cap. 1

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DESDE O DIA EM QUE...
...A serpente emplumada Quetzalcóatl
não pôde mais refletir no Monte Eéia
o sol que carregava no peito, os habi-
tantes do Sul do Reino de Asgard se
viram obrigados a conviver com a noi-
te sem-fim.
O povo noturno vivia sob o gover-
no de Circe, bruxa de olhos rubros e madeixas negras, capaz
de transformar deuses, homens e coisas em bichos de qual-
quer natureza.
— A mais bela asgardiana. Governante do Monte Eéia.
Não basta, milêdi? — questionou Quimera, a cabra com cauda
de serpente e cabeça de leão que servia à feiticeira.
— Sem liberdade, nada disso importa — replicou Circe.
— Chruuu! — tempestuou a cabra, cuspindo fogo.
— Se Hefesto não tivesse criado a mulher...
— Ele apenas obedeceu às ordens de Zeus. O culpa-
do pela nossa desgraça tem outro nome: intolerância.
O Monte Eéia era abraçado pela muralha-fogo
do deus Hefesto. Além de proteger os eeianos, o muro
aquartelava a Guarda de Atena, formada pelos kappas:
os temidos homens-macaco.
Para os habitantes do Monte Olimpo, região Norte do
Reino, tamanha salvaguarda por parte dos eeianos era infun-
dada. Odin, antigo rei asgardiano, havia criado uma barreira
mágica sobre o Sul, isolando a região do restante de Asgard.
Os eeianos, contudo, tiravam do isolamento a es-
perança. Circe e seu povo tinham a certeza de que um dia,
da escuridão, surgiria o sol da serpente emplumada, que
poria em xeque a magia de Odin. E, nesse dia, estariam
preparados para vingar os séculos de segregação.
***
“Porte atlético, olhos e cabelos azulados.”, “Carrega sempre
consigo uma adarga antimagia e uma espada capaz de fazer o
maior dos monstros dormir.”. Era esse o retrato que olimpia-
nas apaixonadas faziam de Thor, o soberano da Monarquia
Asgardiana, o solteiro mais cobiçado de Asgard. Nas poucas
vezes em que o sucessor de Odin saía de seu palácio para
cavalgar Sleipnir no céu boreal, suspiros e olhares derretidos
brotavam por todo canto.
Num daqueles dias de cavalgada, Hermes deixou sua
vertigem de lado e usou as minúsculas asas de seu capacete e
de suas sandálias para alcançar o rei.
— Alteza! — gritou o mensageiro divino, desengon-
çando no céu. — Alteza!
Sleipnir freou suas oito patas.
— Hermes, nobre amigo! Quais novas o trazem aqui
em cima?
— Notícias... huf... nada boas... huf — lufou Hermes,
assim que se aproximou de Thor. Após recuperar o fôlego,
completou: — Uma humana de carne e osso entrará no
Reino de Asgard. E sabe o que isso significa, não sabe?
— Tsc, tolice! Desde o dia em que Pandora libertou os
infaustos da caixa, nossos elos com a Terra deixaram de existir.
— Com todo o respeito, Alteza, não subestime o
caduceu.
Aquele não era um mero palpite de Hermes, mas uma
mensagem oriunda de profetas falecidos, transmitida pela cobra
que habitava o bastão mágico (o tal caduceu) do mensageiro.
— A cobra disse a você que “uma humana de carne e osso
entrará em Asgard”? — inquiriu Thor, repetindo as afirmações
de Hermes.
— Disse. Palavra por palavra.
— Mas quando? Como?
— Não sei, Alteza...
Os profetas costumavam dar detalhes de suas
premonições. A fragilidade da mensagem deu ao rei a fé
de que precisava para se pacientar.
— Tudo continuará como está. Acredite! — pediu Thor,
encostando seu escudo no ombro do amigo. — Profetas também
se enganam.
— Por Zeus, que você esteja certo! — clamou Hermes.
E nos dias que sucederam àquela conversa, as pala-
vras do rei pareciam se materializar.
***
Além dos montes Eéia e Olimpo, havia em Asgard uma pla-
nície chamada Vale das Almas, separando geograficamente
as divergências regionais.
No centro do Vale, uma área de rípios, cavernas
e arbustos retorcidos tinha a incumbência de receber os
espíritos humanos e divinos.
Como tartaruguinhas em busca do mar, as almas re-
cém-chegadas sabiam instintivamente que deviam escolher
uma direção: leste ou oeste.
A leste do Vale, um deserto árido servia de boas-
vindas aos Campos Elíseos. Depois de longa caminhada sob
um calor tropical, os espíritos alcançavam o pé da escadaria
de uma pirâmide asteca. Em seu cume que tocava as nuvens
elísias, o elefante africano Airavata — deus dos homens e
guardião dos céus — guiava os mortos à tão sonhada pós-
vida celestial.
A oeste do Vale, uma exuberante floresta era a porta
de entrada para Hel. Passada a última árvore da mata, do
outro lado da Ponte do Eco, ficavam os degraus subterrâne-
os que levavam os espíritos ao território demoníaco. Sob a
terra, almas suavam eternamente, garantindo imortalidade à
diaba Hela.
Os deuses conheciam as facetas de cada caminho e
quase sempre optavam pelo deserto. Mas esse era um privi-
légio só deles. Os homens tentavam a sorte e, salvo raras ex-
ceções, pagavam pelas estúpidas associações que costumavam
fazer, mesmo depois de mortos...
***
Longe (na verdade, nem tanto) de Asgard, Ísis e seu namora-
do Mateus peregrinavam imersos no encanto da Patagônia.
— Incrível! — soltou Mateus, contemplando o lago
na beira do qual se encontravam.
— Realmente — concordou Ísis.
— Amo este lugar — “Diga que a ama de uma vez
por todas!” — E amo você.
Ahn?! Ela teria mesmo escutado aquela frase? Há
meses namoravam, e o mais próximo que Mateus havia che-
gado de uma declaração de amor fora um irritante “Como eu
gosto de você!”.
— Eu também te amo — soltou Ísis, tirando da garganta
o que queria ter dito desde o primeiro beijo, na festa dos calouros,
no auditório da universidade. E emendou: — Pra sempre!
Mateus procurou por algo que pudesse marcar aque-
le momento, e achou.
— Vê aquela flor amarela, anjo? — perguntou ele,
apontando para um lírio de longas pétalas ao pé de uma peque-
na encosta rochosa.
Ísis forçou a vista e enxergou um pontinho dourado
que se destacava em meio aos tons verdes da vegetação.
— Uh-hum. O que é que tem?
— Será sua, amor de mi vida.
Ísis achou graça naquelas palavras. Teria a Patagônia
o poder de tornar os homens mais românticos?
— Espere aí! — pediu ele, distanciando-se.
— Tudo bem. Só não demore!
Ísis sentou-se às margens do lago, e começou a ta-
car pedriscos na água, tentando fazê-los pular. No quarto
arremesso, abriu uma fenda no ar — pelo menos, era o que
parecia ter feito.
Hipnotizada pela curiosidade, Ísis tirou seu par de tênis
e caminhou pelas águas raseiras e geladas até chegar próximo o
suficiente daquele fenômeno que seus olhos custavam a acredi-
tar. Agachou-se para observar melhor, mais de perto.
Num sopro, foi sugada pela fenda

ASGARDOnde histórias criam vida. Descubra agora