Quatro

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Eu estava pronta às cinco. Sou ansiosa, e minha cabeça borbulhava. Eu encontrei Vicente duas vezes. Conversamos muito nos nossos encontros, mas não nos falamos quando estamos longe. Quando eu chorei hoje a tarde por causa da Júlia, eu chorei mais por tudo que eu criei na minha cabeça do que por tudo que realmente aconteceu. Eu já havia inventado um futuro para nós dois, já me imaginava vivendo histórias de comédias romanticas. E daí, fiquei triste porque, de repente, nada daquilo ia acontecer. Vicente não vai me pedir em namoro num lugar bonito, a gente não vai ter uma loft industrial com quadros nas paredes. Também não vai ter um cachorrinho. É engraçado isso que a gente acaba por fazer. É como dizer: eu te amo, Vicente. Mas não pelo que você é, ou pela nossa história, mas pelo que eu inventei. Parece doideira, mas a gente acaba fazendo isso muitas vezes.
Quando Vicente chegou não consegui disfarçar a sombra que pairava sobre mim.
"Você tá bem?"
"Tô. E você?"
"Eu tô bem.. você não parece bem. Quer conversar?"
Ele fez uma expressão preocupada.
"Não, eu tô bem." Forcei o melhor sorriso que consegui.
"Antes de ir ao teatro, quer lanchar? Eu estou com tanta fome."
Eu assenti.
Ficou um silêncio estranho no carro. Tocava Los Hermanos no rádio e eu cantarolava baixinho.
"Você já pensou em ir para o The Voice?"
Eu corei. Ele gargalhou, e foi contagiante.
"Você tem alguma restrição com comida?"
"Na verdade, sou alérgica a carne de porco, mas fora isso, não."
"Eu estou diante de alguém que não come bacon, é isso mesmo?"
"Sim."
"Meu Deus. Não pode fugir nem um pouco? Cara... é desumano. Jesus disse que ninguém morreria feliz se não tivesse, pelo menos uma vez, provado bacon."
"Lá vem..."
"Sério. É divino. Come um dia, quando estiver no hospital, que aí eles já te atendem."
Eu ri.
Ele me levou numa hamburgueria.
"Então, não te chamei aqui pra te matar com um bacon, ou te deixar com inveja do meu baconzinho, mas é porque... eu não sei. Eu gosto de você. Pode parecer doideira, não se assuste, sei que a gente se viu poucas vezes, mas eu gosto muito de estar perto de você. E, de alguma forma, eu sei que você me quer bem. Então, eu quero te contar uma história sobre mim, que acaba por me trazer à situacao que estou no presente."
Eu olhava pra ele enquanto ele tentava escolher as palavras. "Bom, eu já te falei que tive uma namorada, e que acabou não dando certo, lembra?" - Eu assenti - "então, eu conheci Júlia na oitava série, nós tinhamos 14 anos. Jú sempre foi uma pessoa amável e super inteligente. Ela era a melhor aluna da turma, a mais popular e a mais bonita. Júlia era uma leitora. Um desses ratos de biblioteca que sabem uma citação para cada momento da vida. E uma dessas pessoas que se parecem com a Hermione. E eu era um garoto normal. Nunca tive nada de extraordinario em mim, enquanto ela falava 3 línguas, tocava violino e desenhava muito bem. Ela tinha uma sede de viver que eu nunca havia experimentado. Até que a gente caiu como dupla num sorteio, e tivemos que fazer pesquisas com animais. A partir de então, viramos amigos. E a partir da amizade, percebi um dia que a amava. Mas ela foi quem disse primeiro. Foi engraçado porque ela estava tímida e quase chorando. A Jú chora a toa. E entao, começamos a namorar. Ela fez de mim um homem, me incentivou a buscar objetivos, a planejar, me organizar. Aprendi piano e agora falamos 5 línguas. E ai, um dia ela foi tirada de mim e levada para a Inglaterra. A gente disse que superariamos isso, que conseguiriamos. Mas, no fim, doía demais. Estavamos sofrendo muito. E entao, eu terminei. Júlia agora é alguém que eu nem conheço mais. Só que agora ela está na cidade, veio passar férias com os avós, e me procurou. Às vezes eu acho que ela ainda me ama, porque não parece fazer muito sentido. Ela me chamou para encontrá-la amanhã numa exposição no centro da cidade, e eu queria saber o que devo fazer. E eu queria a opiniao de uma pessoa nova. Eu sei que estou te contando muitas coisas de uma vez, mas eu preciso de alguém que eu confio, e que não conhece o casal Vicente e Júlia. Porque eu sei que nós formamos um lindo casal no passado, mas somos pessoas diferentes agora, que precisam ser analisadas como tal. Eu não sei se devo vê-la."
"Eu não estou entendendo sua dúvida..." falei confusa. "Acho que você queria ir pra Londres por causa dela, certo?"
Ele assentiu. Eu prossegui.
"Entao, por que não quer vê-la?"
"Porque eu não sei se vou conseguir ir. Não quero machucar a gente de novo namorando ela, não quero ficar com ela 2 meses e dizer adeus. Eu não quero vê-la partir de novo. Mas não sei o que devo fazer."
"É simples." Eu sorri. "Você a ama?"
"Muito."
"Então vá."
Ele sorriu.
"Mas e se a gente sofrer de novo?"
"Vai com ela, Vicente. Dá um jeito, e vai."
"Você faz tudo parecer tão simples..."
"E é."
Nós conversamos mais. Vicente era uma pessoa insegura, apesar de tudo. Mas Júlia era quem o fazia sentir inseguro. Ele tinha total controle longe dela, mas com ela, ele era uma criança perdida da mãe no supermercado.
O teatro foi horrível. Apesar de amar Chico Buarque, aquela havia sido uma das piores peças que já assisti. Vicente se desculpou por ter me levado pra assistir algo tão ruim. E eu ri. Foi agradável estar com ele naquela noite. Desejei-o boa sorte no encontro quando me despedi.
"Ana, se ela for me contar que tá namorando um panaca londrino, eu posso comprar sorvete e vir assistir comédias romanticas e chorar com você?"
Eu gargalhei.
"Achei que garotos reagiam a términos enchendo a cara com os amigos e pegando todas."
"Eu odeio comédia romântica, mas curto sorvete e diversão."
"Então pode vir, jovem. Mas vai ficar tudo bem. Me conta tudo depois."
Ele sorriu pra mim do carro enquanto eu me apoiava na janela e ficamos parados por alguns segundos encarando um ao outro.

Até que eu resolvi entrar em casa.

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