Casa dos Romão / Florianópolis / Santa Catarina / América do Sul / Brasil / 7h12min
Abri os olhos em direção à janela do meu quarto e já por ali passavam pequenos feixes de luz. Era manhã em Florianópolis. Estiquei-me todo e levantei. Abri as janelas e deixei que a luz inundasse nossa pequena casa. Desde que mamãe se foi, aqueles três cômodos ainda eram grandes demais.
Ao som de "Mais Uma Vez" de Renato Russo, entrei no banho e deixei que a água levasse o peso que os pesadelos deixaram naquela noite. Foi estranho, sonhei com uma menina ruiva imersa em águas e pedindo socorro. Ela sabia o meu nome e disse-me que éramos "enviados", mas logo foi engolida pelas ondas da praia e dali só vi o vermelho se espalhando. Temo que fosse sangue.
- Tem gente que machuca os outros. Tem gente que não sabe amar. Tem gente enganando a gente. Veja nossa vida como está. Mas eu sei que um dia a gente aprende. Se você quiser alguém em quem confiar. Confie em si mesmo. Quem acredita sempre alcançaaaa.
-Ei cantor, seu café está na mesa – a voz de meu pai era reconfortante.
- Obrigado pai. E não se esqueça de que o sol vai voltar amanhã.
- Eu sei Guns.
A água é a melhor coisa do mundo. Não sei por que, mas tenho uma conexão muito grande com o mar. Meu pai sempre dizia que minha verdadeira casa era lá, longe da superfície, da tecnologia, apenas eu e a água. Minha eterna amante.
Terminei de me trocar e fui tomar café. Ao chegar à mesa me deparo com um bilhete de meu pai.
"Nunca deixe que lhe digam
Que não vale a pena acreditar no sonho que se tem
Ou que seus planos nunca vão dar certo
Ou que você nunca vai ser alguém"Te amo Guns.
Eu tenho o melhor pai viúvo de todos os tempos. Augusto Romão é simplesmente a alegria de meus dias e a motivação dos meus sonhos. Um dia eu seria pediatra e lhe daria tudo que não tivemos.
Com o uniforme do "Saque praiano" – nosso time de vôlei – e o livro de poemas do Lucão, vou correndo em direção a Praça da Luz. Essa é a minha rotina de todos os dias, exceto quando não temos jogo, ai apenas deito e leio de frente para o mar.
***
Ganhamos de três sets a zero. O que não é surpresa, já que somos o melhor time da cidade. O treinador Rubens é muito exigente e não gosta de quem se engrandece perante os outros times. Ele sempre disse que é apenas um jogo, e não jogamos para humilhar ninguém.
Ao chegar em casa, liguei o rádio e fui para a cozinha preparar o almoço. Meu pai passava o dia fora, já que agora era CEO da Logística Espacial LTDA, uma empresa de grande importância na região.
Desde criança nunca pisei numa escola, meu pai é fanático pelos meus estudos e gasta tudo em aulas particulares e cursos preparatórios. Ele esquecia que tínhamos uma vida, que podíamos ter uma casa melhor, um carro melhor, mas mesmo assim nunca me ouviu. Sempre dizia:
- Me deixa te dar o que não dei a sua mãe Guns.
Eu não sei se mamãe ia querer aulas particulares para ela, se era isso á que ele se reveria. Meu pai deixou de viver para ele, e começou a viver para mim. Por isso tenho como obrigação dar a ele orgulho.
A campainha soou e eu já sabia quem era. Minha professora de português sempre vinha às treze horas e ficava até as catorze e dez.
- Boa tarde professora Sheila - disse com um sorriso matinal no rosto.
- Boa tarde Gustave – seu tom de voz era sério.
Ela se sentou no mesmo lugar de sempre, na cadeira da direita ao lado das palmeiras de mamãe. Colocou sua bolsa com os enormes livros na mesa e me olhou com calma.
- Gustave, nós temos que estudar. Eu sou paga para isso. Você deveria almoçar antes da minha chegada – ela parecia triste.
- Eu sei, é que hoje eu acabei me distraindo e acabei por ler demais. Isso não vai se repetir – eu dizia com voz melosa, tentando arrancar apenas um sorriso dessa mulher que vivia apenas a trabalho. Não obtive sucesso.
-Gustave – ela dizia com seriedade - está queimando de novo.
- Pelas águas de netuno!
Corri em direção à cozinha e abri o forno que transbordava fumaça. Não deu tempo de salvar o salmão, já tinha se queimado por completo. Tirei a assadeira do forno e coloquei sobre a pia.
Professora Sheila correu em minha direção.
-Está machucado? – seus olhos estavam lacrimejados e suas mãos tremiam segurando a minha.
-Machucado por quê? – foi a primeira vez que não escutei sua voz carregada de seriedade. Ela estava mesmo preocupada e eu nem sabia o porquê.
Virou minhas mãos diversas vezes, tocando-as com suavidade.
-Guns... – ela me chamou pelo meu apelido, coisa que nunca fizera devido sua formalidade – você pegou a assadeira sem luvas. E nem sequer suas mãos estão quentes.
Naquele momento percebi o peso de suas palavras. Era verdade! Olhei minhas mãos, incrédulo pelo que havia acontecido. Estavam tão normais e macias quanto às crianças que agora nasciam.
-Nós temos que estudar não é? – disse querendo afastar aquele clima estranho.
-Isso, isso mesmo Gustave – aparou as lágrimas de seus olhos que saiam sem permissão - já perdemos dez minutos. Não posso esquecer-me de mandar seu pai descontar do pagamento.
- Fala sério! Isso aqui foi culpa minha. Não tem que descontar nada.
- Página trezentos e sessenta e sete, – ela sabia como encerrar um assunto.
***
Após a professora Sheila ir embora, tive aula de matemática com o Sr. Marcos. Não sou muito fã de exatas, mas a matéria de hoje estava interessante. Estudamos progressões aritméticas e geométricas.
O sol ainda não tinha se posto e meu tédio aumentava. Deitado no sofá comecei a lembrar de mamãe cantando naquelas tardes. Meu olhar vagava cada centímetro do nosso aposento até olhar para o adesivo de minha guitarra. Era fogo. O corpo daquele instrumento tinha como anúncio, chamas incandescentes.
Levantei-me rápido e corri em direção ao fogão. Acendi uma boca e tomei coragem para testar o que mais cedo havia ocorrido. Olhando as chamas trepidando, levei meu dedo indicador com relutância até a mesma. Nada aconteceu. Nada sentia. Acabei por colocar toda a minha mão.
- Guns? – a voz de meu pai soou pelo pequeno cômodo.
Puxei minha mão e desliguei a boca o mais rápido que pude. Era tarde demais.
-Pode me explicar por que diabos tem fogo em sua mão? – ele olhava em direção a ela.
Olhei minha mão e definitivamente tinha chamas nas pontas dos meus dedos.
-Ai caramba. Ai caramba.
O amante das águas acabou sendo traído pelo fogo.

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Enviados
FantasyEnviados contará a história de três adolescentes que não fazem ideia do destino que os reservam. Shanks, Gus e Angeles nasceram no mesmo dia, no mesmo horário e cada um com uma marca em seu antebraço idêntica ao continente onde nasceu. Muitos misté...