X - HÁ DIAS ASSIM

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Já são 8 horas e eu ainda nem sai de casa. Definitivamente vou perder o autocarro. Não posso perder o autocarro, tenho de correr. Começo a minha corrida para a paragem, não é que se possa chamar a este passo apressado e atrapalhado de corrida, mas é uma boa tentativa, a melhor que consigo a esta hora da manhã.

Penso em tudo o que perderia se perdesse o autocarro: os primeiros minutos da primeira aula eventualmente, pois posso demorar algum tempo a convencer o meu pai a levar-me e a ouvir o seu sermão da minha falta de responsabilidade, blá, blá, blá, isso até que não seria mau, visto que a primeira aula é educação física, eram menos 5 minutos que eu correria...perderia mais o quê? A conversa matinal com as MAS e claro, não veria o seu rosto, numa das poucas oportunidades do dia em que me é possível admirá-lo, perderia, mais uma vez, a hipótese de me sentar ao seu lado ou de que ele se sente ao meu, isto porque todos os dias sonho que vamos lado a lado para a escola, a rir e a conversar muito, o que nunca aconteceu porque há sempre alguém que se acomoda à beira do Harry antes que eu o possa fazer.

Uh! Que alívio, ainda há gente a entrar no autocarro, corro mais um bocadinho e consigo ser a última a apanhá-lo, corrida ganha. Quando entro, percorro todo o interior do autocarro com o olhar na procura de um lugar para me sentar e, por incrível que pareça, o lugar ao seu lado não está ocupado, mas não sei se há-de ser meu, se calhar era melhor não, tem muitos outros sítios onde me posso sentar...mas ele nos últimos tempos até tem sido simpático comigo, apesar de eu já não falar com ele há precisamente 3 dias, e não posso esquecer o facto de que é sempre ele que inaugura as nossas conversas, talvez esta seja uma boa altura para mudar essa tendência.

"Posso-me sentar?" Pergunto esboçando um sorriso estúpido na cara.

"Sim." Ele responde com uma expressão totalmente contrária à minha, com indiferença como se não me conhecesse, com frieza como se eu fosse uma intrusa. Eu não devia ter mudado a tendência, porque, por alguma razão, algo nele mudou primeiro.

Há acontecimentos dos quais nunca nos arrependemos de ter vivido, outros que só passado muito tempo nos bate a consciência à porta e percebemos o quão mal agimos, há ainda aqueles momentos, em que basta um segundo, uma palavra apenas, para nos levar a querer voltar atrás no tempo e fazer tudo de maneira diferente. Quem me dera nunca ter querido me sentar ao lado do Harry, quem me dera nunca ter perguntado se podia, quem me dera ter perdido o autocarro, porque nada é pior do que passar a viagem dos nossos sonhos de maneira totalmente oposta à sonhada, sem qualquer marca de riso ou diálogo, apenas um tempo perdido e infindo, marcado pelo silêncio e, pior do que isso, pela indiferença.

Se calhar ele já nem sequer se lembra de mim, se calhar eu sou mesmo uma intrusa, mas da última vez que estivemos juntos ele até foi querido. Se calhar é por ser cedo, nem toda a gente acorda bem-disposta...Se calhar passa-se alguma coisa...

"Fala tu com ele, Vitória. Pergunta-lhe se está tudo bem, ou assim." Sugere o meu inconsciente, como sendo a melhor coisa a fazer. Mas e se ele me volta a responder sem qualquer tipo de emoção e se ele nem responder...Tenho medo...Também estamos quase a chegar e ele tem certamente mais coisas que fazer do que conversar comigo.

...

Esta semana tem sido um bocado má, foi como se uma onda de desânimo me tivesse molhado e eu não me conseguisse secar, já é quinta-feira e desde a terça de manhã que nada de novo preenche as minhas horas, e para piorar ainda mais as coisas, sempre passo pela Sara ela começa a cochichar e, de repente toda agente que está com ela se ri, tento não pensar que se estão a rir de mim mas é inevitável.

Para me livrar desse tipo de assombração mental: vejo séries, como, volto a ver séries, depois volto a comer e já me esquecia, também estudo, não é que o estudo se apresente uma boa cura, sendo desse modo a menos utilizada. Se antes isto bastava para eu ter um bom dia, agora sinto-me diferente e estranhamente incompleta, por nada mais acontecer, por ele já não acontecer. Se antes não distinguia bem a felicidade da não tristeza, hoje percebo que estar feliz não é o mesmo que não estar triste. Agora sei em qual sempre encaixei, mas não sei a qual encaixo de momento. Sinto-me triste sem razão para a tristeza, sinto-me perdida sem um caminho para seguir e sem ânimo para caminhar. Há dias assim.

My YouthOnde histórias criam vida. Descubra agora