capitulo 05

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Coloquei uma goiaba no bolsinho da frente da mochila depois de andar em círculos pela sala no que parecia ser a vigésima vez só na última hora. Eu estava apavorada. Conferi se tinha tudo o que precisava dentro da mochila e, tomada pela ansiedade, fui até o banheiro, abrindo-o de uma só vez sem nem ao menos bater antes. Deparei-me com Arthur, que tinha acabado de subir a bermuda para o lugar, parado com as pernas abertas em frente à privada. Com um gritinho apavorado, fechei a porta, morrendo de vergonha. Meu coração batia tão depressa que eu parecia prestes a vomitá-lo para fora. Menos de um minuto depois, ele saiu, estudando-me com atenção.

— Você já está pronta? — perguntou, segurando os meus ombros para me forçar a encará-lo. — Sim. Gosto de sair com antecedência. — Mas, Becca, são cinco horas da tarde. A aula começa só às sete! — Nós nunca sabemos quando um imprevisto vai acontecer... — A UEM fica aqui do lado. Não demora nem 10 minutos se você for caminhando!  Então, agarrando a minha mão, Arthur me arrastou até a sala, obrigando-me a sentar no sofá. Foi até a cozinha, voltando com um enorme copo de água nas mãos. — Toma, você precisa relaxar! — Arth... — comecei, mas ele interrompeu. — Eu sei que o seu coraçãozinho de CDF mal pode esperar para começar a estudar, mas hoje é só o primeiro dia de aula, Becca. Metade dos professores nem se dão ao trabalho de ir na primeira semana e a outra metade vai enrolar por uma hora inteira, fazendo dinâmicas de apresentação. E, além disso, você está muito arrumada! Sabe que hoje é o trote, né? — Eu não vou participar! — afirmei, em pânico só de imaginar as mil formas como isso poderia dar errado. — Ah, você vai, sim! Nem que eu precise te arrastar! — Mas, Arthur... — É legal! Além da melhor maneira de fazer amizade com o pessoal da sua sala. Cruzei os braços, sentindo-me contrariada. — Não vim de outro estado para fazer amizade! — Ah, qual é! Para de ser chata! O vizinho te contagiou com o mau humor? — devo ter arregalado os olhos ao ouvir suas palavras, porque Arthur sorriu triunfante antes de prosseguir. — Para com isso, o trote nem é esse bicho de sete cabeças... Só um pouquinho de sujeira e depois vamos para a festa na república Belas Tetas. — Eu... Calma, o quê? Nós permanecemos nos encarando por alguns segundos, nos quais tentei transparecer o fato de que jamais, em toda a minha vida, iria para uma festa em uma república. Ainda mais com nome tão vulgar. — Não existe a mais remota possibilidade de eu fazer parte disso! — afirmei, com o indicador apontando em sua direção. — Jesus, Rebecca. É por causa do nome? — É por causa de tudo, mas, sim, principalmente por causa do nome! — Você vai deixar de se divertir por causa de um detalhe tão pequeno? — perguntou ele, com a voz pastosa. — Olha, eu não sei qual o seu conceito de diversão, Arthur... — levantei do sofá em um pulo. — Mas o meu, com toda certeza, não é ficar suja por horas num lugar apinhado de gente. Num lugar que se chama Belas Tetas, para piorar! — Meu Deus. Quem, em pleno século XXI, fala “apinhado”? Suas palavras penetraram os meus tímpanos enquanto eu bebia um longo gole de água e, por muito pouco, não cuspi tudo nele. Tão logo engoli o líquido com certa dificuldade, ri desenfreadamente. Arthur me acompanhou e, depois de um tempo considerável rindo feito loucos, percebi que havíamos acabado de compartilhar um acesso de riso. — Por favoooor! — ele pediu de maneira manhosa, ainda com a respiração entrecortada. — As festas começaram semana passada e a maioria das pessoas já foi em pelo menos uma delas. Se você não passar por isso, jamais poderá dizer que é, oficialmente, uma universitária! — Você não vai me deixar em paz, não é? — De jeito nenhum. — Ok. Mas só essa! — Você não está em posição de negociar, Becca! Sou seu veterano, eu praticamente mando na sua vida! — Arthur me lançou um sorriso maroto, como se isso encerrasse a questão, sem discussões. — Até parece! — Atirei uma almofada nele, levantando-me para trocar de roupa por uma mais apropriada para ficar espantosamente suja pelas próximas horas. Dizer que eu estava calma ao entrar na minha sala de aula seria uma mentira deslavada. Eu estava a ponto de ter um ataque de pânico.

