Angel

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Fundação Whithout – Porto de Cable Beach/ América Central/ Nassau/ 8:45

    Acordo sobressaltada, e olho no relógio só pra me assustar mais. Se quisesse chegar à escola teria que ter acordado ao menos duas horas mais cedo. Levanto cambaleante e olho ao redor do quarto, todas as camas estão arrumadas, ou seja, todas as míseras colegas de quarto levantaram, mas não me chamaram.

    "Elas me pagam", pensei.

    Visto o uniforme da Fundação Without Parents, e saio do quarto silenciosamente para que madame Nora não perceba. Ando pelo corredor nas pontas dos pés. Está escuro e o ar carregado de umidade, o que torna o ar denso em meus pulmões.

    - Onde pensa que vai mocinha?

    Reconheceria aquele sotaque austríaco a quilômetros de distância. Madame Nora me pegara.

    - Quero o grande salão limpo até o horário do almoço. Caso contrário Sra. Gottshalk você e suas tralhas dormirão no porão pelo resto do ano. Está entendendo?

    - Sim senhora – disse com voz baixa.

    - Mas eu não entendo Angeles. O país te dá uma oportunidade de ser alguém e você mata aula? É inacreditável como vocês jovens jogam tudo fora – resmungando Madame Nora virou-se e caminhou em direção a biblioteca. Seus saltos produziam um som estridente, deixando um enorme eco no corredor.

    Odeio Madame Nora. Odeio mesmo. Desde a parte mais putrefata a mais sensível de meu coração. E, cada dia passado ao lado dela, é motivo para odiá-la mais.

    Em 2001, quando cheguei ao orfanato – sim, esta tal fundação –, eu fui entregue nas mãos de Joanne Rumple, a mãe de Madame Nora.

    Joanne era uma mulher adorável, seus cabelos ruivos como o meu chegavam ao cós de suas calças, os olhos azuis eram tão claros quanto à água em que fui encontrada. Os pescadores da região – os mesmos que me encontraram boiando nas Águas de Cable Beach – diziam que Joanne era uma espécie de deusa do mar, mas infelizmente, Joanne, morrera misteriosamente no inverno de 2006. E desde então meu lado bom morreu com ela.

***

    Olho com frequência no relógio do grande salão. Faltam cinco minutos para as doze horas. Tenho que terminar de esfregar o salão a tempo. Logo as outras meninas chegarão para almoçar, e irão me ver nesta situação.

    Esfrego o chão com mais força e agilidade, tenho uma reputação a manter, e não quero que Bea me veja em tais condições.

    Termino faltando dois minutos. Guardo os utensílios no armário ao lado da cozinha, e corro, tirando e jogando as luvas e o avental para trás.

    Corro. Corro como se não quisesse chegar a nenhum lugar, mas minhas pernas treinadas sempre me lavam ao mesmo ponto.

    O Porto de Cable Beach, o lugar onde fui encontrada morta. Sim, os médicos disseram que eu estava morta. Mas estranhamente em poucos minutos joguei toda a água salgada que engolira para fora.

    Ninguém soube dizer de onde eu viera. Nenhum grande naufrágio fora registrado nas redondezas. E só me encontraram devido aos meus cabelos ruivos.

    Alguns pescadores disseram só terem me notado devido ao tom rubro-alaranjado de meus cabelos, diziam eles que ele brilhara de uma forma absurda, colorindo a água de vermelho a minha volta, mas quando chegaram a terra firme, o brilho se dissipara.

    Duvidei por diversas vezes desta teoria. Duvidei até mesmo que eu tivesse sido encontrada em alto mar. Mas duas coisas me provaram o contrário.

    Tive acesso ao jornal de 12 de setembro de 2001, um dia depois de meu encontro. A capa do Jornal Capital era tomada pela foto das Torres Gêmeas, e bem no final, em um texto de pouco mais de dez linhas, com a foto de uma recém-nascida de cabelos de fogo, minha história era narrada. Mesmo com pouca notoriedade meu caso se espalhou pela região, rendendo-me o apelido de "Lava de Água", devido à coloração do meu cabelo na água.

    Desde meu último aniversário, quando completei 14 anos, coisas estranhas vem acontecendo. Toda vez que entro na água, seja no mar de Cable Beach, seja em baixo do chuveiro, meus cabelos brilham, brilham com uma intensidade tão grande que meus olhos chegam a doerem. E a marca que tenho em meu antebraço, parece formigar sempre que isso acontece.

    Havia deixado de reparar nesta marca a um bom tempo. Ao que parece ela estava mais nítida, e havia tomado a estranha forma da América Central, e quando digo América Central, me refiro ao continente. Com todos os países, ilhas, o mar.

    Quase posso enxergar Nassau em minha pele.

    A brisa do mar me desperta do devaneio. Olho ao redor e o sol já se pusera.

    Sinto um impulso de loucura e corro até a casa de meu amigo Gabriel. Ele é brasileiro e tem um pouco de dificuldade com o inglês, mas não é problema já que tenho uma habilidade um tanto estranha, devo confessar, sou capaz de entender qualquer língua, mas Gabe – como o chamo – é o único que sabe.

    Bato em sua porta como se fosse a última coisa que eu faria em vida, e Gabe vem correndo abrir.

    - ANGELES – ele diz. – O que faz aqui? São nove horas! Sua tutora vai ficar uma fera.

    - Ela não é minha tutora – ataco em contra resposta.

    - Ela é sua responsável – ele diz.

    Se tem um defeito que posso citar no Gabe, é a capacidade infinita de andar pelo correto, mas por outro lado, se tem uma qualidade que posso citar é, que as vezes, apenas as vezes, ele deixa isso de lado por mim.

    - Preciso do seu computador – disparo em voz alta.

    - Okay Angel, mas me prometa que assim que terminar voltará para casa.

    - Casa? Você chama aquilo de casa?

    Gabe mora com seus pais, uma brasileira de sangue quente, e um português de sangue frio. Uma mistura do mesmo idioma que deixa qualquer lúcido louco.

    - Onde estão seus pais?– pergunto.

    - Dormindo – responde.

    Entro no quarto de Gabe silenciosamente, e sento de frente à sua escrivaninha. Levanto a tela do Mac prateado, e abro o link do Google. Eu tinha que descobrir o porquê daquilo. Hoje mais cedo, enquanto esfregava o grande salão minha marca de nascença começou a coçar novamente, os respingos de água faziam as pontas de meu cabelo reluzir luz. Algo estava errado, muito errado.

    "marca de nascença em formato de continente", digito.

    A pesquisa abre para imagens, e aparecem muitas pessoas mostrando suas marcas. E, segundo a fonte as marcas são sempre do continente em que vivem.

    Não achei nenhuma parecida com a minha, pelo contrário, as marcas das Américas eram o continente por inteiro, os três juntos.

    Mudo para a opção web, e o primeiro resultado é um tal de Reynald Morninglight.

    Abro a página e o rosto austero e bronzeado de um homem aparece ao lado. Seus olhos negros são adornados por rugas, e exalam autoridade.

    Ali está um olhar que me daria medo.

Enviados Onde histórias criam vida. Descubra agora