O Princípio do despertar

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Como em uma típica manhã de primavera em um país tropical, o sol de dezembro brilhava baixo e quente, com a veemência de quem desponta ao meio dia, enchendo a rua feito um banho. Embora tenha nascido para todos, ele era mais seu do que dos outros, pois todas as manhãs em que se descortinava no céu, Ana Alice se apropriava dele, que expansivo, se posicionava de maneira que fosse possível projetar uma parcela considerável de luz e energia, afagando em especial, um conjunto de telhas bem alinhadas e cobertas por camadas de limo, que, persistentes, se acumularam ali por muito tempo, talvez uns dez anos. Unidas, as folhas do telhado se curvavam sobre as paredes desbotadas, feitas com pedaços de eucalipto, pintados de verniz e encaixados na horizontal. Tais encaixes eram pequenas brechas que permitiam à luz do dia invadir o chalé, que harmonizava com a delicadeza, além de acentuar o lado romântico de Alice.

Em seu quarto, no alto da sacada, a pequena janela circular acima do marco da porta fazia do feixe de luz muito mais poderoso do que os vestígios de claridade que escapavam pelas brechas. Enquanto o lado esquerdo da face estava adormecido sobre a profundidade e a maciez do travesseiro de plumas de ganso, o lado direito estava sendo gentilmente aquecido e iluminado. Parecia ser uma bela manhã para qualquer coisa, mas ela estava segura de que existia uma lacuna entre acordar e despertar, e talvez este espaço vazio tivesse uma distância semelhante àquela entre existir e viver.

Acordar pode ser um processo demorado, como qualquer outro ritual. Primeiro, esticou os braços de modo sutil e despretensioso, até sentir os músculos elásticos como os de uma criança. Depois, alongou as pernas até ouvir suas juntas estalarem. Aparentemente madura e mais confiante, até seus olhos focalizarem partículas de poeira que se revelavam no feixe de luz, tal como um átomo se revela sob o olhar através de um microscópio, ou letras minúsculas se tornam grandes e facilmente visíveis em questão de segundos, sob o olhar através de uma lupa. Identificou-se de imediato, sentindo-se tão pequena e invisível quanto um ácaro.

Mudaram as estações. Alice até mudou o corte de cabelo, mas não perdeu a mania de romantizar tudo. O seu relógio cronológico marcava quase trinta, mas na pele ainda sentia o frescor dos dezessete. Que ironia! Ela, agora com vinte e cinco, conseguia enxergar a beleza dos dezessete.

Alice não estava dormindo no ano passado, mas ficou tanto tempo estagnada, sentindo seus medos mesquinhos e pequenos a esmagarem, que parecia ter ficado em estado de coma praticamente uma década. Talvez ela seja do tipo bela adormecida contemporânea, uma verdadeira princesa de contos de fada. Sua história poderia ser considerada muito semelhante, devido aos fatos que marcaram a sua vida. Porém talvez o que a diferencie, seja a certeza de que na vida real, nem sempre a história termina com um "E eles foram felizes para sempre", ou, mais adequado aos dias que testemunhariam o despertar de Alice: "E ela foi feliz para sempre".

A rotina era muito mecânica. Bastava pressionar o botão do piloto automático e pronto! Até os objetos pareciam ter vida própria e o dia transcorria dentro da normalidade, e pode-se dizer que este termo é relativo. Talvez signifique o mesmo que felicidade, visto que quem leva uma vida agitada, porém sem grandes emoções à primeira vista, precisa se concentrar em cada pequena manifestação dela, como ter as contas em dia e a despensa abastecida, logo após o quinto dia útil.

Era preciso inventar pequenas práticas para trazer ordem à própria vida e fugir da monotonia, como ouvir música, ler, escrever e trocar os móveis de lugar. Estas, em geral, eram algumas das poucas aventuras diárias, depois é claro, da tradição de saborear o café da manhã na avenida das flores. É válido lembrar que poucas coisas lhe traziam tamanha satisfação. Caminhar até lá todas as manhãs, lhe dava uma sensação agradável, como se Alice estivesse dentro da estatística das garotas da cidade que optavam por hábitos saudáveis.

Naquela manhã, a vida estava passando diante das janelas da alma, veloz e incapaz de ser acompanhada. Em algum momento do percurso, seu olhar tropeçou e ficou preso entre os três ponteiros do relógio que justificava e dava sentido a existência de um pilar central, entre os quatro cantos da cafeteria. Veja bem, não era necessariamente uma divisória, parecia ter sido projetado justamente para que todas as pessoas que sentassem nas mesas ao seu redor, uma extensão de sua largura, pudessem ter a ilusão de ter controle sobre o próprio tempo.

