O QUE A MORTE PODE JUNTAR
"Não permita mais a Vida separar o que a Morte pode juntar."
– Shelley, Adonais
Querido(a) desconhecido(a),
Não sei exatamente o porquê resolvi escrever esta carta, a ideia apenas me ocorreu no último instante. Um desabafo? Talvez. Remissão? Absolutamente não. E, para você, seja quem for você, que por alguma razão está lendo minhas palavras, quero deixar bem claro uma coisa: amar demais foi a minha ruína.
Honestamente, eu já entendia a gravidade dos meus atos antes mesmo de cometê-los. Mas eu não suportava mais viver sem elas. Sofri por mais de 270 dias com a ausência delas – sim, eu contei –, o quê, admito, desequilibrou um pouco a minha mente.
Então, hoje, cansado da depressão solitária na qual afundei e sufoquei, raptei minha esposa, Elisa Maria Ribeiro Morais, de 26 anos, e minha filha, Bruna Maria Ribeiro Morais, de 08 anos. Enquanto escrevo, elas estão deitadas no meu quarto, lado a lado, dormindo tão profundamente que nem sequer respiram. Tão lindas.
Bem, eu congelei no tempo, esse foi o meu erro. Não consegui seguir em frente depois da "separação" e me agarrei às lembranças da época em que éramos felizes, uma família, e naquelas lembranças mofei por longos meses.
Conheci Elisa na adolescência, uma garota de altura mediana, pele negra macia, cabelos encaracolados, maçãs faciais avantajadas e olhos castanhos. Eu a presenteei com seu primeiro beijo e, posteriormente, tirei sua virgindade. Nós nos formamos, casamos e geramos uma filha, Bruna. Bruna puxou as características da mãe, herdando de mim somente o furinho no queixo, um sinal de nascença entre as omoplatas e a tendência a ser robusta.
Por volta de dez anos, resistimos a várias brigas de casais. Apesar de Elisa me acusar de ser um cara ciumento, possessivo e agressivo, a gente acabava se entendendo e esquecendo os hematomas que eu deixava em seu corpo. E nossa filha, que geralmente presenciava grande parte de tudo, parecia mais feliz ao nos ver reconciliados.
Infelizmente, ao invés de melhorar, nós piorávamos. Eu piorava.
Traí minha esposa, a humilhei de diversas formas, brigamos e assustamos nossa filha, principalmente eu. O estopim de tudo foi quando agredi Elisa de tal forma que ela acabou passando três dias em coma no hospital.
Os poucos familiares dela – dos quais eu a havia afastado, pois acreditava que eles não aprovavam nosso romance – quiseram a minha cabeça numa bandeja de prata, tentaram me impedir de vê-la e disseram que me denunciariam. Entretanto, a mãe de Elisa, Fátima, argumentou que todos deveríamos pensar em Bruna, que, tão novinha, não entendia a gravidade da situação, mas sofria. Ver o pai sendo preso só agravaria a situação da menina.
Foram dias difíceis. Elisa se recuperou, alegou que não se lembrava de nada e voltou para casa. Eu, tolo, acreditei. Pedi as desculpas desgastadas que estava acostumado a pedir depois de nossas discussões e seguimos adiante, novamente agindo como se nada houvesse acontecido.
Era tudo teatro. Elisa se recordava de tudo. Fingiu para poder me abandonar quando oportuno, no caso, dois meses após o episódio do coma. No meio da noite, durante eu estar dormindo, Elisa pegou seus pertences e os de Bruna já previamente arrumados sem que eu percebesse e partiu.
Chovia naquela noite, e muito. No entanto, a tempestade não intimidou Elisa. Ela desejava de verdade se ver livre de mim. E foi o que aconteceu.
O carro derrapou na estrada molhada. Elisa perdeu o controle e se chocou violentamente contra um muro de concreto. Morreu na hora.
Bruna foi levada para o hospital e ficou entre a vida e a morte. Mesmo destruído pelo falecimento de Elisa, fiquei ao lado da minha filha.
No hospital, Fátima apareceu e jogou na minha cara que a culpa era minha, que seu eu não fosse o monstro que era, nada daquilo aconteceria. Também revelou que ela quem elaborou o plano para minha mulher me abandonar. Eu estava prestes a avançar nela e parti-la em duas quando Bruna veio a óbito. De repente. A vida frágil da minha garotinha se extinguiu tão rápido quanto à chama de uma vela assoprada.
Sozinho no mundo, terminantemente longe das pessoas que mais amei na vida, cai em desespero. Os familiares de Elisa tentaram me colocar atrás das grades, contudo, eu tinha meus meios de se safar, meus contatos. O álcool se tornou meu companheiro, o rum me aquecia nas noites frias de insônia, dor e alucinação.
Eu continuava as enxergando. Não fantasmas, mas memórias encarnadas vagando pela casa, revivendo momentos que nunca se repetiriam. Elisa e Bruna conservavam-se tão próximas de mim e, ao mesmo tempo, distantes, inalcançáveis. E em vez de espantar aqueles ecos do passado, decidi caminhar ao lado deles. Logo me senti parte deles, morto. Meu coração batia, eu ainda respirava, mas não estava vivo. Não por inteiro.
Semanas horríveis se passaram e levaram de mim a sanidade.
Não aguentando mais viver naquela situação, tomei a decisão radical. Fui ao cemitério, desenterrei minha mulher e minha filha e trouxe os cadáveres para minha casa. Deixei Bruna na sala e levei Elisa para meu quarto, nosso quarto, nosso ninho. Transamos uma última vez. Ela, frígida e inerte, não correspondeu, mas eu senti como se fosse amor verdadeiro. Busquei nossa filha e, antes de repousá-la na companhia da mãe, abracei Bruna fortemente. Ela, indiferente ao meu toque, não correspondeu, mas eu senti como se fosse beijado.
A família estava reunida. E, quem sabe, estaria para sempre, no além-mundo.
Meu nome é Marcos Bruno de Souza Morais, policial, casado, 27 anos. Hoje são 22 de setembro de 2016. Daqui a pouco, irei me deitar entre minha maravilhosa esposa e minha linda filha, e então puxarei o gatilho do meu revólver. Não quero mais viver sem elas, não consigo. Tampouco quero continuar apenas me sentindo morto.
Quero estar morto.
Para quem estiver lendo esta carta, saiba que realmente não espero que você me entenda. Afinal, o amor é incompreensível. Tal qual a loucura.
Atenciosamente,
Um suicida apaixonado.
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NOTA
Este conto não possui intenção nenhuma de romantizar relações abusivas.
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Nos vemos no nosso próximo encontro?
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Deixa Que A Gente Conta
Short StoryGosta de contos? Veio ao lugar certo. Contos de todos os tipos, formas e tamanhos, para todos os gostos e preferências. Contos desde as épocas mais lindas, até as mais amaldiçoadas. Pequenas histórias grandiosas, sobre natal, amor, assassinatos, tem...