Descontruindo-me

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Entrada 124 — 14/04/2016 às 23:55 – Deitado, com as pílulas prestes a fazer efeito em meu maldito corpo.

Como em dois dias a vida pode mudar tão drásticamente? Eu sou idiota, um idiota fodido que acha que o mundo é colorido e que as pessoas se amam entre si. Não, elas não se amam, não ninguém liga para a porra dos seus sentimentos, desculpa informar, a droga da sua vida não vai melhorar, nada nunca melhora.

Você deve estar pensando "Nossa Milles, antes você estava tão feliz, o quê aconteceu?" bem, vamos aos fatos. Eu desci ontem de noite, pois na quinta eu estava "feliz" demais e acabei dormindo rápido, coisa que normalmente acontece apenas depois de algumas horas, mas bem, me sentei na mesa com meus pais e minha irmã mais velha para jantarmos, demos as mãos e oramos como sempre fazemos, e começamos a comer. No meio do jantar, minba barriga era perfurada por um nervosismo fora de mim e tudo o que eu colocava na boca tinha vontade de vomitar no mesmo instante, mas consegui sobreviver até aí.

Quando todos haviam terminado de comer e estavam se levantando, eu pedi para ficarem sentados porque eu tinha algo importante para contar e como eu tinha pedido eles se mantiveram ali sentados, olhando para mim com certo tédio e curiosidade. Foi aí que eu deveria ter mantido a merda da boca fechada. Meu pai foi o primeiro a falar "O que foi querida?" ele disse, ainda com os olhos meigos em mim e eu quis corigir o pronome ali mesmo. E foi isso que eu fiz. "É querido, papai." e foi aí que os olhos de todos realmente focaram em mim, finalmente me enxergando "Como é?" disse minha irmã "É, é uma história complicada, e justamente por isso... eu preciso falar com todos vocês ao mesmo tempo. Há um tempão eu venho ficando mais retraido e quieto, repararam nisso?" e apenas a minha mãe fez um leve meneio de cabeça, enquanto as bochechas do meu pai já estavam vermelhas, sinal de que ele estava ficando nervovo. "Bem, eu nunca me senti totalmente à vontade com o meu corpo... entendem? Não era apenas a questão de 'uma gordurinha aqui outra ali', era ele inteiro, ele por completo. Meus cabelos, minhas unhas, meu rosto, meus seios" disse, começando a tremer mais ainda e deixar algumas lágrimas escorrerem pelo meu rosto e molharem minha camiseta dos Lakers "Então, há algum tempo eu comecei a estudar sobre transsexuais e transgêneros, e toda vez que eles começam a falar sobre o quão difícil é se aceitar, ver que aquele realmente não é o seu corpo eu simplesmente compreendo cada palavra que eles dizem, desde os relatos até o medo e o desespero, o lado gelado, o estar sozinho." e nessa hora meu, meu pai se levantou tão rápido que eu me estremeci por inteiro e se virou para mim, com os olhos fuzilando e o punho na mesa "Que porra é essa Milles? Você é um viado?" ele disse, me queimando pelos olhos, enquanto minha irmã estava estática e minha mãe ficava em completo silêncio, apenas deixando suaves e tímidas lágrimas escorriam da sua bochecha para o terninho vinho que usava. Todo o meu mundo pareceu cair quando eu disse aquilo "Sim pai, eu sou transsexual." e nessa hora, eu não vi seu movimento, apenas senti a queimação em meu rosto, apenas quando minha irmã gritou que eu havia entendido o que havia acontecido. Ele havia me dado um tapa. Todo o meu rosto estava em chamas, enquanto lágrimas desciam por meus olhos que fixava-se nos olhos de meu pai, que deu de costas para mim, e simplesmente seguiu para a porta da sala, pegando seu casaco e saindo, sem dizer mais nenhuma palavra, ou dizer onde iria. Minha mãe que até ali apenas me encarava, se levantou e foi para seu quarto sem dizer uma palavra, nem de incentivo, nem de ódio. Agora eram apenas eu e minha irmã, ela se levantou e veio até mim e me abraçou, chorando no meu ombro e repetindo toda hora que tudo iria ficar bem, que eu iria ficar bem, que tudo isso passaria, enquanto minhas unhas perfuravam meu pulso branco deixando-o vermelho  de sangue.

Ficamos assim por uma hora, eu extasiada e ela apenas me abraçando e chorando, o que me dava mais raiva ainda, até a hora em que me levantei bruscamente, fazendo-a me soltar e cair no chão ao meu lado enquanto eu virava o rosto para ela e a ajudava a levantar, deixando-a na sala me encarando ir ao banheiro do segundo andar e me trancar lá.

Eu havia arruinado a minha vida, o que mais eu podia fazer? Eu pensava, sentada na banheira com os pulsos para a água, manchando-a em vermelho e me fazendo chorar e soluçar de desespero. Eu devo ter ficado ali tanto tempo, que não reparei quando a água já estava quase um vermelho tomate, minhas mãos frias para fora da banheira e meu corpo totalmente anestesiado me fazendo não conseguir ter nenhum sentimento específico, apenas me levantei e peguei a toalha para me enrolar, abri o ralo da banheira para que a água manchada com o meu sangue sujo fosse embora e sair do banheiro, apenas para me trancar no quarto e tomar as pílulas que a tanto tempo estavam guardadas em minha gaveta da escrivavinha. Agora sinto todos os meus membros se desligando, a mente ficando vazia, o corpo simplesmente flutuando, são elas fazendo efeito e me abraçando, fazendo de mim uma delas, me fazendo respirá-las, encorporá-las, senti-las dentro de mim, e me fazendo me tornar uma. Suave, pálida, irrefreável e totalmente congelada.

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