Breve História 8 | Drops

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Eu já havia tido muitos sonhos em minha vida, mas nenhum me chamou tanto a atenção como aquele.

Seus olhos, o modo como sua boca se movia ao conversar comigo. A maneira intima com que, às vezes, tocava meu braço e ria. Seu riso... Seu riso ficou gravado em minha cabeça como música. Aquela música que te emociona e te faz sentir arrepios todas as vezes que se é ouvida.

Eu não sabia quem ele era e, ao acordar naquela manhã, eu não conseguia colar as partes de seu rosto que flutuavam em minha cabeça como um quebra-cabeça solto no espaço.

Assim que eu me vi livre do torpor em que o sonho havia me feito vagar, lembrei-me que estava na hora de ir trabalhar. Estava na hora de me concentrar em minha rotina e deixar passar os pensamentos curiosos que invadiam minha cabeça e me torturavam inconscientemente... 

Ao descer as escadarias estreitas do prédio onde eu morava e sair pela porta de vidro sem verificar a correspondência, abri meu guarda-chuva, observando a chuva cair pesada; uma cortina transparente de água que caia sobre os prédios e as casas da cidade.

Olhei para cima, vendo as nuvens escuras anunciar que o dia seria mais uma vez como os dias que haviam se passado e como os dias que viriam.

Não há como guardar os suspiros nessas horas e nem fazer com que seus olhos não percam o brilho a cada dia que se passa ao perceber que sua vida tão controlada e previsível já não te satisfaz. Que você a vive sem perceber as horas passarem e sem perceber as pessoas que passam por você.

Ergui a gola do casaco e abaixei a cabeça, segurando o guarda-chuva que me protegia da chuva que caia com peso sobre o tecido de lona.

Meus passos, sempre apressados, me levavam automaticamente ao escritório onde eu trabalhava como secretária para um senhor já de idade, que era viciado em café. Não havia beleza nisso. Era apenas um trabalho.

Atravessei a rua, olhando para os lados, sentindo meus pés molharem quando eu pisei em uma poça de água formada no chão.

Em um belo dia, minha mãe havia me dito disse que eu seria feliz e que nada conseguiria me deixar deprimida, que minha vida seria minha satisfação e que a cada passo que eu desse, eu estaria escrevendo um futuro brilhante para mim... Eu tenho me perguntado onde está esse futuro brilhante. Aonde foram parar meus planos, meus estímulos? O que eu havia feito da minha vida?  Onde estava minha vontade de querer ser importante para alguém? Aonde estava esse alguém?

Uma rajada de vento bateu em meu rosto, me fazendo perceber as lágrimas frias, os olhos que ardiam e o soluço involuntário que há muito vinha querendo escapar da minha garganta como um grito de socorro.

O vazio penetrou em meu corpo, deixando-o frio. Um vazio impenetrável e gritante que vinha preenchendo minha vida aos poucos, lentamente... Um vazio que eu vinha tentando preencher conversando sozinha para não cair chorando em um canto da cozinha com pena de mim mesma. Um vazio que eu já não conseguia encher com o otimismo que eu fingia carregar no sorriso em meu rosto.

Solidão.

Mais uma rajada de vento soprou, roubando o guarda-chuva de minhas mãos e levando-o com a chuva para longe de mim.

Parei, observando o ponto vermelho abrir espaço pelas pessoas que andavam no mesmo sentido que eu.

Os pingos começaram a atingir meus ombros e minha cabeça, como se concretizassem a descoberta da minha vida infeliz, misturando-se com minhas lágrimas ao escorrer por meu rosto.

- Hei! Moça! Seu guarda-chuva está voando!

A voz que havia falado comigo logo sumiu no meio das pessoas que passavam por mim me olhando como se eu fosse um empecilho que deveria ser arrancado da calçada.

