É noite no Desfiladeiro do Medo e o vento sopra do deserto.
Os Santa Anas, é assim que chamam a esses ventos. Eles sopram do deserto de Mojave e trazem doença e ameaça de incêndio. Dizem alguns que têm esse nome por causa de Santa Ana, a Mãe de Maria, enquanto outros acham que é uma referência ao general Santa Ana, da cavalaria mexicana, um grande criador de tempestades de areia. E outros ainda julgam que o nome deriva de santanta, que significa Vento do Demônio.
Qualquer que seja a verdade, a seguinte é certa: os Santa Anas são sempre quentes como um forno e, muitas vezes, tão carregados de perfume que é como se tirassem o aroma de cada flor que eles sacudiram no seu caminho até aqui. Todo lilaz bravio, toda rosa silvestre, até mesmo a sálvia branca e a erva-moura malcheirosa, cada heliotrópio e moita-creosoto foram colhidos, no quente abraço e trazidos para dentro do canal oculto do Desfiladeiro do Medo.
Aqui não há flores, claro. Na verdade, o Desfiladeiro é quase sobrenaturalmente verde. Algumas das plantas que existem por aqui foram trazidas do mundo externo pelo mesmos ventos crestantes, esses Santa Anas, outras, misturadas com as fezes dos animais silvestres que por aqui passaram — o cervo, o coiote e o guaxinim. Algumas vieram dos jardins dos grandes palácios de sonhos que reivindicam direitos solitários a este canto de Hollywood. E há plantas estranhas ao local — orquídeas e flores de lótus —, cultivadas por jardineiros que há muito tempo abandonaram seus trabalhos de poda e de rega e foram embora, permitindo que crescessem descontrolados os caramanchões, que outrora foram seus tesouros.
Mas, por alguma razão, há sempre algum amargor nas flores que existem por aqui. Até os cervos esfomeados, expulsos nestes dias de suas trilhas costumeiras pela presença de turistas que vêm conhecer a Cidade das Ilusões, pouco tempo passam no Desfiladeiro do Medo. Embora se aventurem pelos picos e desçam pelas íngremes encostas do Desfiladeiro e a curiosidade, principalmente entre os animais mais jovens, frequentemente os leve a saltar por cima das cercas podres e muros arruinados e a entrar nos enclaves secretos dos jardins, eles raramente resolvem passar muito tempo por aqui.
Talvez não aconteça apenas que as folhas e pétalas sejam amargas. Talvez haja murmúrios demais no ar em volta dos coretos em ruínas e eles fiquem amedrontados com o que ouvem. Talvez haja presenças demais roçando seus flancos trêmulos, enquanto exploram as passagens atravancadas. Talvez, enquanto pastam na grama alta, levantem os olhos e confundam uma estátua com um fragmento de vida, fiquem surpresos com seu erro e fujam dali.
E talvez, às vezes, eles não se enganem.
Talvez.
O Desfiladeiro conhece muito bem o talvez, aquilo que pode ser ou não.
E nunca mais do que em uma noite como esta, quando os ventos chegam suspirando do deserto, carregados com o perfume de suas areias e com almas como hóspedes, expressando nostalgia por alguma coisa que sonharam que tinham ou sonharam que haviam sonhado, as vozes tão tênues como a noite e inaudíveis para o ouvido humano, mesmo que neles houvesse alguma coisa para ouvir, o que nunca há.
Isso não é inteiramente a verdade. Às vezes, alguém é tenaz o suficiente para encontrar o caminho até este vale de luxo e lágrimas, um turista, talvez, até mesmo uma família de turistas, tolamente resolvidos a descobrir o que há fora do caminho prescrito, procurando o ninho de amor pulsante famoso ou um vislumbre do próprio ídolo, entrevisto por acaso enquanto passeia com seu cachorro.
Houve mesmo alguns invasores que sem querer chegaram até aqui, orientados para este lugar por sugestões deixadas em alguns relatos obscuros da Velha Hollywood. Eles chegam cautelosos, esses poucos. Na verdade, há algo parecido com reverência na maneira como entram no Desfiladeiro do Medo. Mas, como quer que cheguem, sempre vão embora da mesma maneira: às pressas, com muitos olhares nervosos para trás. Até mesmo os mais empedernidos — até mesmo os que declaram que não possuem um único osso psíquico no corpo - são aniquilados por alguma coisa que farejam aqui.
O sexto sentido que possuem, descobrem, é muito mais agudo do que pensam.
Só quando deixam para trás as sombras ávidas demais do Desfiladeiro e voltam ao fulgor dos cartazes de Sunset Boulevard, é que enxugam as palmas das mãos grudentas de suor e se perguntam por que, em um local não inofensivo, puderam ter sentido tanto medo
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O Desfiladeiro do Medo
HorrorO Desfiladeiro do Medo é um livro sem paralelo: uma descrição implacável e irresistível de Hollywood e seus demônios, contada com um estilo cru e o poder narrativo que transformaram os livros e filmes de Clive Barker em fenômenos mundiais. Hollywood...