As unhas compridas e afiadas em um formato esteticamente feminino, bem lixadas até ficarem quadradas e cobertas por camadas de esmalte, batucavam sobre a superfície da mesa rústica em plena sintonia com os segundos, até o som ser interrompido por uma ação. As articulações finas, sob uma pele clara, abraçaram a alça da taça, fazendo um percurso delicado do pires até os lábios, quando de repente, por um descuido, Alice queimou a língua! Naquele instante, uma lágrima escorreu de seus olhos - distintos e contraditórios pela heterocromia - e o seu corpo inteiro subitamente despertou. Ela parecia ter se assustado e rapidamente tirou um lenço de papel de dentro da bolsa.

De imediato, sentiu uma pequena e leve dor suportável que cabia dentro de um pequeno instante. Porém, assim como todas as dores, até mesmo aquelas aparentemente insignificantes e passageiras, esta tem suas características peculiares.

Esta, por exemplo, é o tipo de dor inesquecível. Alice sabia que iria lembrar por horas, talvez dias, cada vez que sentisse a fumaça aveludada tocar seu rosto, e injustamente ao beber o café, não sentiria seu gosto, afinal o tempo sempre faz questão de lembrar. Mas, com o passar dos anos, as dores tornam-se velhas conhecidas em um ciclo repetitivo, porém administrável. É uma questão de saber racionalizar os sentimentos.

Em uma tentativa frustrada de ser discreta, Alice afastou a cadeira ao levantar. Desajeitada, chocou-se com a mesa, fazendo a taça dançar sobre o pires. Por sorte, interrompeu o giro antes da queda. Definitivamente, não gostaria de chamar atenção para si, tampouco ser lembrada por causar prejuízos. Ela pode até não ser o centro das atenções, mas isso não significa que sua presença passe despercebida.

Após ser a protagonista da cena que acabara de quebrar o silêncio do ambiente, os olhares curiosos feitos de censura recaíram sobre ela, que quase podia ouvir os comentários, e, aterrorizada, desejou que existisse um portal, ou que se abrisse uma cratera no meio do trajeto entre a mesa e o balcão.

Alice não se lembra exatamente de como chegou até lá, apenas recorda-se que, ao aguardar na fila para pagar a comanda, se distraiu com o jornal que estava dando sopa, e estampava em sua capa as notícias do dia. Estava ao alcance de seu braço, e ela não hesitou em esticá-lo, ficando na ponta dos pés e equilibrando seu peso dentro dos sapatos sem sair do lugar, até poder segurá-lo em suas mãos, e trazê-lo para si. Algumas palavras passaram batidas, até ser estapeada por uma verdade. Neste caso, não necessariamente por uma manchete, bastou ela ler a data. Era realmente impressionante como este fato reforçava a ideia de que ela havia nascido na época errada.

Depois de queimar a língua, Alice sentiu a segunda onda de uma corrente elétrica percorrer seu corpo dos pés à cabeça, em menos de uma hora. Tamanho fora o impacto, que chegou até a aproximar as folhas impressas de seus olhos, que, desacreditados, arregalaram-se. Em seguida, descansou a armação sobre a raiz dos cabelos e esfregou as vistas por alguns segundos. Ao recuperar o fôlego, a primeira coisa que se perguntou foi quanto tempo se passou, e o que ela perdeu.

A preocupação e o medo de ser tarde demais eram inevitáveis. Em um ato de desespero, colocou a comanda no lugar do jornal e o enfiou dentro da bolsa, o que a princípio, parecia ser uma troca justa.

Enquanto todos estavam distraídos, Alice saiu tão apressada que, naquele dia, deixou de pagar o café que havia consumido, talvez justamente pela leve queimadura, ou por se sentir despertar após uma década. Aguardar sua vez não era a prioridade agora, não mais que o desenrolar dos fatos. Mas isso não era um problema, já que na manhã seguinte ela provavelmente estaria lá novamente.

A sensação era de como se ela acabasse de ter acordado de um longo sonho, ou talvez, de um interminável pesadelo, visto que os motivos de se sonhar haviam se resumido em uma ausência de razões que prevaleceu por praticamente dez anos, tempo em que seus olhos permaneceram inutilmente abertos, tendo dentro de si o espaço vazio de um cego, e todo um passado estava apenas a um passo da extrema cautela com que Alice procurava se manter apenas viva, e nada mais.

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