8º CAPÍTULO

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Abanei a cabeça. Nada daquilo se encaixava. E ninguém nunca tinha me chamado de lindo.

"O que você quer?" perguntei, em voz entrecortada

"Isso é fácil" você sorriu e o cigarro grudando em seus lábios pendeu para baixo "Companhia."

Quando você acendeu o cigarro senti um cheiro estranho, mais natural que tabaco, mas não tão forte quanto maconha. Você deu uma profunda tragada e olhou para o amontoado de rochas. Segui seu olhar e avistei uma pequena abertura entre elas, parecia uma trilha.

"Quanto tempo você vai me manter aqui?" perguntei. Você deu de ombros.

"Para sempre, é claro."

Quando a luz diminuiu até se tornar um lusco-fusco acinzentado, você se virou para entrar na casa

"Venha comigo" você disse

Você entrou no vestíbulo que tínhamos atravessado antes e parou ao lado de um conjunto de baterias de tamanho industrial. Vi fios ligados a eles que seguiam em direção ao teto, passando por alguns interruptores no caminho. Na prateleira acima de você, havia uma fileira de seis lamparinas de querosene. O que aconteceria se eu derrubasse uma delas sobre a sua cabeça? O impacto o deixaria atordoado? Quanto tempo isso me daria? Você se curvou, verificou alguma coisa e ligou um interruptor.

"Gerador." você disse, indicando as baterias com a cabeça. "Ele alimenta os aparelhos da cozinha e as poucas lâmpadas que existem na casa."

Mas eu ainda estava olhando para as lamparinas. Você notou, pegou uma e a estendeu para mim. Eu a segurei pelo bojo, a fina alça de metal tilintou no vidro. Você começou a me explicar como usá-la. Quando se virou para me mostrar outra, eu a levantei para golpear você, mas meus braços tremiam demais. Fiquei parado ali, com a lâmpada levantada, parecendo um idiota. Você percebeu minha intenção, recolocou a segunda lamparina na prateleira e estendeu as mãos para a que eu estava segurando.

"Você não vai se livrar de mim assim" você disse, levantando os cantos da boca.

Você retirou a lamparina das minhas mãos, despejou querosene dentro dela e a acendeu. Depois me empurrou para fora do aposento. Segurando a lâmpada à sua frente, você me levou de volta ao quarto onde eu tinha dormido.

"Este é o seu quarto" você disse, depois se aproximou da cômoda perto da porta "Você vai encontrar lençóis limpos aqui."

Abriu a gaveta de baixo e me mostrou os lençóis. Depois puxou as duas gavetas de cima, onde havia camisetas e calças. Passei os dedos sobre uma das camisetas. Era simples, de cor bege. Tinha número 40 e parecia ser nova.

"Vai servir, não vai?" você perguntou

Não lhe perguntei como você sabia qual era o meu tamanho. Apenas fiquei olhando para as roupas. Todas beges e desinteressantes. Não havia nenhuma marca conhecida, nada que fosse bonito. Parecia que tudo havia sido comprado em uma loja de departamento barata. Você apontou para as duas gavetas pequenas, na parte de cima.

"Roupas de baixo" você disse e deu um passo para o lado, mas não examinei as gavetas "Eu também trouxe camisas e calções, se você quiser. Estão no outro quarto. São verdes."

Apertei os olhos. Verde era minha cor favorita. Como você sabia disso? Você realmente sabia disso? Você se virou em direção a porta.

"Vou lhe mostrar os outros aposentos" quando percebeu que eu não havia me mexido, deu meia-volta e se aproximou de mim "Louis, eu não vou machucar você." você disse baixinho.

Então se virou novamente e saiu do quarto. Na semi-obscuridade, ouvi os gemidos das paredes se contraindo à medida que o calor se dissipava. Decidi seguir a luz da sua lamparina. Fui parar no aposento contíguo, onde vi uma pequena cama portátil encostada numa das paredes, com um monte de cobertores em cima. Havia também uma mesinha de cabeceira e, na parede oposta, um armário com uma cômoda ao lado.

"Eu durmo aqui, por enquanto." você disse. Você evitou me olhar. Procurei não pensar nas suas palavras, que ficaram pairando no ar, inacabadas.

Eu já conhecia o banheiro. A porta seguinte se abria por um armário alto. Não havia muitas coisas ali, além de duas vassouras, um esfregão e algumas caixas de metal. Segui sua lamparina até a porta em frente, o último cômodo do corredor. Era maior que seu quarto, quase tão grande quanto o quarto que você dizia ser meu. Numa das extremidades, vi um armário e uma poltrona. Prateleiras com livros ocupavam toda a parede, embora não estivessem exatamente cheias. Você abriu um armário e me mostrou os jogos guardados na prateleira inferior. Uno, Lig 4, Adivinha Quem?, Twister. Eram jogos que nós tivéramos em casa, jogos que eu me lembrava de ter jogado com amigos ou com meus pais, na época de natal.  Mas aquelas caixas eram antigas e desbotadas, como se tivessem sido adquiridas em bazares de caridade.

"Tem também uma máquina de costura, um violão e material esportivo" você disse

Dei uma olhada nos livros, cuidadosamente alinhados nas prateleiras. À luz da lamparina só consegui distinguir alguns títulos. Livros que já tinha lido na escola. Não consegui ver nenhum moderno ali, somente clássicos. Olhei para a prateleira seguinte. A maior parte continha guias campestres. Havia também livros sobre flores e animais do deserto, inclusive cobras, outros sobre rochas, e alguns manuais sobre coisas como dar nós em cordas ou construir abrigos improvisados. Vi um dicionário de línguas aborígenes. Observando os títulos, percebi uma coisa.

"Nós estamos na Austrália, não estamos?"

Você acenou lentamente com a cabeça.

"Você demorou um pouco para perceber."

Eu me lembrei do que você tinha dito no aeroporto, quando conversávamos sobre lugares que eu gostaria de visitar, e depois do seu sotaque estranho. Fazia sentido. Isto é, deixando de lado o fato de que eu achava que a Austrália só tinha praias e bosques, e não uma extensão interminável de areia vermelha. Então senti uma pontada de esperança, uma sensação de que tudo correria bem. A Austrália era um país civilizado, com leis, policiais e governantes. Era possível que houvesse gente à minha procura e a polícia já estivesse na minha pista. Todo o país poderia estar em estado de alerta. Mas de repente minha esperança esmoreceu. Você me tirara de Bangkok. Quem se lembraria de procurar na Austrália?

"Quem sabe que eu estou aqui?" perguntei

"Ninguém. Ninguém sabe que nenhum de nós está aqui. Estamos no meio do deserto australiano. Nós não estamos nem nos mapas."

Engoli em seco.

"Não há nenhum lugar que não tenha sido mapeado"

"Este aqui."

"Você está mentindo."

"Eu não minto."

"Então, como você me trouxe até aqui?"

"Na traseira da camionete. Demorou um pouco." você disse entredentes.

"Eu teria me lembrado"

"Eu tomei precauções para você não se lembrar."

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⏰ Última atualização: Oct 22, 2016 ⏰

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