A vida das pessoas será melhor no futuro, mas mesmo com toda a tecnologia e mudanças sociais que virão, andar de ônibus ainda será uma merda. Ter um veículo continua sendo algo muito caro, por isso o transporte público é o meu companheiro diário. Naquela noite havia poucas pessoas no ponto aguardando o veículo chegar. A cidade cinza e sem vida parecia cobrar de nós o pouco de força que restava após um longo dia de trabalho. Éramos apenas algumas dúzias de rostos cansados naquela condução, várias histórias silenciosas ou silenciadas, ás vezes é difícil discernir.
Eu sou um dos cientistas recém contratados do Instituto Tecnológico Nacional, mas isso não significa nada. Sou apenas mais um pesquisador, num prédio com milhares deles. Um peixe no oceano, ou apenas uma areia no deserto, escolha a analogia que preferir. Nós produzimos tecnologia como uma máquina de café expresso prepara uma bebida após receber alguns créditos.
No Instituto o computador central faz uma salada de todas as informações que a Iniciativa Científica Internacional produz. Utilizando inteligência artificial, ele seleciona potenciais ideias ou projetos. Em seguida, despeja na mesa dos pesquisadores listas e mais listas digitais de coisas que são matematicamente interessantes para conferência, validação e "desenvolvimento". A máquina aprendia conosco a identificar potenciais ideias e projetos, apresentava oportunidades de melhoria. Ele facilitava todo o trabalho que antigamente demorava anos para ser feito.
Pois é, acabou o tempo em que a pesquisa era uma descoberta, hoje apenas mineramos conhecimento nestes processos aleatório de sorte e acasos. Por isso não há orgulho nenhum em ser o cientista do mês. Você é apenas o mais sortudo da organização.
Pensar no trabalho estando fora dele não é algo produtivo. É como mentalizar novos chicotadas quando o açoite termina. Não valia a pena, mesmo que aquelas ruas não espirassem nenhum outro pensamento, eu precisava me esforçar.
Se minhas preces pudessem ser atendidas imediatamente, o veículo não sairia do lugar, pois forças do universo não saberiam o que fazer. Ao mesmo tempo que precisava chegar em casa logo, para finalmente descansar, eu gostaria que demorasse bastante, pois não queria encarar Gustavo quando chegasse. Morávamos juntos fazia quase dois anos. A casa que um dia já foi o paraíso na terra, estava caminhando para se tornar um inferno.
Fazia alguns meses que a relação não era mais produtiva, e nem os momentos de mais intensa sintonia conseguiam melhorar a situação. Nestas horas, era como acender uma vela na escuridão, mas em seguida ela se apagava aos poucos e tudo voltada ao breu de antes. Nossas brigas tinham ciclos semanais, pareciam aquela história de começar dieta na segunda-feira. Fazíamos mil planos e promessas de que as coisas iriam melhorar, para no instante seguinte cometermos os mesmos erros novamente.
Eu só queria entender onde foi que dobramos a esquina errada. Pensar nisso me deu vontade de olhar registros de alguns meses antes. Felizmente os antigos aparelhos celulares foram substituídos por assistentes virtuais em tecnologias vestíveis. Meios de comunicação estavam em diversos lugares da cidade e do corpo, eu gostava muito do projetor holográfico de pulso. Era excelente para visualizar fotos e vídeos.
Ao acionar meu dispositivo favorito, procurei pela pasta Ele e Eu, dentro dos arquivos pessoais. Comecei a ver cenas da nossa primeira viagem juntos, o dia da mudança, a escolha da decoração, a conversa para marcar o primeiro encontro, o primeiro beijo e até a primeira noite juntos. Naquele dia ficamos até tarde na rua, e eu voltei pra casa com a sensação de um pedaço de mim tinha ficado para trás. Foi uma sensação gostosa naquele dia, e olhar aquilo hoje era como fazer uma redescoberta. Parecia um outro passado, pois o presente não tinha nada a ver com aquilo.
Enquanto olhava com carinho para aquela realidade, que parecia não ser a minha, o aparelho sinalizou. Fechei a projeção de fotos para abrir o mensageiro. Era Gustavo. Ele mandara um vídeo pedindo para passar num mercado e comprar a comida da Quora, nossa cadela. A mensagem era simples, e objetiva e terminava com um beijo sem vida e automático.
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Cozinhando Letras
RandomA Arte de Cozinhar me lembrar a Arte de Escrever. O Escritor é o chefe da obra. Ele tem seu próprio tempero e seu jeito especial de conduzir o mundo que ele cria. Ora faltará sal, ora faltará açúcar, e muitas vezes a pimenta será das boas. Iremos s...