Obra Reunida

ANGELU

ANGELU

Test of the poet knowledge of love,

For Eros is older than Saturno r Jove

Never was poeto f late or for vore

Who was not tremulous with love-lore.

Emerson

(O Abandono do Sacerdócio)

Aqueles olhos nos olhos dele. Olhar de tigre, felino, fixo. Aqueles olhos oblíquos, questionadores, sobre si, sua face, seu rosto ruborizado. Foram anos, longas datas, naquele mosteiro, ali perdido, esquivo, abscôndito, entre os cumes das montanhas altas, distante talvez de muitos. É lamentável, disse-lhe monsenhor Bernardo, meu caro Fridas, você não tem vocação. Tudo o que pode fazer é soltar- se mais e mais. Inúmeras vezes f1agrado masturbando-se. Várias cenas suas atrás das estantes de livros, debaixo das escadas, nos banheiros, e, veja só, até mesmo na sacristia da velha Capela de São Marcos. Lamento, sua vocação é outra. Nunca enquadrou-se, jamais enquadrar-se-á. Em você há um fogo enorme, como nunca vi. Vá. Siga sua vida noutros campos. Não é este seu destino. Silêncio entre monsenhor e ele. Quietude, mudez, Atmosfera carregada.

Ele agora com os seus documentos, pertences, rumo à porta de saída, no corredor, as malas nas mãos. Um frio de névoa marmórea estanca-se entre os vãos dos cômodos. Uma lufada de tumba, também presente, divaga-se pelos telhados do mosteiro. Sim, foram dias, meses, anos, naquele lugar. Não resistira, sequer se controlara à sede, àquela ebulição dos infernos no corpo, nas veias, no sangue, na alma. Por isso, enfim, estava largando o sacerdócio; por isso, ainda, pegara todas as suas coisas. Finalmente abandonara aquela vida, deixava para sempre aquilo.

Caminha, no momento preciso, sóbrio, observando pela última vez as paredes, o piso de cerâmica violeta-rósea, os mosaicos, os quadros suspensos no branco-giz da galeria fria, solitária. Observa, cuidadoso, procurando guardar no íntimo as imagens, os ângulos, cada detalhe, a luminosidade de cada sala, ambiente, beco, escada, jardim. Está, agora, sob a nave da capela de São Gregório. Pode, com mínimo de atenção, enxergar, mesmo abaixo duma luz mortiça, frouxa, que se pende da pequena abóbada, aquela réplica de Botticelli, "A Punição dos Rebeldes", afresco tão conhecido na Capela Sistina. Está calmo, semblante de vento soprando leve sobre a espinha das águas do rio. Encontra-se de pé na porta, e ali, no entanto, volta-se para trás, reparando tudo. Caminha novamente, o táxi está à sua espera no portão. Guarda, então, as malas no banco traseiro do veículo: é um antigo DKW Vemag vermelho-chumbo. O carro, cortando por entre as altas montanhas, deixa aquela paisagem.

Ao pisar o assoalho do casarão de Vila Boa, sentiu um calafrio nos ossos. Ah, tanto tempo, pensou. Nunca imaginou-se retornando. Estava, na realidade, de volta à casa. O desejo da mãe que, inclusive, já falecera, não pudera ser cumprido. Quisera ter dado conta. Porém, como o dissera monsenhor, sua vocação não era aquela.

II

(O Repouso)

Depois de abraçar a todos, sentir-se firme, subiu as escadas de tábuas encardidas, indo em seguida alojar-se no seu quarto. Ali, sozinho, debruçou-se sobre o alvo lençol de cambraia do colchão. Pondo-se de costas, fixou o teto, mergulhando por inteiro em pensamentos. A noite já ia longe, a lua rombuda, cheia, nos céus, a claridade, suspensa em tênues fios dourados, penetrava pela janela aberta, escancarada ao vento noturno. Ao lado dela, por fora, uma gigantesca amendoeira estendia, frondosa, sua sombra sobre o imenso casarão. O quarto dele era no andar superior. Na noite, o casarão se projetava colossal, com suas torres, sua sacada, avultando-se dentro de sua arquitetura barroca. Toda a Vila Boa dormia, e ele quieto sobre a cama, mirando, deitado, o teto, recordando-se das salas, dos corredores, das capelas, quadros e molduras santas, angelicais, do antigo mosteiro. Quando uma assaz ventania bateu na janela de mogno, sentiu um cansaço enorme e, como se mergulhasse em denso poço, pendeu as pálpebras dos olhos, parecendo querer dormir. Inda teve um laivo soturno de memória boiando nos neurônios de seu cérebro; por isso mesmo rememorou a figura de Jonas, o garoto dos olhos azuis, ele e tantos outros, muitas vezes fazendo coisas atrás das escadas, nos banheiros, enfim, por todas aquelas paragens de seminário.