cap.2

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NENHUM SINAL DO LAGO E DA FENDA...
... De Mateus e da flor. Ísis estava
caída nos limites de um precipício
cujo fundo era formado por nuvens
brancas, nada mais. Estava distante
de qualquer referência familiar.
— Pelos meus cálculos, a senhori-
ta ultrapassou três quilômetros de
nossa fronteira. Nem um centímetro a mais, nem um a menos
— alertou Trênus, com sua voz fininha e engraçada.
Os olhos de Ísis caçaram o som, e conseguiram cap-
turar a estranha imagem de uma trena falante.
— A senhorita precisa voltar pro Vale das Almas —
avisou a criaturinha. — Mas antes, me conte como entrou
aqui. Exijo uma boa explicação!
— O que você quer de mim?! Não me faça mal,
por favor!
— Pare de assustá-la! — pediu o velho Terminus,
surgido como que do nada.
— Ela tem que se explicar, senhor! Não é todo dia
que um espírito do Vale entra em Olimpo.
— Será que você não percebeu? Ela não fala a nossa
língua nem é gelatinosa — considerou o deus da fronteira, en-
quanto guardava a trena no único bolso de sua calça de couro.
— A jovem é de carne e osso!
— De carne e osso?! Como isso aconteceu?
— Isso nós vamos descobrir.
Após um longo suspiro carregado de preocupação,
Terminus chamou num só grito:
— Yooo!
O vento começou a soprar forte. Ísis olhou para cima
e viu um dragão vermelho e lunado. Tomada pelo pavor,
achegou-se a poucos milímetros do abismo.
— Do Vazio ninguém volta — alertou Terminus. —
É melhor você ficar onde está.
Embora Ísis não tivesse compreendido uma só palavra
pronunciada pelo velho, seu olhar dizia claramente que se jo-
gar não era a melhor alternativa. Como não havia outra, Ísis
encolheu-se no chão. O zunzunar do vento causado pelas asas
do dragão fez suas mãos suarem e seu coração descompassar.
Então desmaiou.
***
Entre as árvores mais robustas da floresta de Olimpo, nas cerca-
nias do palácio real, destacava-se solitária uma casa inteiramente
construída com obras de arte dos mais renomados artistas. Era
a morada de Apolo.
— Nada de contornos nítidos, percebe? Exemplo clás-
sico de uma pintura impressionista — explicou o deus da arte,
mostrando ao rei sua nova aquisição (Apolo era a única deidade
que vez ou outra entrava no Céu e no Inferno para encomendar e
buscar obras de artistas falecidos).
— Quem o pintou? — perguntou Thor. — Monet?
Seurat?
— Michelangelo! Como ousa confundir Monet com
Seurat? — dramatizou o sábio. — Pare de chutar, Thor! Um
rei precisa ter convicção. Seu pai era um homem de convicção.
Thor espremeu os olhos na tinta sobre a tela, ten-
tando descobrir sua convicção. Foi interrompido pela en-
trada do deus-vento na casa, que ventaneou ao rei notícias
palacianas.
— Por que Vayu não dá seus recados do lado de fora?
Nhá! — grunhiu Apolo, arranjando os papéis rebuliçados
por ele.
— Em nosso reino, Apolo... — balbuciou Thor. —
Uma mulher de carne e osso entrou em nosso reino!
— Michelangelo!
***
Num pequeno povoado de Eéia, a taberna de Dionísio fervia.
Regados a vinho, moradores vibravam seus corpos ao som de
aldeões talentosos. O álcool dava ao lugar um aspecto sinuoso,
enleado e profano.
Do chão tabernal suado, surgiu Hela.
— Pontual como sempre — observou Dionísio ao
vê-la chegar.
A diaba desfilou sua ruividão sublime no corredor
dos quartos orgiásticos. Num deles, Circe a aguardava. Sim,
elas tinham um romance clandestino. Para Circe era um caso
carregado de expectativa (“Um dia, levarei você ao Norte
pelo mundo subterrâneo.”) e para Hela, de prazer (“Sou a
mais bela, é verdade. Muitos e muitas me querem. Mas só
você me tem.”)
***
Assim como o canto do galo no mundo dos homens, o vôo
da Quetzalcóatl até o ponto mais alto do Monte Olimpo
anunciava o nascer de mais um dia.
Embora desmaios levassem minutos, o de Ísis havia
atravessado a noite. Ao acordar, percebeu que aquele não
era o seu quarto, tampouco o quarto do hotel onde estava
hospedada com Mateus na Patagônia. Então lembrou da
fenda, e de Terminus, e do dragão, e de Trênus — nessa
ordem. Olhou para o lado. Um rapaz bonito e fantasiado
de rei a observava.
