Ignomínia

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Estou morta. Não sou nada. Nunca serei nada. Estou completamente morta. Sou uma morta-viva; meu corpo é apenas poeira. Logo minhas pernas não me carregarão mais... Meus pulmões são de um cadáver. Podem me radiografar que não encontrarão nada. Dentro do meu corpo há apenas pó. Sou um cadáver que anda para que ninguém me enterre... Não há mais dinheiro para me enterrar. É preciso me jogar na vala comum. Sou um cadáver que anda, uma morta-viva, uma morta que ressuscitou três vezes. Sou imortal... Sou um cadáver grávido. Ando para alimentar o bebê, que também está morto. Engravidaram um cadáver... e eu estou muito, muito gorda.*

No começo, achei que minha gravidez fosse um milagre - não tenho entranhas, não tenho útero. Meus ovários, posso senti-los sendo comidos pelos vermes que rondam meu corpo fedorento e putrefato. Estou morta, e mortos não podem engravidar. É uma questão orgânica. Sinto que, quando este bebê nascer, ele nascerá morto também. E iremos juntos para o túmulo, finalmente.

Na realidade, estão todos mortos. Não sou só eu. Todos somos mortos - mas ninguém sabe disso. Porque a verdade é que os mortos não vão para o céu, nem para o inferno - eles vagam pela Terra. Somos os donos do mundo, mas querem se livrar de nós. 

Ainda em contraste com a crença comum, existem vantagens em estar morto. Não preciso comer. Nem tomar água. Nem tomar banho. Não tenho necessidade alguma de me suprir, mesmo assim, estou incrivelmente gorda e pesada devido ao aborto que carrego em minha barriga. O aborto que me matou, de certa forma. Porque - podem não acreditar - mas eu lembro exatamente como morri. Vou lhes contar a minha história. 

Eu tinha quinze anos e trabalhava para um homem no vilarejo. Era uma menina jovem, inocente. Medrosa, diga-se de passagem. Ia à missa, confessava pelo menos uma vez por semana, acho. Era uma péssima criada, mas quem se importava? O homem gostava de mim, de minhas bochechas avermelhadas e de minhas sardas. Era pueril, eu. Ele era velho, cabelos negros. Tinha um filho, mais jovem, feio, que não era casado e que, talvez por isso, costumava me lançar uns olhares estranhos... Mas eu sabia que não iria casar com ele. Os ricos não se casam com os pobres, dizia minha mãe. 

Este rapaz me chamou, um dia, para o pomar. Tinha uma aparência cadavérica, como a minha hoje em dia. A pele vigorava verde sob a luz pálida do inverno. Tinha medo dele, o rapaz silencioso. A única coisa que ele professara foi:

- Me encontre aqui novamente, pois lhe trarei um presente.

Não falou o dia. De todo modo, aquilo não importava; o tédio na casa do homem era tanto que não sabíamos nem que dia era, nem que horas eram. Supus, portanto, que o garoto quisesse me encontrar no dia seguinte. Senti um arrepio em minha espinha, um assombro, como se um fantasma estivesse remexendo em meus ossos. Um mau presságio.

Mas, no dia seguinte, me afrouxei. Não deixaria o rapaz na mão, então, fui encontrá-lo. Debaixo da macieira que havia no pomar, exatamente como no dia anterior. E lá estava ele. Com um sorriso brutalmente... incomum. Senti meus ossos se arrepiarem, mas não me movi. O rapaz tinha, em suas mãos, um frasco, que parecia de perfume, com um estranho líquido vermelho dentro. Ele me entregou o frasco e  me ordenou:

- Este é seu presente, bela moça. Beba-o. 

Tomei o líquido, que tinha um gosto amargo. Me senti vertiginosa, como se os meus músculos estivessem amolecendo de pouco em pouco. Não resisti, caí no chão. Era incapaz de me mover. 

O rapaz tratou de erguer minha saia, como um prêmio. Eu, virgem que era, tive medo do que ele poderia fazer. Meus olhos se encheram de lágrimas. Como se uma faca tivesse me atravessado, de cabo a rabo, e eu morri naquele exato momento. 

Eu morri naquele exato momento, sem mais, nem menos.

Meu estômago fora perfurado, meu útero havia sido despedaçado. A faca partira ao meio meu coração e separara a ligação entre meus pulmões. Meus órgãos, todos eles, haviam sido cortados - ao mesmo tempo. E não era possível que eu vivesse sem eles. 

Saía sangue de dentro de mim - sangue morto. Me debati no chão. Eu era não só uma mulher impura, como também um cadáver. Um cadáver que vagava pela terra... impuro. Eu apanharia e seria ao menos queimada se descobrissem. Continuei, porém, trabalhando. E andando, porque, neste estado, merecia somente a vala comum. Não aceitariam uma grávida no céu, e eu era muito frágil para tentar sobreviver nos pântanos do inferno.

Eu era cadáver que, depois de certo tempo, começou a inchar, inchar e inchar. Engordei, mesmo sem me alimentar. Um bebê, ou melhor, um aborto crescia dentro de mim, aborto fruto de minha própria morte. Não acreditava. Além de impura e cadavérica, era, ainda por cima, grávida... Como era possível terem engravidado um cadáver, se meu útero foi completamente dilacerado?

Ninguém acreditava que eu estava morta. Nem grávida. Provavelmente porque estavam mortos, também.

Na casa do homem, então, resolvi provar meu óbito. Para comprovar que meus órgãos estavam podres, peguei uma faca - uma brilhante, dessas que só usavam em refeições especiais. Fiz um corte que desceu de meu pescoço à minha pélvis. Sangrei. Não senti dor alguma, no entanto - o que era a prova cabal de que precisavam se livrar de mim, de que não estava mais viva. Preciso ser cremada, ou enterrada em uma vala comum. O bebê não iria nascer - deveria ser enterrado comido. 

Lhes peço um favor, então. Depois de lerem esse texto e me encontrarem, me enterrem em qualquer lugar, porque a verdade é que estou morta. Não sou nada. Nunca serei nada. Estou completamente morta. Sou uma morta-viva; meu corpo é apenas poeira. ___________________________________________________________________________

*Este trecho é um relato da Síndrome de Cotard, descrito no blog "O Corvo"



As Rosas nascem nas LápidesWhere stories live. Discover now