Pedro virou a chave do escritório pela última vez na vida e entrou. Sete e quinze da manhã. Daqui a pouco Daisy chegaria. Ela tinha falado no dia anterior que hoje ia demorar mais um pouco a chegar, pra resolver um problema pessoal. Tomara que não fosse pra comprar nenhum bolo pra ele. Ele odiava comemorar aniversário, mas ela ainda não sabia disso.
Olhou as três mesas do setor, antes de se sentar na sua. A do Fernando, toda arrumada, com seus bonequinhos do MacDonalds, do mesmo jeito desde que ele saiu de férias. A de Daisy com fotos dos sobrinhos, impecavelmente limpa e organizada. A dele com as suas pilhas de edital. Procurou pra ver se tinha algum cartão de aniversário na mesa. Não tinha. Sentou. Olhou as gavetas. Nenhum cartão. Que bom.
Ajeitou a cadeira pra ver se hoje doía menos a coluna. Para qualquer um, a mesa dele era a mais feia, a mais chata. Pra ele não. Tinha um certo gosto naquela pilha de editais impressos, que nem precisavam estar ali. Estavam todos encerrados. Estavam todos no site. Estavam todos no servidor com backup e tudo. Mas eram um prazer para ele. Equivaliam aos porta-retratos, aos bonequinhos de McDonalds. Eram seus troféus secretos. Respirou fundo e ligou seu computador.
Uma das coisas da rotina do escritório que os colegas de Pedro mais reclamavam eram os editais. Coisa chata! Que trabalheira pra redigir, pra pesquisar, pra coletar os dados! E depois, muitos candidatos do processo seletivo não iam se dar ao trabalho de ler e iam ficar ligando pra tirar dúvida! Haja paciência! Era verdade, Pedro concordava, mas tinha algo nos editais que para ele era deleite.
Digitou sua senha no computador. Enquanto o sistema iniciava, pensou nos quarenta anos de serviço público, milhares de editais, centenas de colegas diferentes com passagens relâmpago pelo setor. Ninguém aguentava muito tempo naquela chatice. Parece que só ele mesmo tinha encontrado sentido naquela atividade. Fernando tinha levado só três dias pra reclamar. Não tinha saído ainda dali por causa do período de férias, mas assim que voltasse, sua transferência para o Recursos Humanos já estava certa. Daisy é quem ainda não tinha sequer sugerido impaciência. Dois meses no setor e ainda com a mesma empolgação do primeiro dia. E que menina eficiente! Estava aprendendo direitinho a lidar com os editais.
Quem levaria o setor à frente a partir de segunda feira? Alguém teria que vir logo para o lugar dele. Daisy não daria conta sozinha. Se pudesse, ele ficaria mais tempo. Mas a lei proibia. Aquela sexta feira era seu último dia. Seu aniversário de setenta anos. Aposentadoria compulsória. Se ajeitou na cadeira. Bom, o pessoal do Recursos Humanos que se preocupasse com isso.
Cada edital na pilha era um caso de sucesso. Pedro havia trabalhado árduo em cada um. Em cada um, uma charada escondida. Em cada um, um raciocínio diferente. Pedro virou a pilha de ponta cabeça e pegou o primeiro. Maio de 1977. Quem lesse somente a última letra de cada linha iria perceber as frases ABAIXO A DITADURA. O GOVERNO É DIREITO DO POVO. VIVA A DEMOCRACIA. MORTE AOS MILITARES. E por aí vai. Na época quando publicou aquele edital no Diário Oficial, teve medo de ser descoberto. Passou uma semana sem dormir direito, com medo da censura. Por fim sossegou o coração. Ninguém lia o diário oficial.
Pegou outro edital arbitrariamente na pilha. Dezembro de 1991. Aquele foi penoso. Concurso para preenchimento de vagas de assistente administrativo. Se pegasse as letras pares de todo o texto e excluísse as ímpares, conseguia ler os primeiros versos dos Lusíadas de Camões. As armas dos barões assinalados, que da acidental praia lusitana, por mares nunca dantes naufragados... Eram outros tempos. Não tinha essa facilidade do computador. Errasse na máquina de datilografar, tinha que recomeçar a página.
Não sabe por quanto tempo ficou ali divagando sobre a vida. Tudo bem, era seu último dia. Ia se aposentar. Havia suportado a vida toda, a solidão, as crises financeiras, os desamores, os vizinhos barulhentos e ignorantes. Os editais tinham sido seu passatempo secreto, sua fuga da realidade, seu escape, suas companhias. Enquanto tinha as charadas, não tinha o desespero. Enquanto pensava no próximo raciocínio, não pensava na própria dor. Enquanto encaixava as letras, as sílabas, as palavras, não remoía as perdas, as mágoas, as amarguras.
Levantou-se, ligou o ar condicionado e voltou para a mesa. Outro edital. Dezembro de 1999. Leia todas as primeiras sílabas das palavras que vem depois dos advérbios e você tem a escalação da seleção brasileira campeã da copa de 1970. Aquilo era genial! Ninguém iria nunca perceber. Escrevia para si mesmo. A glória era própria. A porta se abriu.
— Bom dia, seu Pedro!
— Bom dia, mocinha!
Ela não trouxe nenhum bolo. Alívio. Talvez nem saiba do aniversário.
— Meus parabéns! — abriu um abraço. — Deus lhe abençoe... Último dia, seu Pedro! Depois, só curtir a vida... — Quanto entusiasmo, meu Deus. Pra que tanto? Então ela sabe do aniversário. Talvez alguém de outro setor tenha lhe alertado sobre não fazer comemorações.
Daisy sentou-se à sua mesa. Ligou o computador, rearranjou os porta-retratos. Pedro voltou sutilmente à pilha. Agosto de 2002. O último parágrafo do edital, lido de trás pra frente, conta o final do filme O Sexto Sentido. Uma obra prima. Pedro era um verdadeiro gênio.
— Terminei de revisar o edital de remoção, seu Pedro.
— Então, alguma alteração?
— Coisinha pequena. Mas não tinha nenhuma incoerência. Uns dois errinhos de digitação. O senhor escreve muito bem!
— Obrigado. Pode publicá-lo no site?
— Sim. Quer que eu avise o jornal?
— Por favor, obrigado. E encaminhe ao diário oficial. Pode ser na segunda.
A moça é realmente muito eficiente e solícita. Talvez seja uma boa sucessão no trabalho. Uma pena que os editais perderiam o seu estilo particular...
— Vou buscar um café na cozinha. Quer também, seu Pedro?
— Sem açúcar, por favor.
A menina saiu fechando a porta. Pedro deixou a pilha de editais. Abriu o arquivo eletrônico do cronograma, para ver o que estava previsto para suas últimas oito horas de trabalho da vida. A porta se abriu de novo. Era Daisy voltando.
— A propósito, seu Pedro, adorei o soneto. Digno de mestre! Só corrigi o item 3.4, pois estava formando "flor" e não "flores" e não estava rimando com "dissabores" do item 2.5. — e com um sorriso de cúmplice, fechou novamente a porta, indo buscar os cafés.
Pedro perdeu o fôlego por cinco segundos. O susto aos poucos foi se tornando em contentamento e alegria e gerando um sorriso. Então, finalmente alguém matara uma charada! A mocinha era mesmo esperta.
Relaxou o corpo na cadeira e deu um suspiro de satisfação. Subitamente deixou de se sentir sozinho. Não era mais um homem resignado. O setor estaria em boas mãos. Podia se aposentar em paz. Podia até morrer em paz.
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O Jurado
RandomComo fica a mente de um ser humano confinado até o fim de um reality show?