Continuação

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A execução foi anunciada no noticiário das oito horas da Rádio Europa. Em um pequeno quarto de hotel da Áustria, Marc Rodin desligou o transistor, levantou-se da
mesa quase sem ter tocado no café da manhã e contemplou, através da janela, a paisagem coberta de neve.
- Pulhas! murmurou, em tom ácido.
Alto e magro, de rosto cadavérico encovado pelo ódio, geralmente disfarçava as suas
emoções. Filho de um sapateiro, fugira para a Inglaterra quando os Alemães ocuparam a França e alistara-se como soldado sob a bandeira da Cruz de Lorena. Após sangrentas batalhas no Norte de África e na Normandia, conquistara finalmente os galões de oficial que um homem da sua educação e ascendência nunca teria conseguido obter de outro modo.
Na França do pós-guerra tivera possibilidade de escolher entre regressar à vida civil, como sapateiro, ou permanecer no Exército. Continuara no Exército, onde viria a experimentar a amargura de ver uma jovem geração de rapazes conquistar nas aulas as insígnias pelas quais ele tivera de suar sangue.
Restava-lhe apenas uma solução: alistou-se nos paraquedistas coloniais, um dos duros
regimentos de choque que lutavam contra os comunistas na Indochina Francesa. No final da campanha da Indochina era major, e após um ano de frustração passado na França foi enviado para a Argélia. Em sua opinião a retirada da Indochina constituía uma enorme traição aos milhares que lá tinham morrido. Para ele não podia haver mais traições. A Argélia o provaria. A Argélia era uma parte da França, habitada por três milhões de franceses. No entanto, os rebeldes não eram tão fáceis de vencer quanto Rodin inicialmente pensara. Era necessária uma maior ajuda por parte de Paris.
Em junho de 1958, o general De Gaulle retomou o poder como primeiro-ministro da França. De Gaulle pôs termo à corrupta IV República e fundou a V.
Depois, em janeiro de 1959, quando proferiu as palavras "Algérie Française" no Eliseu, Rodin retirou-se para o seu quarto e chorou. Tinha certeza de que a França ia enfim apoiar sinceramente os seus filhos da Argélia. Quando De Gaulle começou a restaurar a França à sua maneira, Rodin supôs que existia um erro qualquer. Não podia acreditar no boato segundo o qual se haviam verificado conversações preliminares com o inimigo. Até que surgiram provas inequívocas de que o conceito de Charles de Gaulle de uma França ressuscitada não incluía, afinal, uma Argélia Francesa. O mundo de Rodin desintegrou-se; restou-lhe apenas o ódio. Ódio
ao sistema, aos políticos, aos intelectuais e aos Argelinos mas, sobretudo, ódio àquele homem.
Rodin arrastou todo o seu batalhão para o putsch militar de abril de 1961.
Falhou. Quando a lealdade do Exército foi finalmente posta à prova, dezenas de milhares de soldados de serviço na Argélia ligaram os seus rádios e ouviram a voz de De Gaulle dizer: "Encontram-se perante uma opção de lealdades. Eu sou a França, o instrumento do seu destino. Sigam-me. Obedeçam-me."
Quando acordaram, alguns comandantes de batalhão encontraram-se apenas com um
punhado de oficiais e sem a maioria dos seus sargentos. Com Rodin ficaram cento e vinte dos seus oficiais, sargentos e soldados. Juntamente com os outros putschistas, formaram a OAS, que se comprometeu a derrubar o Judas do Palácio do Eliseu.
Quando os colonos franceses fugiram da Argélia devastada pela guerra, a OAS exerceu uma última vingança por aquilo que eram obrigados a abandonar.
Quando a orgia de destruição terminou, aos líderes cujos nomes eram conhecidos das
autoridades gaul istas restava apenas o exílio. No inverno de 1961, Rodin tornou-se assistente de Argoud como chefe operacional da OAS no exílio.
Argoud era o instinto, a inspiração que apoiava a ofensiva desencadeada na França
metropolitana; Rodin era a organização, o bom senso astucioso.
