Cerca de uma hora depois, eu subia as escadas do meu prédio com uma dúzia de sacolas pesadas prendendo a circulação dos dedos. O bumbum ainda protestava pelo tombo de outrora, por isso eu seguia em passos cuidadosos, com medo de escorregar novamente. Afinal de contas, quem, em sã consciência, gostaria de começar as aulas com um braço quebrado? Definitivamente, não eu. Cheguei ao meu andar ofegante e lamentando por pensamentos a falta que um elevador fazia na vida de uma pessoa. Percorri o corredor com pressa para soltar as sacolas e libertar meus dedinhos roxos, mas minhas pernas viraram cimento quando reparei na porta aberta próxima à minha. Foi então que um pensamento me ocorreu e, aos poucos, uni os acontecimentos daquele dia. O homem barbudo. SeguSegurando uma caixa. Fazendo, muito provavelmente, a sua mudança. Para a droga do apartamento da frente! Permaneci ali, tentando calcular qual a probabilidade de, em um condomínio com 480 moradias, aquele insuportável ser justamente o meu vizinho. Sem perceber, caminhei em direção à abertura, tentando coletar qualquer informação que pudesse me dizer um pouco mais a respeito do morador.
— Você só pode estar de brincadeira! — a voz grave quase me fez enfartar. O sangue se esvaiu do meu rosto. Santo Deus, pensei assombrada, com o coração martelando furiosamente dentro da caixa torácica. Que tipo de piada de mau gosto era aquela? Se vergonha matasse, eu provavelmente teria falecido logo ali. Girei o corpo, a fim de encará-lo de frente. Ele trazia, desta vez, duas longas tábuas de madeira, que julguei fazerem parte de um guarda-roupa. O Lenhador Estressado arqueou as sobrancelhas, estampando em cada centímetro do rosto o quanto parecia me achar estúpida. Para falar a verdade, eu estava me sentindo um pouco assim. — Vai continuar aí o resto do dia? — perguntou, por fim, com aquele tom detestavelmente presunçoso. Dei alguns passos para a direção do meu apartamento, sentindo-me contrariada com a sua falta de educação. Sem me encarar novamente, ele sumiu porta adentro como um raio. Apesar de ter os dedos latejando com o peso das compras, a minha dignidade me manteve com os pés colados ao chão. Alguns minutos depois, o barbudo saiu do aposento com as mãos livres e, ao me encontrar, parou abruptamente, como se tentasse entender o que diabos eu ainda estava fazendo ali. Bem, essa era a mesma dúvida que eu tinha, para ser honesta.
— Você está se mudando para cá? — a pergunta pulou da minha boca antes que eu pudesse evitar. — Olha só, que perspicaz! Meus lábios se separaram ligeiramente, enquanto eu tentava entender como ele conseguia me tirar do sério com tamanha facilidade. Argh! Aquele... aquele Chewbacca estúpido! — Você é um grosso, sabia? Um sorriso mordaz tomou seus lábios escondidos por trás de todo aquele pelo facial. Ele se aproximou alguns passos de mim. Por algum motivo inexplicável, prendi a respiração. — É um prazer conhecer você também! — disse, escondendo as mãos nos bolsos do jeans e me dando as costas pela terceira vez no mesmo dia. Entrei em casa completamente atordoada. Deparei-me com um Arthur só de bermuda, ouvindo Nirvana no último volume enquanto lavava a pilha de louça do jantar. — Você demorou!
Soltei as sacolas sobre o imenso carretel de fio de luz o qual usávamos como mesa, jogando-me em uma das cadeiras de maneira dramática. Percebendo o meu péssimo estado de espírito, ele secou as mãos em um pano de prato, sentando-se de frente para mim.
