Encaixei o último cabide no guarda-roupa, ainda tentando me familiarizar com o novo quarto. Meus olhos fizeram uma varredura no pequeno cômodo.com piso de tacos, e nem mesmo o fato de faltarem alguns mudou a forma maravilhosa como eu me sentia. Tudo naquela cidade, desde as inúmeras árvores ao clima quente, acolhia-me de braços abertos. Era como se depois de passar a vida sendo apenas uma coadjuvante, eu finalmente me tornasse a protagonista dos meus sonhos. Eu via, enfim, as coisas começando a acontecer, e era a única responsável por elas. Dependia apenas de mim, e de mais ninguém.
Respirei fundo, sorvendo uma boa quantidade de ar. O frescor pairando na atmosfera, a sensação de ser invencível... Existiam muitos sentimentos inexplicáveis me rondando. Caminhei até a janela, um sorriso inoportuno preso nos lábios. Eu deveria me sentir triste, ou pelo menos melancólica, depois de assistir aos meus tão queridos avós se despedirem com os olhos marejados, prestes a percorrerem quilômetros até Santa Cruz do Rio Pardo, minha cidade natal. No entanto, apesar de experimentar um friozinho subindo pela barriga, eu sabia não se tratar de uma despedida. Soava mais como um "até logo". No fim das contas, estar ali sempre foi o meu objetivo principal. Dentre tantas universidades no estado de São Paulo próximas de casa, escolhi o Paraná como lar. Não por querer fugir, mas apenas para ser diferente dela. Mostrar
para nós duas a minha capacidade de realizar meus sonhos da maneira como ela não pôde realizar os seus e me atribuiu a culpa por isso. Provar que, apesar da rejeição, eu segui a vida da melhor maneira possível. Bem, isso seria muito admirável da minha parte se ela ligasse minimamente para o fato de eu estar ou não viva. Acho que, no fundo, ela só amava a si mesma. A lembrança da minha mãe trouxe uma corpulenta nuvem de amargura para o dia, até então, ensolarado. Mordisquei a boca, demorando-me em observar o fluxo de pessoas caminhando lá no estacionamento. Quais eram as suas histórias? Como haviam chegado ali?De repente, fui desperta dos meus devaneios por três toques leves na porta - leves até demais. Endireitei-me, demorando alguns segundos para entender que não seria a minha avó do outro lado, perguntando se eu estava com fome; nem o meu avô, convidando-me para acompanhá-lo até a padaria. Precisaria me acostumar com os detalhes de minha nova condição chegando em pequenas porções, revelando para mim como seria a partir de então. - Entre! - falei, por fim. Tão suave quanto as batidas, foi a maneira como a maçaneta girou e a porta se moveu, revelando Arthur. Ele era uma figura engraçada como um todo - olhos castanhos esbugalhados, conferindo-lhe uma expressão eternamente assustada; cabelos platinados espetados para todas as direções e um sorrisinho torto de alguém com uma boa piada para contar. Soube, logo de cara, que nos daríamos bem. Foi com ele que conversei primeiro pela internet, quando o resultado do vestibular foi divulgado e o meu nome estava lindamente posicionado em terceiro lugar do curso de Letras Português/Inglês. Encontrei Arthur em um grupo do Facebook e, embora as chances disso dar errado fossem gritantes, no fim das contas correu tudo bem. No final de semana anterior à minha mudança, fui com os meus avós para averiguar a situação do apartamento e descobrir se seria um bom lar pelos próximos quatro anos. Não tinha muitas expectativas afinal, como já disse, as chances de dar errado eram mesmo enormes. Porém, indo contra as minhas suposições, encontramos um apartamento consideravelmente limpo e organizado para uma república. Veja bem, eu falei para uma república. Fora ele, morava mais uma garota. Os dois seriam os meus veteranos do curso de Letras. Ela se chamava Nataly, mas eu ainda não havia tido a chance de conhecê-la fora da internet, pois estava passando as férias na Disney com a família e voltaria um pouco depois das aulas começarem. Até para mim, uma CDF assumida, isso era completamente plausível. Seríamos apenas nós três e isso parecia muito promissor. Consegui achar móveis por preços ridiculamente baratos, neste mesmo grupo de Facebook onde encontrei um lar. Era incrível a quantidade de alunos querendo se livrar o mais rápido possível dos pertences, a fim de voltar às cidades natais. Conforme o dia da partida se aproximava, os preços caíam e, por isso, consegui mobiliar um quarto com uma pechincha de trezentos reais. Tinha tudo o que um estudante poderia almejar: uma cama modesta, um guarda-roupa surrado e uma escrivaninha balançando de uma maneira preocupante, mas cumprindo com a função de sustentar meu notebook. Então, depois de acertar todos os detalhes da mudança, ali estava eu, apoiada com as costas contra a janela para observar Arthur atravessar o cômodo em passos arrastados. Ao alcançar a cama, jogou-se preguiçosamente nela e só então percebi vestir uma camiseta com um enorme Darth Vader estampado. Ah, meu Deus, com toda certeza nos daríamos muito bem! - Você está legal, Rebecca? - perguntou com a voz pastosa. Tudo em Arthur era demasiadamente devagar, como se ele estivesse sintonizado em outra frequência. - Sim, eu acho. Ainda não deu tempo nem de me acostumar e nem de sentir saudade de casa... Engraçado, não? Ele sorriu, assentindo com a cabeça. - Sei como é. Ainda está muito recente... mas você vai gostar! - afirmou, espreguiçando-se. - Há quanto tempo mora aqui? - Dois anos. - Você é de onde? - Assis Chateaubriand. - E você tem saudades? - Pare de interrogá-lo, meu subconsciente ordenou, mas as perguntas não paravam de pular da boca. Arthur suspirou, com uma expressão revelando claramente que não. - Lá não tem nada para mim - admitiu com um tom sombrio. - Nada que valha a pena. Permanecemos em silêncio por alguns segundos, absorvendo o impacto das palavras. Peguei-me seguindo sua lógica de pensamento e constatando que, tirando os meus avós, eu também não tinha mais nada. Contrariando seu ritmo lento, Arthur pulou para fora da cama em um rompante, com um sorriso animado brotando no rosto. - Que tal uma caminhada? - Na verdade, eu estava pensando em terminar de ajeitar as minhas coisas. - Encolhi os ombros, como se me desculpasse silenciosamente. - Vamos lá, você ainda terá muito tempo para isso. As aulas só começam daqui a um mês. Quero te mostrar o bairro onde vai morar pelos próximos anos. Olhei para a janela por cima dos ombros, pensando na melhor maneira de me esquivar sem magoa- lo
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Verdadeiro amor
RomanceSe você se sentir um turista na sua própria cidade Então é hora de ir embora E definir um destino Há tantos lugares diferentes para se chamar de lar.