça.
Pois não estavam vendo que ele era de carne e osso? Tinha
obrigação de trabalhar para os outros, naturalmente, conhecia
o seu lugar. Bem. Nascera com esse destino, ninguém tinha
culpa de ele haver nascido com um destino ruim. Que fazer?
Podia mudar a sorte? Se lhe dissessem que era possível
melhorar de situação, espantar-se-ia. Tinha vindo ao mundo
para amansar brabo, curar feridas com rezas, consertar cercas
de inverno a verão. Era sina. O pai vivera assim, o avô
também. E para trás não existia família. Cortar mandacaru,
ensebar látegos - aquilo estava no sangue. Conformava-se, não
pretendia mais nada Se lhe dessem o que era dele, estava
certo. Não davam. Era um desgraçado, era como um
cachorro,.só recebia ossos. Por que seria que os homens
ricos ainda lhe tomavam uma parte dos ossos? Fazia até nojo
pessoas importantes se ocuparem com semelhantes porcarias.
Na palma da mão as notas estavam úmidas de suor. Desejava
saber o tamanho da extorsão. Da última vez que fizera contas
com o amo o prejuízo parecia menor. Alarmou-se. Ouvira
falar em juros e em prazos. Isto lhe dera uma impressão
bastante penosa: sempre que os homens sabidos lhe diziam
palavras difíceis, ele saía logrado. Sobressaltava-se
escutando-as. Evidentemente só serviam para encobrir
ladroeiras. Mas eram bonitas. As vezes decorava algumas e
empregava-as fora do propósito. Depois esquecia-as. Para que
um pobre da laia dele usar conversa de gente rica? Sinha
Terta é que tinha uma ponta de língua terrível. Era: falava
quase tão bem como as pessoas da cidade. Se ele soubesse
falar como Sinha Terta, procuraria serviço noutra fazenda,
haveria de arranjar-se. Não sabia. Nas horas de aperto dava
para gaguejar, embaraçava-se como um menino, coçava os
cotovelos, aperreado. Por isso esfolavam-no. Safados. Tomar
as coisas de um infeliz que não tinha onde cair morto! Não
viam que isso não estava certo? Que iam ganhar com semelhante
procedimento? Hem? Que iam ganhar?
- An!
Agora não criava porco e queria ver o tipo da prefeitura
cobrar dele imposto e multa. Arrancavam-lhe a camisa do corpo
e ainda por cima davam-lhe facão e cadeia. Pois não
trabalharia mais, ia descansar.
Talvez não fosse. Interrompeu o monólogo, levou uma
eternidade contando e recontando mentalmente o dinheiro.
Amarrotou-o com força, empurrou-o no bolso raso da calça,
meteu na casa estreita o botão de osso. Porcaria.
Levantou-se, foi até a porta de uma bodega, com vontade de
beber cachaça. Como havia muitas pessoas encostadas ao
balcão, recuou. Não gostava de se ver no meio do povo. Falta
de costume. As vezes dizia uma coisa sem intenção de ofender,
entendiam outra, e lá vinham questões. Perigoso entrar na
bodega. O único vivente que o compreendia era a mulher. Nem
precisava falar : bastavam os gestos. Sinha Terta é que se
explicava como gente da rua. Muito bom uma criatura ser
assim, ter recurso para se defender. Ele não tinha. Se
tivesse, não viveria naquele estado.
Um perigo entrar na bodega. Estava com desejo de beber um
quarteirão de cachaça, mas lembrava-se da última visita feita
à venda de seu Inácio. Se não tivesse tido a idéia de beber,
não lhe haveria sucedido aquele desastre. Nem podia tomar uma
pinga descansado. Bem. Ia voltar para casa e dormir.
Saiu lento, pesado, capiongo, as rosetas das esporas
silenciosas. Não conseguiria dormir. Na cama de varas havia
um pau com um nó, bem no meio. Só muito cansaço fazia um
cristão acomodar-se em semelhante dureza. Precisava fatigarse
no lombo de um cavalo ou passar o dia consertando cercas.
Derreado, bambo,, espichava-se e roncava como um porco. Agora
não lhe seria possível fechar os olhos. Rolaria a noite
inteira sobre as varas, matutando naquela perseguição.
Desejaria imaginar o que ia fazer para o futuro. Não ia fazer
nada. Matar-se-ia no serviço e moraria numa casa alheia,
enquanto o deixassem ficar. Depois sairia pelo mundo, iria
morrer de fome na catinga seca.
Tirou do bolso o rolo de fumo, preparou um cigarro com a
faca de ponta. Se ao menos pudesse recordar-se de fatos
agradáveis, a vida não seria inteiramente má.
Deixara a rua. Levantou a cabeça, viu uma estrela, depois
muitas estrelas. As figuras dos inimigos esmoreceram. Pensou
na mulher, nos filhos e na cachorra morta. Pobre de Baleia.
Era como se ele tivesse matado uma pessoa da família.

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