(3*) Parte Um - O Preço da Caçada

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Havia dez mil coisas que Zeffer não tinha visto ou sequer vislumbrado na curta visita às vastas e misteriosas câmaras nas entranhas da Fortaleza, imagens assombrando os ladrilhos que não poderia discernir até que fosse completado o trabalho heróico de remover das paredes a obra-prima e enviá-la para a Califórnia.

Ele era um homem culto, mais bem-educado do que a maioria de seus colegas na florescente cidade de Los Angeles, graças a pais que haviam enchido a casa de livros, muito embora, não raro, pouco houvesse de comida na mesa. Conhecia os clássicos e as mitologias que inspiraram os grandes livros e peças teatrais dos antigos. Com o tempo, descobriria nos ladrilhos dezenas de imagens inspiradas por esses mesmos mitos. Em um lugar, mulheres eram mostradas como as Mênades imortalizadas por Eurípides, almas enlouquecidas, a serviço do deus dos êxtases, Dionísio. Elas corriam através das árvores, as mãos sangrentas, espalhando pela relva pedaços de carne masculina. Em outro lugar, amazonas de seio único andavam em passos duros, esticando até atrás seus potentes arcos e soltando tempestades de flechas.

Havia outras imagens — muitas, muitas outras — que não tinham origem em qualquer mitologia conhecida. Em um local, não longe do delta, peixes enormes, que haviam criado pernas cobertas por escamas douradas, andavam por entre as árvores em solenes cardumes, cuspindo fogo. À frente deles, árvores em chamas, de cujas copas aves queimadas levantavam vôo.

No pântano, uma pequena cidade erguia-se sobre pernas, sua presença aparentemente marcando a posição de algum lugar que ali existiu, mas que o tempo engoliu, ou ser uma profecia de algum futuro acontecimento. Os artistas haviam tomado liberdades com a execução da obra, reduzindo as dimensões da cena de tal maneira que os ocupantes da cidade pareciam quase tão altos quanto as casas e podiam ser claramente vistos. Ali havia também excessos, perversões tão profundas como qualquer coisa que a Floresta Selvagem estivesse abrigando. Através de uma das janelas, um homem podia ser visto de pernas e braços abertos em cima de uma mesa, em torno da qual sentavam-se vários convivas, todos observando, enquanto um grande verme entrava por seu ânus e saía pela boca aberta. E havia uma cena de alguma estranha convocação, na qual um grupo de aves pretas com cabeça humana levantava vôo, descrevendo círculos em volta de uma menininha que lhes era a invocadora ou a vítima. Na terceira casa, uma mulher, de cócoras, vertia sangue através de um buraco no chão. Vários homens, da metade do tamanho da mulher acima deles, nadavam na água embaixo e sofriam algum tipo de transformação calamitosa, presumivelmente desencadeada pela menses. Suas cabeças haviam se transformado em formas escuras e monstruosas. Caudas de demônio projetavam-se de suas nádegas.

Como havia avisado (ou se vangloriado?) frei Sandru, não havia parte na paisagem mostrada nos ladrilhos que não fosse assombrada por alguma cena bizarra. Até as nuvens (sem a menor dúvida, com grande inocência) despejavam uma chuva de fogo em um lugar e defecava crânios em outro. Demônios cabriolavam livremente a céu aberto, como dançarinos sob o feitiço de alguma música celestial, enquanto estrelas caíam entre eles. Outros apareciam acima do horizonte, com os risos debochados de emaciados idiotas. E no mesmo céu, como se para sugerir que este era um mundo de penumbra eterna, um sol era eclipsado em três quartas partes por uma lua estranhamente representada, pintada com tanta habilidade que parecia ter massa autêntica, redondeza autêntica, enquanto passava por cima da face da estrela do dia.

Em um lugar foi pintada uma linha de figuras coroadas — os reis e rainhas da Romênia, retroagindo aos tempos antigos —, representadas à medida que marchavam para dentro da terra. A nobre fila apodrecia à medida que descia nas profundezas, abutres caindo sobre a nobreza que adentrava a terra, arrancando olhos reais e línguas que baixavam a lei. Em outro local, um círculo de feiticeiras subia em espiral de um ponto marcado por menires. Suas vítimas inocentes, bebés cuja gordura haviam usado para fazer o unguento voador com o qual haviam se lambuzado, jaziam espalhadas entre as pedras como se fossem bonecas abandonadas.

O Desfiladeiro do MedoWhere stories live. Discover now