capitulo 02

6 0 0
                                    

Quando você pensa em amor, você pensa em dor? Você pode me dizer o que você vê Eu vou escolher em que acredito

___________________________________________
Sempre gostei de ter as coisas sob controle. Isso não era difícil de perceber quando se levava em conta a maneira como eu seguia à risca a minha agenda pessoal. Tudo precisava ser planejado com antecedência, agir por impulso não era exatamente o meu esporte favorito. Isso também é um pouco por causa dela. A ânsia de não seguir os mesmos passos, de não cometer os mesmos erros, de não ser como ela. No meu notebook, a música já havia ido de Zé Ramalho a Pink Floyd, passando por The Strokes no caminho. Não sou uma pessoa com os gostos muito definidos e atribuo isso ao fato de ter sido criada pelos meus avós. Duas gerações de diferença, eu sempre perambulei entre o antigo e o novo, entre o ontem e o agora. Nunca me senti muito conectada com as pessoas da minha idade, mas também não me sentia tão madura quanto os mais velhos. Por isso, aprendi a apreciar a minha própria companhia. Um mundinho só meu, repleto de jogos de tabuleiro, filmes de terror—quanto mais sangrentos, melhor — e passeios na minha Caloi verde-água com cestinha, a qual tinha feito questão de arrastar até Maringá. Porém, a minha maior paixão era, com toda a certeza, os livros de fantasia. Algumas garotas nascem para o romance, mas preciso confessar que ele nunca foi para mim. Sempre com o nariz enfiado em uma nova história, eu gostava de viajar pelos reinos mais distantes, onde dragões e bruxos eram tão comuns quanto comer torradas no café da manhã. Espelhava-me nas personagens fortes encontradas nos livros e sonhava em ser uma Hermione Granger ou uma Katniss Everdeen da vida real. Talvez eu fosse o que os outros chamam de pessoa no mundo da lua, no entanto jamais me importei muito com isso. Fui desperta dos pensamentos quando uma nova música começou, desta vez era Velha e Louca, da Mallu Magalhães.

Pode falar que eu nem ligo, Agora eu sigo O meu nariz, Respiro fundo e canto Mesmo que um tanto rouca. Pode falar, não me importa O que tenho de torta Eu tenho de feliz, Eu vou cambaleando De perna bamba e solta.

Senti um calor gostoso no peito, dando-me conta de que contava pouco mais de duas semanas morando ali e eu já me sentia completamente em casa. Arthur e eu tivemos muito tempo para nos conhecer e, para minha surpresa, nós partilhávamos de vários gostos em comum — dentre estes, meninos. Descobri o fato de ele ser gay em uma abafada noite de quarta-feira, quando fomos até feirinha da cidade providenciar o tipo de comida que deixa os pais orgulhosos. No caminho de volta para o nosso apartamento, cruzamos com um rapaz loiro de enormes olhos azuis. Ele parecia ter saído de uma revista e, enquanto eu lutava para me recuperar o fôlego, a voz arrastada de Arthur me fez dar um pulinho de susto no lugar. — Meu Deus, Rebecca, você viu aquele homem? — Se você está falando sobre o Thor que acabou de passar, sim, eu vi! Depois disso, passamos horas a fio debatendo sobre famosos que achávamos ou não bonitos. Concordamos em quase todos os tópicos, exceto por Harry Styles. Embora eu o achasse um pedaço de mau caminho, Arthur dizia apenas que ele ainda precisava de muito arroz e feijão para chegar lá. Sorri com a memória e, encarando o espelho, inclinei o corpo ligeiramente para a esquerda, a fim de alcançar a escova sobre a escrivaninha. Comecei pela minha franjinha reta, bastaram algumas escovadas para assentá-la no lugar. Meu cabelo cor de chocolate meio amargo batia pouco abaixo do pescoço em algo oscilando entre liso e ondulado. Eu gostava. Juntei-o sem dificuldade em um rabo de cavalo, abandonando o espelho em seguida. Com exceção do cabelo, eu não herdara nenhuma característica física da minha mãe. Ao contrário dela, com os olhos castanhos e a pele oliva, minhas íris tinham cor de pistache e a pele era pálida a ponto de ser possível ver as azuladas linhas orgânicas formadas pelas veias. Eu nunca conheci o meu pai — nem eu, nem ninguém além dela — mas não era preciso ser um gênio da genética para calcular que eu deveria ser como ele. Ajoelhei ao lado da cama, pescando a maleta de plástico debaixo dela, onde costumava guardar meus materiais de desenho. Destaquei uma folha de papel Canson, alinhando-a de maneira meticulosa sobre a escrivaninha bamba. Todos os meus conhecidos insistiam para eu investir nessa habilidade e, para muitos, foi uma grande surpresa a minha primeira escolha para a faculdade não ser algo relacionado a isso. No entanto, a verdade era que eu considerava o ato de desenhar uma válvula de escape. Era quando eu podia esvaziar minha mente de todos os pensamentos e me conectar comigo mesma. Jamais poderia tornar um momento tão íntimo como forma de ganha pão. Talvez não fizesse o menor sentido, porém algo sobre monetizar o meu dom soava de maneira errada. Foi esse o motivo para eu ter escolhido o curso de Letras. As palavras, sim, eram o ar que preenchia os meus pulmões e a força-motriz necessária para impulsionar os meus dias. Graças aos livros, não sucumbi à tristeza pela rejeição da minha mãe e, por essa razão, eram tão importantes para mim. Perdi a conta de quantas vezes fugi da realidade enfiada por tardes e mais tardes em páginas amareladas de intermináveis livros. Meu sonho de trabalhar em uma grande editora veio daí. Se eu pudesse descobrir livros tão incríveis quanto aqueles com espaço especial no meu coração, talvez mudasse a vida de outras tantas pessoas. Já que eu não possuía o dom da escrita, contribuiria da forma que me era palpável. Com essa certeza, eu estava decidida a começar a faculdade — dando o meu melhor para alcançar o sonho traçado com tanto afinco. E nada, nem ninguém, tiraria o foco do meu objetivo.

Verdadeiro amor Onde histórias criam vida. Descubra agora