— O que foi? — Tive o azar de conhecer o nosso novo vizinho. Ele não passa de uma versão grosseira do Chewbacca. — Chewbacca? — perguntou ele, em seu habitual tom arrastado, rindo da minha tentativa de ofender alguém. — Sim, com aquela barba enorme dele, foi a única coisa que consegui pensar. Arthur arregalou os olhos naturalmente esbugalhados, assumindo, em seguida, uma careta safada. — Nosso vizinho é barbudo?! — É. — Ai, Becca... — Ele fez cara de quem estava com vontade de comer uma rosquinha bem açucarada, mas, por algum motivo muito sério, não podia. — Eu adoro homens com barba! Acho tão másculos... Esfreguei o rosto com as mãos, permitindo-me rir do meu novo amigo. Sua reação espontânea dissipou um pouco da minha raiva. Eu disse um pouco. — Mas ele é um idiota. Acredite em mim! Com toda a certeza bateu o recorde de maior quantiquantidade de patadas por minuto. — Ele pode estar apenas estressado com a mudança... — Meu Deus, Arthur! Você está mesmo defendendo uma pessoa que nem conhece? A minha pergunta arrancou gargalhadas de nós dois. Rimos tanto que meus olhos lacrimejaram. Ele encolheu os ombros, piscando para mim antes de se levantar e procurar a proteína de soja dentro das sacolas do mercado. Respirei fundo, secando as bochechas com as costas das mãos. — Bom, idiota ou não, eu preciso dar uma olhada depois. Quem sabe não peço uma xícara de açúcar? — Isso está muito batido! — Arquejei, incapaz de me desfazer do sorriso no rosto. — Precisa de algo mais original se não quiser que ele perceba suas intenções. — Becca, sua inocente... Quem falou que eu não quero? Amassei uma sacola do mercado, formando uma bolinha que usei para atirar nele em seguida. — Para alguém tão calmo, você é muito pervertido! — Você não viu nem um terço. Vou fazer o almoço... O que comprou de bom? Enquanto Arthur revirava as sacolas com o seu ritmo devagar, peguei-me concentrada em pensar no vizinho irritante. Quero dizer, mesmo se ele realmente estivesse bravo com a mudança—o que era completamente cabível em um prédio sem elevador, diga-se de passagem — não tinha razão para me destratar, não é? Bufei, raspando o dedo na superfície da mesa ao passo em que retomava a nossa breve conversa na cabeça. Então, sem perceber, meus pensamentos me traíram, levando-me a caminhos perigosos. Comecei a repassar imagens do Chewbacca mal humorado vagarosamente, como que me deliciando com alguns detalhes. Como os músculos do braço contraídos para sustentarem a caixa, ou a forma como ele era irritantemente interessante, ainda que com aquela barba estúpida de lenhador. Sério, em pleno verão, como ele aguentava tantos pelos? Droga, Rebecca, que merda é essa?, meu subconsciente perguntou, de maneira acusatória. E, percebendo o que estava fazendo, senti o rosto ferver e me levantei de supetão, decidida a desenhar para varrer qualquer recordação dele para fora da mente. Entrei como um raio no meu quarto, indo direto até os materiais de desenho. Liguei o notebook e abri a pasta de músicas, dando play no aleatório. No mesmo momento em que posicionava o papel na escrivaninha, a voz contralto da Pitty reverberou contra as paredes descascadas em alguns pontos, arrancando uma careta azeda de mim quando começou a cantar Equalize. Às vezes se eu me distraio Se eu não me vigio um instante Me transporto pra perto de você Mordisquei o lábio inferior, incapaz de apagar o peculiar encontro da memória. Além do mais, a música não estava ajudando em nada. Já vi que não posso ficar tão solta, que vem logo aquele cheiro Que passa de você pra mim Num fluxo perfeito Pesquei o lápis 6b de dentro do estojo e, sem perceber, ocupei-me em traçar linhas até então desconhecidas para mim. Comecei pelo cabelo despenteado, indo para a sobrancelha grossa e expressiva e logo em seguida para a barba espessa que o atribuía um ar igualmente selvagem e atraente. As horas escaparam pelos meus dedos como areia fina durante o tempo em que pincelei a tinta aquarela com delicadeza. Eu não conseguia entender como uma pessoa que eu esbarrara brevemente no corredor conseguia protagonizar os meus pensamentos de maneira tão incisiva, mas isso precisava parar por ali. Afinal de contas, a única razão para eu estar em Maringá era a faculdade. Qualquer outra coisa era um desvio do foco e, por essa razão, terminantemente proibida.
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Verdadeiro amor
RomansaSe você se sentir um turista na sua própria cidade Então é hora de ir embora E definir um destino Há tantos lugares diferentes para se chamar de lar.