capítulo IX - Baleia

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A CACHORRA Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o
pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num
fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam,
cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços
dificultavam-lhe a comida e a bebida.
Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um
princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário
de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a
pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato,
impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas
murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base,
cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.
Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de
pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção
de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.
Sinha Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos
assustados, que adivinhavam desgraça e não se cansavam de
repetir a mesma pergunta: - Vão bulir com a Baleia?
Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de
Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia
corria perigo.
Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os
três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia
do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o
chiqueiro das cabras.
Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas Sinha
Vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçouse
por tapar-lhes os ouvidos prendeu a cabeça do mais velho
entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo.
Como os pequenos resistissem, aperreou-se e tratou
de subjugá-los, resmungando com energia.
Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se:
naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa.
Pobre da Baleia.
Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano
da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou.
Coitadinha da Baleia.
Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como Sinha
Vitória tinha relaxado os músculos, deixou escapar o mais
taludo e soltou uma praga: - Capeta excomungado.
Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde,
zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio
enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.
Pouco a pouco a cólera diminuiu, e Sinha Vitória, embalando
as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos
e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar
cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava
sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e
lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para
ver se realmente a execução era indispensável.
Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo
castanholas com os dedos. Sinha Vitória encolheu o pescoço e
tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto era
impossível, levantou os, braços e, sem largar o filho,
conseguiu ocultar um pedaço da cabeça.
Fabiano percorreu o alpendre, olhando a baraúna e as
porteiras, açulando um cão invisível contra animais
invisíveis: - Eco! eco!
Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à
janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia
coçando-se a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a
espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada,
enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro
lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as
pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a
janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se
no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o
animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo,
adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar as catingueiras,
modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os
quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se
pos a latir desesperadamente.
Ouvindo o tiro e os latidos, Sinha Vitória pegou-se à
Virgem Maria e os meninos rolaram na cama, chorando alto.
Fabiano recolheu-se.
E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no
quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às
panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o
pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu
encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras.
Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem
destino, aos pulos.
Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E,
perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés,
arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis
recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia
uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobriase
de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se
levantava, tinha folhas secas e gravetos colados as feridas,
era um bicho diferente dos outros.
Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguerse,
endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o
resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida,
mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando as unhas
no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e
aquietou-se junto as pedras onde os meninos jogavam cobras
mortas.
Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as
pernas e não as distinguiu : um nevoeiro impedia-lhe a visão.
Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia:
uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase
imperceptíveis.
Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas
polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a
pedra.
Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O
nevoeiro engrossava e aproximava-se.
Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o
cheiro vinha, fraco e havia nele partículas de outros
viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito.
Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de
subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam
em liberdade. Começou a arquejar penosamente, fingindo
ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não
experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se
embotava: certamente os preás tinham fugido.
Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano,
que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um
objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a
tremer, convencida de que ele encerrava surpresas
desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e
encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o
rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha
nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e
consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o
gado quando o vaqueiro batia palmas.
O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a
respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das
pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou.
Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.
Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão,
com certeza o sol desaparecera.
Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o
fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.
Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de
noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao
bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os
meninos. Estranhou a ausência deles.
Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas
Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se
achava nem percebia que estava livre de responsabilidades.
Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar
as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar
pelas ribanceiras, rondar. as moitas afastadas. Felizmente os
meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde Sinha
Vitória guardava o cachimbo.
Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a
criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos
arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano
roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia,
mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava,
emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora
parecia que a fazenda se tinha despovoado.
Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos
desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o
que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no
quarto e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio
desvaneciam-se no seu espírito.
Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que
serviam de trempe. Antes de se deitar, Sinha Vitória retirava
dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha
o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro
descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava.
E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e
saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.
A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de
Baleia. Do peito para trás era tudo insensibilidade e
esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de
mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.
Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra
estava fria, certamente Sinha Vitória tinha deixado o fogo
apagar-se muito cedo.
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de
preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As
crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio
enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de
preás, gordos, enormes.

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