Naquela manhã de 11 de março de 1963, fumando cigarro após cigarro diante da janela do seu quarto de hotel numa obscura aldeia austríaca, Rodin concentrava toda a sua atenção no problema de matar De Gaulle. Com o rapto recente do seu próprio superior, Argoud, e agora com a execução de Bastien-Thiry , o moral da OAS sofrera um rude golpe. Não era difícil arranjar assassinos; o problema era encontrar um homem ou um plano tão invulgares que conseguissem trespassar a muralha de segurança que entretanto se erguera em torno do presidente.
A infiltração do Serviço de Ação na OAS aumentara de uma maneira alarmante. Na situação vigente qualquer novo plano que implicasse a coordenação de muitos grupos seria descoberto antes do assassino conseguir chegar a cem quilômetros de distância de De Gaulle. Quando se esgotaram os argumentos, Rodin murmurou: "Um homem que não seja conhecido..."
Lentamente, laboriosamente, criou um plano à volta de um homem nessas circunstâncias e depois submeteu-o a todos os obstáculos que conseguiu imaginar. O plano resistiu. Pouco antes da hora do almoço, Marc Rodin percorreu a rua gelada até aos Correios e expediu uma série de telegramas informando os seus colegas, espalhados pelo Sul da Europa a coberto de nomes falsos, de que estaria ausente durante algumas semanas. No meio da tarde partira já numa missão solitária, a fim de encontrar um homem que não tinha certeza de existir. A busca de Rodin só terminou decorridos noventa dias.
Em meados de junho, Rodin regressou à Áustria e instalou-se na Pensão Kleist, na
Brucknerallee, em Viena. Da estação principal dos Correios enviou telegramas convocando os seus dois assessores para uma reunião urgente.
Assinou os telegramas com o seu nome de código para aqueles vinte dias: Schulz. As onze horas da manhã seguinte os homens já haviam chegado: René Montclair, de Bolzano, e André Casson, de Roma. Rodin os fez sentar nas duas poltronas do quarto, retirou de um armário uma garrafa de brandy francês e ergueu-a num gesto interrogador. Ambos os seus convidados acenaram afirmativamente. Enquanto bebiam, Rodin observava-os de uma cadeira de costas retas colocada atrás de uma mesa. René Montclair, baixo e entroncado, era um oficial de carreira que nos dez anos anteriores trabalhara na seção de pagamentos da Legião Estrangeira.
Agora era tesoureiro da OAS. André Casson era civil. Baixo e meticuloso, vestia-se ainda como o gerente bancário que fora na Argélia. Era coordenador da OAS clandestina na França metropolitana. Ambos os homens fitavam curiosamente Rodin, mas sem formularem perguntas. Cuidadosa e meticulosamente, Rodin começou a expor-lhes o plano: -A polícia secreta infiltrou-se tão completamente no movimento que até as deliberações dos nossos órgãos mais elevados chegam ao seu onhecimento. Na minha opinião existe apenas um método para realizarmos o nosso principal objetivo, o assassinato de De Gaulle, de maneira a iludir a rede de espiões e a deixar a polícia secreta numa situação em que dificilmente poderá frustrar as nossas intenções, mesmo que delas tenha conhecimento.
Fez-se um silencio profundo no quarto. Depois Rodin declarou: - Acho que temos de contratar um estranho.
Montclair e Casson fitaram-no, estupefatos.
-Esse homem teria de ser estrangeiro - continuou Rodin. -Não seria conhecido da Polícia Francesa nem existiria em nenhum arquivo. Faria o trabalho e regressaria ao seu país. De qualquer modo, a fuga não se revestiria de extrema importância para o indivíduo em causa, uma vez que nós o libertaríamos depois de assumirmos o poder. O importante será que ele consiga entrar sem ser detectado e sem levantar suspeitas.
Montclair soltou um assobio baixo e exclamou: - Um assassino profissional!
-O que quero saber é se concordam, em princípio, com a ideia - disse Rodin.
Montclair e Casson entreolharam-se e depois acenaram lentamente com a cabeça.