Bobeira, não? Mas sempre fui assim — quando queria muito alguma coisa, ficava ansiosíssima até acontecer. Com a faculdade não seria diferente. Até que eu me familiarizasse, ficaria com o coração palpitando desenfreadamente nas vésperas de cada aula. Bastava me conformar. E por falar nisso, Arthur estava completamente certo sobre a sua previsão para aquela noite. A primeira aula foi inteira usada para apresentações e a maioria esmagadora dos alunos afirmou ter escolhido o curso por gostar muito de ler. Não me orgulho em admitir ter dito a mesma coisa, aliás. Mas, também, pudera, o que mais eu esperava encontrar no curso de Letras além de pessoas exatamente iguais a mim? Nossa sala era grandalhona e abarrotada de mesas e carteiras pintadas com um creme pálido e sem graça. As amplas janelas basculantes, cujas molduras metálicas eram de um azul bic que doía os olhos, davam vista ao campus lá fora, repleto de árvores e prédios com arquiteturas díspares entre si, que em nada combinavam umas com as outras. Feita de tijolinhos a vista, tal como a fachada do bloco, a parede das janelas era a única diferente, uma vez que as demais eram brancas até dois terços do teto, onde terminavam com um verde-abacate desbotado. O professor que deveria nos dar a aula anterior ao intervalo faltou e, por isso, fomos todos ao refeitório, a fim de nos conhecermos melhor. Existe algo que é preciso saber a meu respeito, antes de mais nada: eu odeio apresentações. Céus, eu não apenas odeio, eu detesto com todas as minhas forças! Não por ser tímida, nem nada parecido.

O problema está naquele desconforto de não saber exatamente o que falar ou como agir perto de outra pessoa, então ficam os dois dando risadinhas nervosas e sustentando um interminável silêncio constrangedor. Agora some isso a uma sala de aula inteira se conhecendo. Pois é, tratava-se da minha versão do purgatório. Dos quase quarenta alunos, a maioria esmagadora era composta por mulheres. E, com exceção de umas quatro pessoas mais velhas, o resto era todo da minha faixa etária. Acabei puxando assunto com uma menina que se sentou ao meu lado na cantina e perdi a noção do tempo enquanto ficávamos de papo furado, falando sobre nossas cidades natais e o que estávamos achando de Maringá em nossa breve estadia. Achava-me tão entretida no assunto que, ao sentir um toque suave no ombro direito, quase morri do coração. Olhei para trás, encontrando Arthur com uma cara de poucos amigos. Naquelas quatro semanas passando a maior parte do tempo com ele, era a primeira vez que o via com expressão semelhante e, por essa razão, foi impossível não perguntar se algo tinha ocorrido. — Ah, você vai ver o que aconteceu! — grasnou ele, com os olhos em chamas. — Nossa professora de Produção Textual, a Bernadete, se aposentou! — Nossa, você está tão bravo assim por isso? — indaguei, levantando para acompanhá-lo. — Devia gostar muito dela! — Não muito, para ser honesto. Mas, definitivamente, mais do que o aprendiz de algoz que contrataram no lugar! — Oh — murmurei, lembrando-me de que também teria essa matéria. Seriam as três primeiras aulas do dia seguinte. Caminhamos em direção ao nosso bloco sem trocar palavra alguma.  Arthur bufava eventualmente, conforme parecia recordar de algum detalhe torturante do novo professor. Tão logo entramos no prédio, cruzamos com uma menina que eu sabia ser da sala dele, pois ela já estivera em casa uma ou duas vezes. Forcei a mente na tentativa de evocar o nome dela, mas foi em vão. Eu simplesmente era péssima com isso. A única coisa que tinha certeza era de se tratar de um nome diferente... — Pábila! — chamou Arthur em seu habitual tom de defunto. Realmente fora do comum, pensei comigo, observando-a se aproximar com a mesma carranca do meu amigo. — Finalmente achei você! Olá, Becca! — disse, sorrindo para mim.

— Querem bala? É de menta. Concordamos em uníssono e seguimos para os andares superiores, onde as nossas salas ficavam. Pábila jogou uma bala para cada um, antes de colocar para fora aquilo que tinha entalado na garganta. — Dá pra acreditar naquele idiota? — Nem me lembre. Sorte que a nossa tortura será apenas uma vez por semana! — É tão ruim assim? — perguntei, começando a ficar assustada. Com uma risadinha irônica, Arthur parou de frente para nós. Olhou para os dois lados, inspecionando se não havia mais ninguém no corredor, e só então respondeu. — Ele é um estúpido, um mal educado, Becca! Mas o pior é que, quando ele entrou na sala de aula, eu fiquei duro! Que cara gostoso! 

— Fala sério, Arthur! — Pábila desferiu um tapinha em seu peito. — Nem dá pra ver o rosto dele com tanto pelo na frente! — Eu acho delicioso... É uma pena que ele seja um completo babaca sádico. Nem consegui dar a devida atenção ao fato do meu amigo ter se excitado com o professor. Apenas engoli em seco, com um pensamento apreensivo começando a se formar na cabeça. Barbudo, mal educado... Pela máscara do Vader, não podia ser quem eu estava pensando! Ou será que podia? Estava prestes a pedir mais detalhes para os dois quando refleti sobre o tamanho do absurdo da situação como um todo. Qual a chance de o meu novo vizinho ser também o meu professor? Quero dizer, estávamos falando de uma cidade com mais de 340 mil habitantes, e não de Santa Cruz do Rio Pardo, onde todos se conheciam. Santo Deus, eu estava ficando neurótica! Talvez Arthur estivesse mesmo certo: eu precisava descontrair um pouco.

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