Eutanásia era branca, dócil e assustada. Era uma coelha comum, à exceção de um detalhe - tinha apenas uma orelha. Talvez pelo fato de parecer frágil, Eutanásia me atraiu. Os fracos vivem em conjunto, já dizia minha mãe.
Quando levei-a para casa, ainda miúda, ela não parecia feliz; nem infeliz. Chorava de forma esquisita e comia coisas esquisitas - era um coelho aberrante, frágil, instável. Não sabia o que fazer com ela. Achei, num primeiro momento, que fosse um animal cego.
Conforme o tempo foi passando, Eutanásia ficou mais distante. Adquiriu um olhar tristonho, caricato. Baixou a única orelha que tinha. Coisas ruins começaram a acontecer na minha vida, e comecei a suspeitar de que Eutanásia estivesse trazendo uma energia ruim à minha casa, como uma coelha amaldiçoada, embora não acreditasse de fato que animais, com exceção dos bodes, pudessem ser maus.
Um mês depois que trouxe Eutanásia para minha casa, as coisas começaram a sumir - estranhamente, eram sempre objetos religiosos ou ligados ao ocultismo. Primeiro, foi meu baralho de tarot, depois, algumas bíblias. Surgiram símbolos estranhos no meu quarto, na sala e no banheiro. Pentáculos, na maioria das vezes; em outras, era a insígnia de thelema. Parecia que estavam tentando me alertar alguma coisa - afinal, segundo o tarô das bruxas, o pentagrama significava perigo iminente.
Algumas semanas se passaram, e passei a sofrer ataques de pânico aterrorizantes. Às vezes, estes aconteciam enquanto eu dormia. Minha vida estava se tornando um inferno - eu tinha medo não só de acordar, mas de dormir, também. Senti que estava enlouquecendo, que não tinha mais consciência do que era realidade e do que era ilusório.
Ao procurar um médico, este disse que eu padecia de síndrome do pânico, e que era melhor eu evitar tudo o que pudesse... ser o gatilho de uma crise... ou então as coisas poderiam ficar críticas... Aquilo me deixou confuso. Eu não sabia, com precisão, o que me tornava medroso - no entanto, eu tinha uma convicção bem grande de que era algo além da compreensão de um médico. Tive uma epifania. Meus ataques, os sumiços, os símbolos - não eram coisa da minha cabeça. Havia algo por trás daquilo tudo. Talvez Eutanásia, que, para mim, deixara de ser um bichinho frágil há tempos. Em seu olhar perdido e nebuloso, havia algo de mau. De cruel. Como nos olhos de um touro numa tourada. Não tinha certeza.
Desesperançoso, fui à consulta de um mentor espiritual, ou melhor, uma bruxa - para saber se eu estava realmente perdendo o controle sob minhas faculdades mentais ou se eu estava certo. Era um dia frio de Maio quando fui, com medo - embora a aparência da moça, que já se dizia parte de um círculo de bruxaria, não fosse tão assustadora. Ela me cumprimentou. Pediu para que eu entrasse na casa, cheia de cristais, pedras, insígnias wiccanas, dentre outras. Tinha uma voz grave e cheirava à almíscar.
- Então... Por que exatamente veio?
- Não sei... Vem acontecendo coisas em minha casa... em minha vida... Não sei - tive vergonha de expressar todos os meus pensamentos - as bíblias sumiram, apareceram símbolos na minha casa... coisas ruins.
- Você acha que é por causa de alguma coisa externa? - disse ela, com um sorriso no rosto, como se já soubesse de tudo.
- Eu adotei um coelho e...
- Um coelho sem uma orelha?
- É...
A moça olhou para baixo, como se estivesse... desapontada. A partir daquele momento, a sala ficou em um silêncio doentio por alguns minutos. Muitas perguntas passaram pela minha cabeça. O que eu havia feito? Como as coisas voltariam ao normal? Como?
Enfim, a bruxa abriu a boca:
- Você tem de se livrar desse coelho... Ou as coisas podem ficar muito críticas.
- Devo abandoná-lo?
- Não... Não costumo recomendar a morte, mas este caso é diferente. Você... Deve sacrificá-lo... - disse, veementemente perturbada - Imediatamente. Só assim, a maldição terá fim. Esses coelhos são perigosos. Fique em paz....
Quando voltei para casa, estava decidido do que iria fazer. Eutanásia deveria ser levada ao veterinário, avisei à todos, porque ela tinha uma doença e precisava ser sacrificada. Minha mãe desconfiou um pouco, mas depois repensou: um coelho com uma orelha, raquítico como um faquir, era, sem sombra de dúvida, um enfermo. E, mesmo se não achasse isso, era mais do que necessário levá-la ao médico, que ficava a poucos metros dali. Precário, clandestino, corrupto, com poucas condições de higiene e crítica negativa aos montes, era quase certo de que ele não iria suspeitar de nada se solicitássemos eutanásia ao nosso coelho - desde que, é claro, recebesse uma quantia significativa pelo trabalho.
Ao chegarmos, não lembrávamos o seu nome, mas entregamos Eutanásia para eutanásia. Minha mãe foi embora daquele consultório imundo e insalubre, porém, resolvi permanecer, já que fora minha ideia adotar o coelho misterioso. Além disso, brotava em mim não somente uma imensa culpa de ter de mata-la, o que me obrigava a ver esta cena, mas também uma curiosidade cruel de vê-la ser humilhada.
No entanto, atualmente, a memória que tenho do sacrifício de Eutanásia é escassa, um branco em minha mente. Apesar disso, ainda me recordo do médico proferir as seguintes palavras:
- Eutanásia é um coelho branco, indócil, assustador.
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As Rosas nascem nas Lápides
Historia CortaContos e crônicas de terror, tragédia e melancolia