DIARIAMENTE, TERMINUS CAMINHAVA...
... De um lado a outro da fronteira
olimpiana. Ela tinha centenas de
quilômetros e Terminus fazia o
trajeto a pé — nada de dragões ala-
dos ou cavalos de oito patas.
— Como aquela humana entrou
aqui? Como não percebi sua en-
trada? — perguntava-se em tom de indignação, enquanto
andava acelerado, vistoriando os pormenores fronteiriços.
Ele era Terminus, o deus da fronteira. Como pôde
deixar aquilo acontecer?
— Como pude deixar aquilo acontecer?! Por Zeus!
Num ponto de onde se avistava o Vale das Almas e
mais adiante a barreira mágica que circundava o Monte Eéia,
Terminus sentou para descansar. Havia muito tempo não ca-
minhava tanto, e já não era mais o jovem de séculos atrás.
Ao passar a vista sobre a barreira mágica de Eéia,
Terminus viu aquilo que imaginara ser impossível de vislum-
brar. Então pegou sua luneta, para assegurar-se que os olhos
não o estavam ludibriando.
Não estavam.
***
Ao sobrevoar com seus vinte e tantos metros a muralha-fogo
de Eéia, a sentinela Mundial sentiu a vista arder. Um feixe de
luz solar parecia ter rompido a barreira mágica e aberto um
buraco que a cada minuto alargava-se mais. Seguindo a luz,
a jibóia alada chegou ao outro lado da barreira.
***
— Doces e frutas — disse Thor, carregando a bandeja. —
Espero que aprecie nossa comida.
Nem bem a bandeja foi posta sobre seu colo, Ísis co-
lherou um manjar — a fome havia coibido seus bons modos.
— Tenha um bom apetite! — desejou o rei, saindo
do quarto.
— Hei, aonde você vai? — perguntou Ísis, de boca
cheia. — Fique comigo!
Aquilo era tudo (quase tudo) que Thor gostaria de
ouvir.
— Claro! — concordou, sentando ao pé da cama.
Instante de silêncio — se estivesse num elevador, Thor
comentaria sobre o tempo. Mas estava em Asgard. Então falou:
— Pela primeira vez recebo uma humana em meu
palácio.
— Pela primeira vez sou recebida no palácio de alguém.
— ...
— ...
— Você se lembra de como entrou aqui?
— Mais ou menos. Sabe a Patagônia?
— Perdão?
— Patagônia, uma região da Argentina.
— Não conheço a Terra. Nasci e cresci em Asgard.
— Entendo — limitou-se a dizer Ísis, ganhando
tempo para mordiscar o que parecia ser uma nectarina, só
que mais adocicada. — Enquanto você conversava com
Hermes — recomeçou —, Posêidon me contou que este
lugar se tornou o exílio dos deuses e monstros que fugi-
ram da Terra, logo depois que Pandora abriu a tal caixa.
Thor confirmou as palavras do deus dos mares.
Falou dos confrontos políticos e sociais gerados pelo de-
sejo de grande parte dos exilados, sob a voz de Circe, de
“democratizar Asgard”. Comentou o feitiço que seu pai
lançou no Sul para cessar as disputas. Por fim, embargou
a voz ao falar da morte de seus pais e de sua precoce as-
censão ao trono.
— Sinto muito pelos seus pais. Pensava que deu-
ses fossem eternos.
— Envelhecemos e morremos como vocês — finali-
zou Thor, mudando o foco da conversa: — Mas você estava
me contado sobre a Patagônia...
— Ah, sim. Enquanto meu namorado foi buscar
uma...
— Você é comprometida?
— Era — “Comprometida? Que palavra estranha!”
— Quero dizer, sou. E você?
— ...Não.
Ísis ficou feliz, e isso a incomodou. Thor ficou triste,
e isso também o incomodou.
— Como eu ia dizendo, enquanto ele foi buscar uma
flor, atirei uns pedriscos no lago e...
— Havia monstros no lago?
— Monstros? — repetiu ela, às gargalhadas. — Na
Terra, as pessoas costumam tacar pedriscos na água pra pas-
sar o tempo. Não há monstros por lá. Não como o de vocês.
