Shanks

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Escola Ruína das folhas / América do Norte / Província de Ontário / 14h25

    Hoje eu só queria ficar em casa e assistir a nova temporada de pokémon, mas mamãe me fez vir à escola neste frio de 8°C. A Ruína das folhas é uma das únicas escolas em Ontário que possuem o terrível sistema de "French immersion schools". Ou seja, nosso idioma de instrução é o francês. Não que isso seja um problema, já que tenho a estranha capacidade de entender várias línguas.
    Lauren Volcano e Sebastian Volcano são os pais mais exigentes que conheço. E por incrível que pareça, são os meus. Desde que me adotaram após o naufrágio de um navio em 2001, me têm como um milagre. E eu realmente não sei explicar o que aconteceu, era recém-nascido e fui o único sobrevivente encontrado nas águas de Grand Bend.
    O Sr. Harley estava falando sem parar sobre as geleiras do nosso país, assunto que já vem se arrastando a três aulas. Até os jornais locais estão abordando o tema, estimativas apontam uma redução de vinte por cento nos próximos anos.
    - Ei magrelo – a voz vinha da minha esquerda.
    - O que foi Davi? Estamos em aula – disse eu, tentando fingir interesse pelas geleiras.
    - Você trouxe a gaita? – sua voz demonstrava agitação e seus olhos refletiam a luz da lâmpada de modo comovente.
    - Sim Davi – Mantive minha voz séria.
    - Você vai tocar não é? Hoje tem aula de teatro e estou tão empolgado – Dizia com sorrisos enormes.
    - Davi, você não deveria tentar conquistar Michelle passando informações sobre mim – vi seu sorriso cair como água – Já parou para pensar que ela deve gostar do que você faz e não do que faço?
    - Desculpe – deitou sobre seus braços na mesa.
    Eu sei que às vezes sou meio duro com as pessoas, mas alguém tem que dizer a verdade. Faz dois anos que Davi confessou sua admiração incontrolável por Michelle, mas desde então o único assunto sobre eles começa com "o Shanks...".  Davi é meu único amigo desde o fundamental, sua timidez e sensibilidade continua a mesma. Ele não sabe reagir, por muitas vezes vi a mesma cena que agora aconteceu, apenas esconde seu rosto e remói o que sente.
    - Davi, eu sei que dói ouvir isso cara, mas eu quero o seu bem. Você é o único adolescente de catorze anos que admiro nessa escola toda. Nunca vi ninguém com o coração igual ao seu, quem mais nesse país abrigou dois mendigos na garagem, quando o frio lá fora era de -2°C? Só você! E sei que Michelle vai gostar de suas qualidades, tanto quanto eu.
    Davi levantou seus olhos lacrimejados e sorriu.
    - Você me ajudou com os mendigos.
    - Porque você me ligou dezessete vezes naquela madrugada – eu também sorria lembrando a proposta de jogar baralho com mendigos em plena madrugada.
    - Me perdoe por aquilo, você também é uma ótima pessoa Shanks – seus olhos agora irradiavam luz.
    - Pode nos dizer como essa tal Michelle vai deter a redução das geleiras Sr. Shanks? – O professor de geografia sorria maliciosamente em minha direção.
    - Acho que o processo é irreversível e que vem se reforçando há tempos, já que a neve e o gelo da tundra e as águas do norte do Canadá atualmente ajudam a refletir para fora o calor do sol.
    O sinal tocou e o fim da aula despertou alegria nos seus vinte e sete colegas de classe.
    - Você sempre tem uma resposta, como faz isso? – Davi ria da expressão do Sr. Harley
    - Isso está sendo assunto de todos os jornais, acabei por decorar algumas frases.
    Sabia que era mentira, mas não sei como explicar a Davi e nem a ninguém. Desde meu último aniversário coisas que nem ao menos já ouvi falar aparecem na minha mente, como um raio surge no céu numa tempestade.

***

    Cheguei ao anfiteatro e logo percebi o nervosismo de todos os meus colegas, andavam em círculos memorizando suas frases, coisa que nunca fizeram, já que ninguém liga para isso aqui. Só Jessica que sonha em ser atriz e tem como inspiração Emma Watson que brilhou na saga de Harry Potter. Davi correu em minha direção e suava descontroladamente, parecia que tinha corrido uma maratona de 20 km.
    - Eu esqueci minhas falas em casa, estou definitivamente ferrado Shanks – agarrava seus cabelos em desespero.
    - Mas por que o desespero? A professora Maria nem veio.
    - Por isso mesmo Shanks! Nosso diretor hoje é Reynald Morninglight.
    - Ai caramba! Ai caramba!
    Reynald Morninglight é definitivamente a pior pessoa para nos auxiliar em teatro! Nosso professor de história é mais temido que a diretora Sílvia. Sua fama de rígido faz os alunos pararem de fazer tudo no mesmo momento que o avistam na Academia Toronto. Sua pele é morena, devido aos anos que passou no Egito escavando a procura de antigas cidades. Seus olhos são cheios de rugas de riso em volta, o que é estranho já que nenhum aluno jamais viu os lábios de Reynald se curvarem.
    As luzes da caixa de som se acenderam como vagalumes, e eu já sabia o que viria a seguir. A tenebrosa voz de Reynald soou pelo palco.
    - Quero todos enfileirados agora – seus olhos transmitiam pureza, mas a voz ainda soava como dragão.
    Fiquei ao lado de Davi na imensa fileira que ali se formou em instantes, nossa pianista Bethany ria do nosso nervosismo e não entendia o porquê tínhamos medo do Sr. Reynald. Ela certa vez disse que ele tem um coração enorme, mas nunca saberei se é verdade. Os professores devem ser outros em suas reuniões. Fico imaginando o Sr. Harley bebendo chá e comendo bolachas com a diretora Sílvia, seria hilário.
    - Antes de começar o ensaio, quero que me respondam por que estão aqui – seus olhos mediam cuidadosamente cada um de nós.
    - Porque temos aula de teatro? – disse Carl como se fosse uma pergunta.
    - Você pode me dizer o que é teatro? – seus olhos desafiavam Carl.
    - Não lembro a definição correta senhor – Carl não conseguia olhar nos olhos do Sr. Reynald.
    Vi minha mão se erguendo no ar instintivamente, a manga larga caiu até o ombro, e os olhos do nosso professor se apertaram em minha direção.
    - Algo a dizer Shanks? – passou a mão em sua testa que começava a suar.
    - Teatro é um termo de origem grega que designa simultaneamente o conjunto de peças dramáticas para apresentação em público e o edifício onde são apresentadas essas peças. É uma forma de arte na qual um ou vários atores apresentam uma determinada história que desperta na plateia sentimentos variados.
    Não sabia de onde viam aquelas informações, mas contemplar a cara do Sr. Reynald foi um presente para mim. Até que essas loucuras de inteligência podiam me beneficiar.
    - Muito bem Shanks, pode descer aqui para conversarmos a sós? Os outros continuem ensaiando – Ele desligou o microfone e dispensou Bethany do trabalho.
    Desci com receio em direção a ele, seus olhos mostravam preocupação e isso estava começando a me assustar.
    - Sim?- eu disse com a voz tremula.
    - Quando você nasceu?
    - Onze de setembro de dois mil e um – não estava entendendo o objetivo daquilo.
    - Essa marca que você tem no antebraço, nunca achou estranha? – ele continuava a suar.
    - Um pouco... Parece a América do norte não é?
    - Não só parece, mas é.

Enviados Onde histórias criam vida. Descubra agora