-Bien. Chamei-os aqui porque estou absolutamente seguro da sua lealdade à causa e da sua capacidade de guardar um segredo. Além disso, René, a sua cooperação como tesoureiro é necessária, para se proceder ao pagamento da quantia que qualquer assassino profissional sem dúvida exigirá. Quanto a você, André, a sua cooperação será necessária para garantir a esse indivíduo a assistência, na França, de um punhado de homens leais, no caso de ele precisar recorrer a eles. Não vejo, porém, necessidade de mais alguém, além de nós, tomar conhecimento dos detalhes do plano.
Novo silêncio. Depois Montclair perguntou:
-Quer dizer que não vai revelar seu projeto a todo o conselho da OAS? Eles não vão gostar disso.
-Eles não saberão de nada - respondeu Rodin calmamente. - Mesmo que
conseguíssemos obter o seu consentimento, não adiantaríamos nada com isso e quase trinta pessoas ficariam de posse do segredo. Se, por outro lado, assumirmos a responsabilidade e o plano for bem sucedido, nos encontraremos no poder e os meios exatos que terão levado à destruição do ditador se tornarão um ponto acadêmico. Em resumo, concordam os dois em juntar-se a mim como únicos autores do plano?
Decorrido um longo momento, Montclair e Casson acenaram afirmativamente. Rodin respirou fundo lentamente e sorriu.
-Ótimo! Passemos agora aos detalhes. Desde o dia em que o pobre Bastien-Thiry foi assassinado tenho procurado o homem de que precisamos. O resultado da busca está aqui resumido.
Estendeu a cada um deles um dos dossiês de capa de tela colocados sobre a mesa. Depois de os lerem, Montclair e Casson devolveram-nos.
-O mercado é restrito - disse Rodin. - Talvez haja mais homens que façam este gênero de trabalho, mas é muito difícil encontrá-los. Por enquanto nos deteremos nesses três como o Alemão, o Sul-Africano e o Inglês. Qual é a sua opinião, André?
Casson encolheu os ombros.
-O Inglês está na frente com quase um quilômetro de vantagem.
-E você que é que acha, René?
-Concordo. O Alemão é um pouco velho para este tipo de trabalho e o Sul-Africano pode ser muito bom para liquidar políticos locais, mas daí a meter uma bala no corpo do presidente da França vai uma grande distância. Além disso, o Inglês fala bem francês.
Rodin acenou afirmativamente.
-Já calculava que não haveria muitas dúvidas.
-Tem certeza de que ele fez, realmente, trabalhos desse tipo? - perguntou Casson.
-Eu próprio fiquei surpreso - declarou Rodin. - Por isso dediquei-lhe mais tempo do que aos outros. Se houvesse provas absolutas, isso significaria que ele estaria registrado em toda a parte como imigrante indesejável. Mas contra ele só há boatos. Tem, para este trabalho, todas as vantagens menos uma: não será barato. Como estão as finanças, René?
Montclair encolheu os ombros.
-Teríamos de arranjar dinheiro, claro. Mas será inútil fazê-lo enquanto não soubermos de quanto vamos precisar...
-O que significa - interrompeu-o Casson - que o passo seguinte é perguntar ao Inglês se está disposto a fazer o trabalho e por quanto.
-Estamos então todos de acordo? - perguntou Rodin, e consultou o relógio. -Pouco passa da uma. Tenho um agente em Londres que pode contatar esse homem. Se ele estiver disposto a meter-se, esta noite, num avião para Viena, podemos encontrar-nos aqui com ele depois do jantar. Reservei quartos contíguos para vocês.
Rodin chamou o seu guarda-costas, um polonês gigantesco de nome Viktor Kowalski, que fora cabo na Legião Estrangeira. Depois voltou-se de novo para Montclair e Casson e disse:
-Tenho de telefonar da estação principal dos Correios e levo o Viktor comigo. Enquanto eu estiver ausente importam-se de ficar aqui os dois, com a porta fechada à chave? O meu sinal são três pancadas, uma pausa e depois mais duas. - O sinal era o conhecido três-mais-dois, o ritmo das palavras Algérie Française que os motoristas de Paris tinham tocado com as buzinas para cexprimir a sua desaprovação pela política gaulesa.

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