Nós é que somos os monstros. Nossos próprios monstros.
Thor achou todas aquelas informações estranhas,
mas não falou nada para continuar a ouvi-la. Então Ísis con-
tou da fenda e de todo o resto.
— Os elos que nos ligam à Terra foram fechados há
séculos, mas você conseguiu reabrir um deles com uma sim-
ples pedra.
— Ah, é? E isso é ruim?
— Espero que não.
***
— Ruim? Não. Transssformador — definiu Mundial,
que a essa altura já serpenteava Terminus, no coração
da floresta olimpiana. — E como ela entrou aqui? Pelo
Vale das Almasss?
— Talvez — respondeu Terminus. — Encontrei a hu-
mana caída próximo ao Vazio, na parte oeste da fronteira.
Mundial abocou a deidade e voou na direção indicada.
— Ali! Ela estava caída bem ali — disse Terminus,
apontando para baixo.
Trênus botou seus olhinhos mortificados para fora
do bolso, e reforçou as palavras de seu mestre.
— Ela estava realmente ali.
Aquelas informações bastavam. Com sua impiedade
reptiliana, Mundial jogou o velho e sua trena no Vazio.
***
A luz intensa agora iluminava quase todo o Monte Eéia, ce-
gando os eeianos por vários minutos.
Circe estava na escuridão da muralha-fogo, reunida com
Hefesto, quando recebeu as novas através da jibóia Mundial.
— Esse exemplar de sua criação chegou tarde, mas
chegou — disse a bruxa a Hefesto. — E toda hora é uma boa
hora de se fazer justiça.
— Mandarei Atena preparar a Guarda, milêdi —
avisou o deus do fogo, tamborilando os dedos flamejantes
sobre seu cajado de pedra. — É o momento de cobrarmos os
anos de escuridão.
Montada em Quimera, Circe viu o sol envolver Eéia
como o acalento de uma mãe após longa ausência. As lágri-
mas contidas da bruxa pinicavam os olhos mais do que a luz
que batia neles.
Eeianos agrupavam-se diante da muralha-fogo,
aguardando o pronunciamento de Circe.
— Povo de Eéia! — gritou a bruxa, entre as labaredas da
muralha. — Uma criatura de Hefesto entrou em nossa Asgard,
quebrando o feitiço que nos prendia à escuridão e ao isolamen-
to! Ela não nos trouxe somente o sol... trouxe também a liberda-
de! Agora, temos que vingar o passado, e garantir o futuro!
As palavras de Circe sopraram a brasa contida nas
veias dos eeianos. As paredes da muralha vibraram com a
batida compassada das botas milicianas. A batalha estava
prestes a começar.
***
A comemoração dos eeianos e a morte de Terminus repercu-
tiram por todo o Reino, ressoando nos ouvidos de Thor pela
brisa trazida por Vayu.
— Ísis! Preciso que você me leve ao local onde foi
encontrada. Você e meu reino correm perigo!
Thor pediu a Hermes que preparasse uma estratégia
de defesa (“Por Zeus! Por que não lhe dei ouvidos, nobre ami-
go!”). O Sul rumava à batalha, e o Norte precisava reagir.
***
Thor e Ísis galopavam entre as nuvens. A humana agarrava a cintu-
ra do rei de um jeito que ele gostaria de manter pela eternidade.
— Tente lembrar, Ísis.
— Não consigo... Só sei que estava a beira de um
precipício.
— O Vazio. Toda a Asgard é ilhada pelo Vazio.
Isso não nos ajuda.
— Hmmm...
— Vamos, Ísis! Tente se recordar de mais algum detalhe.
E pensando mais um pouco...:
— O dragão de chifres!
— Yo?
— Esse mesmo! Ele saberá nos guiar até lá.
A mando do rei, Sleipnir aterrissou seus cascos no chão.
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ASGARD
FantasyO conto Asgard é a primeira incursão da autora de paradidáticos Juliana Dalla pela literatura fantástica. Através dessa obra repleta de referências mitológicas, a autora nos leva a uma aventura em sua peculiar versão do solo asgardiano. Nessa terra...