O primeiro passo que eu dei em direção contraria a que eu ia foi hesitante, como se esperasse uma confirmação, mas os passos que se sucederam a esse, corriam em busca de algo que não poderiam alcançar. Algo que já estava tão longe, distante, que era impossível ser visto ou ouvido. Algo que eu não sabia direito o que era e que eu já não sabia se me esperava.

O guarda-chuva vermelho atravessou a rua cinza, sendo jogado para o outro lado pelo vento forte que soprou em meu rosto junto com a chuva, querendo me impedir de chegar ao meu objetivo.

Minhas pernas se movimentavam como se minha vida dependesse dessa corrida para achar uma solução para todos os problemas que eu construí e não conseguia tirar de cima de mim. Minha respiração ofegante e minha visão turvada de lágrimas de chuva já não trabalhavam racionalmente.

No meio da chuva houve um som alto e estridente que me fez parar assustada, mas meu erro foi não perceber que eu me encontrava no meio da rua e que aquele barulho era feito por um carro que vinha com os faróis acesos em minha direção, tentando não me atingir e não me fazer nenhum mal, mas talvez... Talvez fosse isso o que meu dia estava me guardando, talvez esse fosse meu objetivo ao acordar com a lembrança daquela risada que eu nunca mais voltaria a escutar... Talvez eu tenha vivido até aquele momento apenas para vivê-lo. Então, no meio da chuva, do barulho estridente de vários gritos, eu sorri e logo depois senti minha cabeça girar e meu corpo ficar leve. Não havia duvidas do que acontecia.

Com a respiração fraca e com uma forte pressão sobre o abdômen, abri os olhos para vislumbrar pela ultima vez o céu escuro que chorava sobre mim. Pisquei algumas vezes, atordoada.

- Meu Deus! – uma senhora exclamou com os olhos verdes arregalados ao me ver – ALGUÉM A AJUDE, POR FAVOR!!!

- Liguem para um hospital, precisamos de uma ambulância! Ela está morrendo!!!

Eu nunca achei que fosse verdade aqueles momentos antes da morte em que um filme se passa em sua cabeça, fazendo-a lembrar de tudo o que havia acontecido em sua vida, e eu estava certa, pois não havia no que pensar. A paz que invadia meus poros e minha cabeça me entorpecia me levando para outro nível de consciência. Um nível onde nada acontecia.

Eu conseguia ver os movimentos, ouvir as suplicas, sentir minha respiração tendo um fim... Mas eu estava alheia a tudo isso.

- Saiam! SAIAM DA FRENTE!

Agachei-me em frente ao corpo inerte no asfalto, vendo o sangue se espalhar pela rua e ir embora com a água da chuva para os bueiros sujos da cidade. O rosto pálido e redondo da mulher a minha frente estava plácido como o de uma boneca de porcelana. Seus olhos perdiam a vida lentamente, me fitando com um brilho de reconhecimento.

Eu já havia recebido muitos olhares na vida, mas nenhum me chamou tanta atenção como aquele. Eu sentia que eu havia vivido até aquele momento apenas para poder recebê-lo e nunca mais esquecê-lo. Não havia beleza naquilo, apenas dor. Uma dor que, se eu pudesse, levaria embora, mas que não estava ao meu alcance, por isso, sentei-me no asfalto, colocando a cabeça da mulher em meu colo, sentindo uma lagrima escorrer pelo meu rosto, sem ser percebida pelas pessoas a nossa volta.  Uma lagrima solitária de um homem que sentia ter perdido algo, mesmo sem conhecê-lo.

Aquela mulher morreu em meus braços calmamente, sem dizer uma palavra, e eu apenas chorei, lamentando, sem saber o motivo que me levava a fazê-lo, mas eu o fiz. O fiz por mim, por ela... Pelo seu olhar e pela chuva que caia, sobre nós. 

------------ FIM

- Se quiserem se aprofundar na depressão desse conto, ouçam a música Asleep do The Smiths...

http://www.youtube.com/watch?v=vy0NySCmuFU

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