capitulo 11

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Diminuí o ritmo das pernas até finalmente cessar as pedaladas, deixando a bicicleta deslizar pela descida suavemente. A brisa noturna acariciava o meu rosto, oferecendo trégua para o calor insuportável de Maringá. Ao alcançar os portões do condomínio, girei o guidão para a direita de uma vez, fazendo uma curva fechada. Apesar de ter planejado voltar para casa empurrando a Caloi em uma caminhada tranquila com Arthur, ele havia me avisado no intervalo que dormiria na casa de Pedro.

— Isso não é justo! — reclamei, mordendo um pedaço da coxinha de frango e ignorando o olhar de reprovação do meu amigo. — Eu planejava passarmos a madrugada fazendo um boneco vodu para o professor Adônis! A gargalhada de Arthur ressoou alta pela cantina, atraindo alguns olhares curiosos em nossa direção. — Nossa! Cadê a minha amiga defensora de professores e o que você fez com ela? — Cala a boca. — Bati no ombro dele com o meu. — Você tinha razão, ele é um babaca sádico! 

— Eu sei! — Mas o pior é que a sua macumba antes da aula funcionou. Ele me deu uma atenção muito especial. Parece não ter ido com a minha cara logo que me viu. Na verdade, ele me olha como se me odiasse! — Você chegou atrasada? Dei um longo gole no refrigerante, assentindo despreocupadamente. — Ai, Becca... — Arthur se lamentou, como uma esposa cansada de pedir ao marido para não deixar a toalha molhada na cama, mas que continuava  encontrando-a lá, da mesma maneira. — Você precisa começar a me ouvir! Por que entrou na sala? Permanecemos conversando enquanto os minutos do intervalo corriam e, na ânsia por contar cada detalhe da excêntrica aula com o professor Adônis, acabei me esquecendo de mencionar o fato de ele ser o nosso vizinho. Fiquei tão perplexa que o importante detalhe fugiu da cabeça. Tão logo ouvimos o sinal percorrer toda a extensão da universidade, despedimo-nos com um abraço rápido e eu o assisti se distanciar em uma velocidade surpreendentemente lenta. Afastei a lembrança da cabeça, pulando da bicicleta e percorrendo o caminho até o bicicletário com tranquilidade. Eu ainda precisava telefonar para os meus avós, ou teria sérios problemas. Com um pesado suspiro, encaixei a roda da frente entre as hastes de ferro, tirando a mochila das costas para pescar a corrente e o cadeado em seguida. Agachei-me, concentrada em travar a minha tão amada Caloi, quando uma nova rajada de vento ricocheteou contra o meu rosto, levando um perfume conhecido, embora eu não conseguisse me lembrar de onde. Puxei o ar de uma vez, preenchendo os pulmões na tentativa de absorver ao máximo aquele cheiro delicioso.

Pela cabeça do Ned Stark, que gostoso..., pensei comigo mesma, jogando a mochila nas costas novamente. Comecei a caminhar em direção a entrada do prédio com um enorme G pintado em branco, enquanto tateava os bolsos da mochila, em busca das chaves. Trombei em algo muito sólido e dei alguns passos para trás, perdendo o equilíbrio. Uma enorme mão de dedos longilíneos se fechou ao redor do meu pulso para me impedir de cair. O toque gelado me fez estremecer.

— Olhe por onde anda! Ao mirar para cima, encontrei os inquietantes olhos ocre do meu vizinho me encarando de volta, cheios de impaciência. Eu queria agradecer, mas parecia que um gato tinha comido a minha língua. Em algum lugar distante da memória, existia a sensação de já conhecer aquele contato frio como metal, embora ele não tivesse me tocado quando nos conhecemos, tampouco hoje, na aula. Meus olhos recaíram sobre o cigarro preso nos seus lábios e, ao constatar que eu nunca havia sentido nenhum cheiro nele além do perfume maravilhoso, não pude refrear minha língua. — Você fuma! O professor Adônis elevou as sobrancelhas, parecendo confuso e atônito ao mesmo tempo. Nos sulcos formados em sua testa, era possível ler claramente a pergunta “e daí?”. No entanto, essa não foi a sua resposta. As bonitas íris foram em direção à mão ainda me agarrando com força e, como se estivesse desconcertado com a situação, soltou-me de súbito. Apesar de as lembranças de toda a grosseria dele na aula permanecerem vívidas na memória, por alguma razão desconhecida fiquei decepcionada por não ter mais seus dedos frios na minha pele.

