Histórias de Cego 70 - O Pior Cego é aquele que Acha que Enxerga

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Gente, quem acompanha meu livro já deve ter ouvido eu falar do Marcos Lima, ele é um jornalista que compartilha algumas de suas histórias através de um blog. Sou fã dele, o conheci através do livro, suas histórias são divertidíssimas, é ele postar e eu corro pro site.

Hoje ele postou uma nova história que recomendo lerem, vou postar ela aqui e deixar o link da rede social, lá tem muita, mais muita histórias ótimas de ler.

Beijos, saudades.

;)


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No Instituto Benjamin Constant, , tínhamos professores que enxergavam e outros que não enxergavam. Ah, tinha também uma terceira classe de mestres: aqueles que achavam que enxergavam. Em nome da verdade, é preciso dizer que esta categoria era constituída por apenas uma professora.

E assim era a nobre dama, sábia nos ensinos, andando de um lado para o outro da sala e nos dizendo que estava atenta aos nossos movimentos. A turma era pequena, apenas 10 alunos (entre cegos totais e parciais), mas quem disse que isso facilitava a tarefa da mestra? Bem, era o que ela pensava.

Nós, adolescentes, nem sempre interessados em escutar sobre Guerra do Peloponeso, Divindades Egípcias, arrumávamos um meio de passar o tempo. Foi o caso de dois de meus amigos, que decidiram escutar walkman no meio da aula. Não satisfeitos, resolveram aumentar ao máximo o aparelho que mesmo com os fones de ouvido plugado, emitia um chiado que podia ser captado por todos, inclusive pela professora. Tão logo apercebeu-se daquela estranha fonte sonora, ela começou a procurar de onde vinha aquela interferência em sua aula, mas claro, sem parar de falar. Caminhava rapidamente para um lado e então o Filippe baixava o volume do seu walkman, dando a chance para que ela escutasse o walkman do Felipe, do outro lado da sala. Lá ia ela, falando em romanos e cartagineses, enquanto quase corria para a outra extremidade da sala, onde agora era o Felipe quem reduzia o volume e o Filippe, lá na outra ponta, fazia aumentar novamente o radinho. E a professora, enquanto Aníbal conduzia seus elefantes através dos Alpes na direção de Roma, continuava na caçada ao chiado fantasma da sala da sexta série.

O problema era quando chegavam as provas. Problema para nós, digo, principalmente porque as dela eram, segundo suas palavras, "incoláveis". "dá pra ver se o aluno sabe mesmo"... Só porque eram orais? Orais e ainda por cima individuais. Sentávamos na mesa da professora, ao seu lado. Éramos nós e ela. A pergunta era feito em tom baixo-sussurrante, de modo que só o aluno examinado escutasse. Sei lá, "quem descobriu o Brasil?". Sem saber a resposta, o aluno enrolava, pedia um tempo... "Pode repetir", era clássico, mesmo que a pergunta fosse tão simples quanto a do exemplo deste texto. Também fazia parte do repertório dizer que aquela pergunta era muito difícil e até mesmo pedir uma dica, o que algumas vezes até resultava, desde que ela fosse com a cara do estudante em questão.

Valia de tudo, menos dizer que não sabia. Todo esse misancene servia a um único propósito. Disfarçávamos o tempo necessário para o plano entrar em ação. Porque se cego não enxerga, escuta bem pra caramba. E assim que um dos outros alunos nos postávamos a uma distância prudente, não tão perto que ela pudesse ver e nem tão longe que não pudéssemos escutar a pergunta feita em tom quase cochichado. Uma vez captada, a questão era imediatamente repassada aos nerds da turma. Alguém então escrevia a resposta correta em Braille.

Enquanto isso, ali junto da professora, o aluno a ser examinado pensava e pensava, sempre com o braço muito muito estendido, onde acabava de repente brotando um papelzinho dobrado. E do nada fazia-se a luz. "Lembrei: Pedro Álvares Cabral!", dizia em triunfo, ao mesmo tempo em que amassava entre as mãos a cola da prova incolável. E a professora, com seu tom de voz peculiar: "Isso! Era só se acalmar que você sabia! Dá para ver que você sabe o conteúdo, é só não ficar tão nervoso..."

Chegou o dia da Festa Junina. Todos em polvorosa, alguém tem a ideia de levar uma caixa de estalinhos para a aula de história. Não me lembro quem instalou um daqueles pequenos explosivos bem na rota de passagem da professora. Era só sentar e esperar. E esperar... E esperar... O tempo passava, ela andava de um lado para o outro, nossas respirações presas na tensão e nada. O Felipe, cuja deficiência visual está no , enxergava o suficiente para ir narrando. "Lá vai ela! Vai pisar, é agora..." E o pessoal baixinho, "uhhhh!", enquanto sua passada errava o alvo por centímetros... Ela então ia para o outro lado da sala, mas não demorava nada para percorrer os 5 metros de volta à zona do agrião (ops, do estalinho). E a nossa tensão crescia. "Olho no lance! No pau!!!" E nada...

O tempo passava, os minutos do único tempo de História se esvaíam e o estalinho, incólume, seguia ali, mais solitário que . E nem venham me dizer que ela via o estalinho! Nada disso, era sorte mesmo. Ou azar, depende do ponto de vista (olha a vista aí).

Até que, não aguentando mais a tensão e com pena da professora, uma de nossas colegas de turma, a aluna mais comportada da classe, levantou-se e aproveitando-se do resquício visual de que dispunha, correu para retirar o obstáculo do caminho. O problema é que no afã de fazê-lo sem provocar a desconfiança da mestra, acabou ela mesma acionando o dito cujo. E, de quebra, ganhando uma bronca: "Onde já se viu? Soltar esse negócio aqui no meio da minha aula... Ai Ai Ai! E logo você!"

Por: Marcos Lima.

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