— Como vim parar neste quarto... com você? Aliás,
quem é você? — perguntou ela, levantando as costas da cama.
— Posêidon chegou com a água? — perguntou Thor
aos faunos que faziam vigília na porta do quarto.
— Cheguei, Alteza! — avisou o senhor escamoso,
trazendo consigo uma concha. — Aqui está.
— Ah, obrigado. Já foi informado do ocorrido?
— Sim, e custo a acreditar.
— Quero saber o que está acontecendo. Agora! —
sentenciou Ísis, tentando esconder sob carrancas e gritos o
assombro diante de tantas criaturas estranhas.
O rei ajoelhou-se ao lado da cama em que Ísis esta-
va sentada.
— Se você me tocar... — ameaçou ela, protegendo
infantilmente o corpo com o fino lençol.
— Beba — pediu Thor, levando a concha às mãos
delicadas de Ísis.
— O que você quer? Que eu beba isso aí, por acaso?
Pode esquecer! — avisou, amarrando a cara ainda mais.
Thor tomou um gole do líquido, mostrando que aqui-
lo não a faria mal. E, sem saber ao certo o porquê (“Tirando
a fantasia, ele até que é bonitinho.”), Ísis deu um voto de
confiança ao rapaz.
— Água do mar... — deduziu Ísis.
— Na verdade, água salgada do Rio Olimpo — corri-
giu Thor.
— Você está me entendendo?
— Agora estou. Prazerosamente — derreteu-se o
rei. — Seja bem-vinda a terra dos deuses.
— Deuses?! — Ísis sabia que não estava sob efeito de
substancias alucinógenas, sabia também que aquilo não era
um manicômio ou coisa parecida. — Você é um deus?!
— Sim. Filho de Odin e de Afrodite. E rei deste lugar.
— Odin. Afrodite. Deus da magia. Deusa do amor
— embaralhou Ísis, tentando recordar das coisas que estu-
dou na escola.
— Pelo visto você sabe mais sobre nós do que nós
sobre você.
O rei fundiu, apaixonado, seu olhar ao da humana.
Poderia ficar por dias assim, se não fosse a chegada baru-
lhenta de Hermes e do coiote curandeiro.
— Ali está ela! — avisou Hermes ao coiote.
— Aquele é Hermes, nosso mensageiro divino —
apresentou Thor. — E esse é Dakota, o curandeiro do reino.
Veio ver como você está.
— Hmmm... Func, func... Uh-hum... — minuciou
Dakota, focinhando Ísis. — Ela está um pouco fraca. Func,
func. Precisa de comida e descanso.
Thor pediu a uma das ninfas do palácio que prepa-
rasse uma bandeja com o que havia de melhor na cozinha.
— Thor, precisamos conversar — disse Hermes (e
quando Hermes o chamava pelo nome...). — Em particular.
O rei assentiu com a cabeça.
— Com licença, donzela — pediu Thor.
— Ísis. Meu nome é Ísis — informou, esboçando
um sorriso.
O sorriso estagnou o rei de tal modo que Hermes,
para ser ouvido, teve que puxá-lo pelo braço e arrastá-lo por-
ta afora.
— O que foi, Hermes?!
— Escute! O feitiço que seu pai jogou sobre o Sul
será quebrado.
— Como é?! Impossível!
— Tão impossível quando a entrada de uma huma-
na em Asgard, não é? E olhe o resultado! — disse Hermes,
apontando para Ísis. — Ela é a causadora dos problemas.
— Ísis é apenas...
— Uma mulher?
— Sim. Uma mulher.
— Alteza, lembre-se de Pandora! Ela também era
uma simples mulher.
— Foi Hefesto quem criou as pestes e maldades
guardadas na caixa. Pandora apenas as libertou.
— Ah, entendi. Você está apaixonado pela humana
— incriminou Hermes.
— Não. Não estou. Não mesmo!
— Aqui está, Alteza — interrompeu a ninfa, trazendo
com ela a bandeja carregada de doces e frutas. — Posso servir
a hóspede?
— Não será necessário — disse o rei, pegando a ban-
deja. — Eu mesmo a servirei.
— Os olimpianos estão em perigo, Alteza — conti-
nuou Hermes. — É bom agirmos rápido.
— Preciso alimentar Ísis, nobre amigo. Depois...
— Depois resolvemos os problemas do reino. Claro!
— completou Hermes, ironicamente. — Afinal, para um rei
os problemas de seu reino vêm depois das agruras de uma
mulher... Ah, que decepção! Seu pai não faria isso.
— Eu não sou meu pai — respondeu Thor, e pediu a
todos que se retirassem do quarto.

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