Pigarreei, confusa com o rumo perigoso tomado pelos pensamentos. — Desculpa, eu me distraí procurando as chaves. — Sem problemas — a resposta veio seca, como era de se esperar. Seus olhos ainda continham o mesmo brilho agressivo da aula. Era nítido para mim o quanto ele não me suportava, eu apenas não entendia o porquê. Quero dizer, nunca tive inimigos ao longo da minha vida, muito menos professores. Costumava ser a aluna modelo, mas não com ele. Tudo bem, eu o chamei de idiota no nosso primeiro encontro, porém, em minha defesa, ele realmente tinha sido um grosso comigo! De toda forma, o mais engraçado era que, dentro de mim, existia a sensação de culpa. Como se houvesse uma razão para aquele olhar ferino lançado por ele sem trégua. O que era um absurdo, pois eu nem ao menos o conhecia direito. Dei de ombros, decidida a subir e acabar com aquele estranho encontro. Se ele não gostava de mim, paciência. Não é como se eu fosse morrer por isso. O azar seria unicamente dele. Como a boa aluna que sempre fui, não precisava da sua simpatia para me sair bem. Lancei uma última olhadela ao homem taciturno de frente para mim, concentrado em soprar fumaça para fora dos pulmões. Retomando os passos lentamente, finalmente alcancei o molho de chaves dentro da mochila e, enquanto fechava o zíper com um pouco de pressa, fui surpreendida por sua voz intensa, responsável por um calafrio que desceu pela espinha.

— Está se sentindo melhor? Estupefata, girei nos calcanhares, ficando novamente de frente para Chewie. Ele encolheu os ombros, atirando a guimba do cigarro para longe. Escondeu as mãos nos bolsos do jeans e avançou dois passos em minha direção. — Como assim? — Estava passando mal ontem. — Como você sabe? — perguntei, com o coração perdendo uma batida. Santo Gandalf, o que foi que eu fiz?, pensei, aterrorizada com as opções surgindo em minha mente alarmada. — Você não lembra? — Ah, meu Deus! Lembrar o quê? — fui incapaz de esconder o pânico na voz. Sustentamos o olhar pelo que pareceram horas, apesar de ser óbvio para mim que não passaram de segundos. Chewie estreitou as pálpebras, como se tentasse decidir se acreditava ou não em mim. Ele arriscou mais um passo à frente, carregando o perfume inebriante consigo. Perdi a força nos joelhos, sem conseguir compreender como um homem tão estúpido conseguia me deixar daquela maneira. Eu só podia ser louca! — Hein? — insisti. — Lembrar o quê? Ele balançou a cabeça em negativa e jurei ter visto a sombra de um sorriso em seus lábios. — Esquece. — Ahn? Não! — respondi, com as bochechas queimando. Como assim ele achava que podia deixar a minha cabeça lotada de teorias e simplesmente se esquivar? — Não, de jeito nenhum. Agora me fala! Você também foi à república Belas Tetas, é isso? — O quê?! — o professor Adônis deu uma risadinha zombeteira. — Não, eu não estava nesta... Belas Tetas.

Proferiu as últimas palavras com mais ênfase e percebi que era para me deixar envergonhada. Ele conseguiu com maestria, porque no mesmo instante fechei os olhos, querendo sumir dali o quanto antes. Respirei fundo antes de encarar as enigmáticas íris. Elas tinham a mesma cor das folhas secas no Outono. Olhos de Outono. Lancei um olhar de súplica para que ele acabasse logo com aquilo e respondesse a minha dúvida e, para o meu alívio, o meu pedido foi atendido.

— Nós apenas nos esbarramos no corredor, donzela. Você estava péssima... O que, aliás, nos leva à pergunta inicial. Está se sentindo melhor? — Na medida do possível — respondi, raspando a ponta do all-star no cascalho do chão. — Bom, preciso subir... Meus avós estão esperando um telefonema. Sinto muito pela trombada! Girei 180 graus, mas, antes de sequer começar a andar, sua voz veio novamente ao meu encontro. — Eu vou pelo mesmo caminho — falou, surgindo ao meu lado em uma fração de segundo. Confusa com a situação como um todo, permaneci calada enquanto subíamos os três lances de escada, até alcançarmos o nosso andar. Rodopiei nervosamente o chaveiro na mão quando alcancei o meu apartamento, acenando para ele com a cabeça. Tinha acabado de empurrar a porta quando, pela terceira vez na última meia hora, sua voz grave e intensa me surpreendeu. — Não deveria voltar sozinha a uma hora dessas... Ouvi dizer que é um bairro perigoso. — Eu não vim caminhando. Tenho uma bicicleta... Uma Caloi verde-água com cestinha e tudo. — Ok, por que eu falei a última parte? — Mesmo assim, não deixa de ser arriscado. — Certo. — assenti, confusa. — Hum... Obrigada e até mais. E então fechei a porta, tentando me convencer de que o fato de as minhas pernas tremerem como um massageador elétrico não significava nada de mais.

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