A moça era bela, perfeita, tinha olhos redondos e negros. O epítome da beleza e da perfeição. Tinha a pele alva, as sobrancelhas devidamente delineadas. Lábios vermelhos e cheios, dos quais ninguém jamais ouviu uma palavra. Não sabíamos seu nome, seus anseios, seus sonhos, o que a afligia, tampouco o que a alegraria. Mas, quando se punha a chorar a moça, todos nós sabíamos que era ela.
A moça tinha um choro enfático, melódico, puro. Quase que como um feitiço, aquele chorar mais parecia um cântico. Um cântico incessante, de vozes ancestrais, mortas havia muito, como o canto das sereias, que, de tão belos, só espalham sofrimento.
Estranhamente, só escutávamos aquele choro quando algo muito ruim ou muito bom estava para acontecer. Era um presságio, e ela sempre acertava.
Às vezes, quando ela chorava, nos sentíamos tão angustiados pela beleza e emoção daquele quase cântico que chorávamos junto com ela. Nunca com sua pureza. Às vezes, éramos incapazes de seguir o ritmo do choro. Em outras, nossas lágrimas secavam. Afinal, de onde saíam tantas lágrimas, tanto sofrimento? Tão bela, tão perfeita, tão sofrida.
Afora o choro, não se sabia quase nada sobre ela. Achávamos que ela deveria ter mais ou menos nossa idade, mas jamais a avistamos na escola. Depois, notamos que dela não se conhecia parente algum - nem mãe, nem pai, como uma forasteira na aldeia - o que, aliás, ela de fato era, tendo chegado há pouco tempo, talvez semanas, talvez meses.
A moça morava na casa 6, que ficava no fim da rua, que estava abandonada havia muito, cuja porta estava preenchida com teias de aranha. De vez em quando, podíamos ver a moça debruçada na janela, vestida em trapos brancos, como de roupas de hospitais. Nessas não raras ocasiões, a rua, tão movimentada e cheia de gritaria, adquiria uma atmosfera austera e silenciosa. Tínhamos fascínio pela aparência fantasmagórica da moça, assim, quando ela resolvia aparecer, nos reuníamos em frente à sua casa, para vê-la.
Em pouco tempo, começamos a ponderar se ela era um fantasma que viera a nossa aldeia em busca da paz. Porém, a moça era demasiado pura e boa para ser um. Em segunda instância, levantamos a hipótese de que ela era uma fugitiva, uma criminosa tentando encontrar um esconderijo - o que não poderia ser mais mentiroso; a moça chamava atenção demais para se encaixar em tal categoria.
Por fim, começamos a pensar que, talvez, a moça estivesse perdida, e tivesse vindo a nossa aldeia para se encontrar. Esse pensamento nos confortou, porque, além de parecer irrefutável, trazia uma aura de segurança e bondade. Era uma hipótese firme. Estávamos convencidos de que era verdadeira.
O tempo foi passando, e o choro da moça começou a ficar menos denso. Já não tinha mais aquela atmosfera angustiante e melódica que estávamos acostumados a ouvir. Parecia que estava desmoronando, desaparecendo, como se estivesse moribundo.
Aos poucos, a moça se isolava. Ia perdendo o choro e já não se debruçava mais sobre a janela. Sua casa passou a ser um lugar fúnebre, cinzento, quase que completamente preenchido por teias de aranha. Deixamos de passar por ali. Talvez por medo, talvez por não estarmos compreendendo o que estava acontecendo.
Depois de meses sem aparecer na janela, a moça revelou-se. Trajava um belíssimo vestido da cor de seus olhos. Sorriu, nos encarou, foi embora. Como se um sorriso fosse explicação para todo seu mistério.
Porém, antes fosse.
Trum, trum, trum. Como uma motosserra. E, em seguida, os gritos, estridentes como cristal sendo partido ao meio.
Ao amanhecer, levantei da cama de um pulo, curiosa. O que acontecera com a moça? Alguém a matou?
Do que sucedera nos dias que passaram, ninguém tocou no assunto. Sabíamos que ela estava morta, e que ela mesma causara a própria morte com uma motosserra - o que nos deixava espantados. Éramos muito jovens para entender o que levaria uma pessoa a tirar a própria vida. Seria muito mais agradável se ela tivesse sido morta por outrem. Assim, estaríamos mais preocupados em fugir de um potencial agressor do que nos motivos da vontade de morrer. Era demais para nós. No entanto, havia um sentimento em mim de que iríamos descobrir o que aconteceu com aquela moça. Será que ela deixara alguma lembrança, algo para nós? Fizemos um plano.
Em plena madrugada, resolvemos adentrar a antiga casa da moça. O ranger da antiga porta nos apavorava e as aranhas, ali, eram uma praga. Perguntei a mim mesmo como é que a moça vivia em meio àqueles bichos grotescos. E ainda havia a poeira que adentrava nossos olhos, nos cegando. Talvez por isso, a moça chorava. Talvez? Adentramos a cozinha. A sala. Nada. Reservamos o banheiro. Nada. Fomos, então, ao apavorante quarto com a janela que a moça costumava se debruçar.
Sobre a cama, havia uma carta, empoeirada, amassada. Contemplei por alguns minutos. Então abri. E li. Senti seu choro reverberar em minha cabeça, como se nunca fosse nos abandonar, como um belo cantico que só espalha sofrimento. As últimas palavras da moça foram
"Eu vim para cá para morrer em paz"
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As Rosas nascem nas Lápides
ContoContos e crônicas de terror, tragédia e melancolia